A história do documentário
comumente nos é ensinada com um espírito
evolutivo, em que cada geração nova responde
a questões de outros grupos mais antigos e refina
a relação entre realidade e artifício.
Grierson responde a Flaherty, os cinemas modernos (verdade
e direto) respondem a Grierson e brigam entre si, o
cinema reflexivo parodia o direto e mostra sua insuficiência.
Vendo dessa forma, cabe uma pergunta: o que é
assistir a um filme de Jean Rouch hoje? Não é
uma pergunta retórica: o nível de autoconsciência
do espectador aumentou absurdamente dos anos 60 para
cá, a possibilidade de alterar digitalmente a
imagem joga a suspeita sobre o grau de documento de
qualquer coisa filmada, isso para nem entrar na seara
de que os documentários hoje lidam muito bem,
sem muitos problemas, em misturar partes encenadas com
imagens de arquivo e/ou provas documentais. Jean Rouch,
então, peça de museu? Apenas uma etapa
na luta contra o dogma da realidade nua e crua, contra
a mistificação da imagem como documento
insuspeito sobre a realidade? Os filmes dizem outra
coisa...
O aspecto mais rico da
obra de Jean Rouch, e um que raras vezes se menciona,
é o fato de que os dispositivos trazidos à
luz por cada filme, em seu empenho de alargar o espectro
da realidade para além do mero registro factual,
são incrivelmente variados e únicos, de
operação a operação. Reencenação,
pesquisa sociológica, psicodrama, atuação
pura e simples, banda sonora criativa e ficcionalizada
contra filmagem descritiva, os artifícios são
muitos. Alguns aparecem já na proposta do filme,
outros são encontrados no meio do percurso. O
objetivo, instaurar uma realidade densa e viva na qual
os personagens possam de fato existir, é sempre
o mesmo, mas ironizando a celébre fórmula
de Aristóteles , o método de alcançá-lo
se dá de diferentes maneiras. No cinema de hoje,
talvez apenas Abbas Kiarostami consiga se equiparar
em termos de criatividade nas relações
entre material filmado e artifício. Não
à toa, são dois cineastas que colocam
em crise a separação entre documentário
e cinema ficcional: um parte da etnologia a filha
mais velha do colonialismo, como diz Yann Lardeau1
para questionar o processo de produção
desse saber, enquanto outro parte do cinema pedagógico
para suscitar em seus espectadores o questionamento
também pedagógico sobre
a veracidade das imagens. Ambos utilizaram a potência
do falso para instaurar o verdadeiro. Entre o verídico
e o verdadeiro, se inscreve o grande cinema.
É inevitável
que parte da bravata técnica e contextual de
um filme como A Pirâmide Humana acabe se
perdendo hoje. Não é fácil colocar-se
imaginariamente em 1961 e tentar medir quanto esse filme
difere radicalmente do que então vinha sendo
feito no cinema, o de ficção incluído.
Filmagem sincrônica (tomadas de som direto), leveza
dos equipamentos e filmagem em locações
(ao contrário de filmar em estúdios) era
ainda uma revolução revolução
que, diga-se, deveu-se muito a outro filme de Rouch,
Moi, un Noir (1958). Se hoje todas essas "novidades"
são favas contadas, o dispositivo do filme ainda
tem muito o que surpreender. A Pirâmide Humana
começa com uma conversa entre o realizador e
os intérpretes do filme. A experiência
é explicada: colocar juntos na mesma classe um
grupo de brancos europeus e outro de negros africanos,
tudo isso na cidade de Abidjan, Costa do Marfim. O objetivo
também é externado: pesquisar as relações
entre as raças no que tange a preconceito, coisas
em comum, afabilidade mútua, etc. O método:
nem observação pura e simples, nem roteiro
arranjado. Cada um vai interpretar livremente um papel
previamente combinado, de forma muito parecida com a
terapia do sociodrama, inventada pelo médico
e romancista Jacob Levy Moreno no começo do século
XX. O filme passa então a apresentar personagens
ficcionais que, interpretando arquétipos verdadeiros
(o melhor da classe, o formador de grupinhos, a militante,
o separatista, etc.), acabam criando um resultado compósito
em que importa pouco se é "verídico"
no sentido de responder sinceramente a motivações
reais. O decisivo é, como num sociodrama (ou
psicodrama, considerando do ponto de vista de cada personagem),
interpretar papéis que podem ou não ser
seus para poder melhor chegar a um resultado de conjunto.
De todos os longa-metragens
mais conhecidos de Rouch, A Pirâmide Humana
é sem dúvida o que mais selvagemente inventa
o método à medida que o filme é
feito. Pela metade do filme, Jean Rouch chama sua equipe
novamente para conversar. Trata-se agora de criar uma
historinha para fazer a história fluir: Nadine,
uma branca com lábios carnudos, vai flertar com
todos os meninos brancos ou negros e assim
provocar brigas no seio da turma, até culminar
num instante traumático para o grupo inteiro.
O filme muda de tom e de ritmo, mas a pesquisa inter-racial
permanece lá: de forma mágica, a narrativa
criada faz com que a diferença racial seja colocada
em segundo plano, e o espectador passa a encará-los
não mais como índices de branqueza ou
negritude, mas como seres humanos individuados, com
suas características, dilemas e charmes. No final,
o filme faz questão de não "chegar"
a nenhuma prova, não mostra o resultado de nenhuma
pesquisa. Ao contrário, ele se mostra a si mesmo,
exibe na voz off do próprio realizador
seus objetivos: não fazer uma pesquisa sobre
o racismo (mesmo que o assunto seja discutido em vários
momentos do filme) ou sobre as dificuldades de convivência,
mas antes de tudo estabelecer essa convivência,
com uma experiência que é o filme.
Se no plano conceitual
A Pirâmide Humana impressiona, o plano
estilístico não deixa por menos. Rouch
não é apenas um renovador das formas do
documentário, mas também uma nova sensibilidade
dentro da forma cinematográfica. Não à
toa, Moi un Noir e Jaguar terão
um aspecto decisivo como influência em Jean-Luc
Godard (o primeiro pelos jump cuts, o segundo pela forma
de falar e de agir dos personagens, malandros safos
que lembram por diversas vezes o Michel Poiccard de
Acossado): despojamento na maneira de filmar
exteriores, desobrigação para com a gramática
de corte e encadeamento de planos, fluência cotidiana
da fala até então dominada por
um literatismo de roteiro, ao menos no cinema francês
, a improvisação das cenas e a ausência
de roteiro prévio são constantes da obra
de Rouch, e serão traços determinantes
de boa parte da nouvelle vague que virá
logo depois. A Pirâmide Humana ainda apresenta
a cena protótipo que Éric Rohmer perseguirá
por boa parte de sua carreira: Denise conversando com
num parque com Nadine sobre a sexualidade e o comportamento
moral desta última. O verde, a indefinição
sentimental das mulheres, a filmagem em locação
são constantes de Rohmer desde A Colecionadora
(1969)2.
Pouco a Pouco,
realizado em 1969, oito anos depois de A Pirâmide
Humana, renova a forma com que Rouch faz a autocrítica
da etnologia através da própria matéria
de seu filme. O filme nasce como uma espécie
de adaptação das Cartas Persas,
de Montesquieu: Damouré, herói recuperado
de Jaguar, viaja até a França para
pesquisar a arquitetura e contratar projetistas que
façam um prédio para abrigar sua companhia
africana, chamada "Petit à petit".
De quebra, nosso protagonista aproveita para realizar
diversos estudos de campo sobre a vida dos franceses:
olhar-lhes os dentes, medir-lhes o crânio, avaliar
suas vestimentas e retirar daí as conclusões
mais apressadas e preconceituosas. Rouch realiza com
esse movimento uma espécie de etnologia transversa:
aplica aos franceses toda espécie de experimento
de cobaia que uma vez os colonizadores aplicaram aos
africanos.
Essa operação
não é apenas um gimmick engraçado.
Ao mesmo tempo que ela revela toda a falibilidade de
uma ciência montada tendo por base a tentativa
de justificar teses que já estavam dadas todas
prontas a inferioridade dos africanos, o primitivismo
dessas aglomerações , ela funciona
ao próprio nível daquilo que Jean Rouch
entende por sua operação antropológica
dentro do campo de estudos em que cresceu. Toda sua
obra ao menos sua obra que diz respeito imediatamente
aos africanos pode ser vista como uma tentativa
de reparar uma falha constante da etnologia: montar
um retrato vivo dos africanos que coloca em cena.
Colocar em cena, fazê-los
agir e criar junto, e não "registrar",
essa é a pedra de toque primordial na relação
de Jean Rouch com seus africanos, e essa é também
a lição na falta de vocábulo
melhor que o cinema de Rouch ainda tem a dar
hoje. Lição que vem se conjugar com aquilo
que o cinema vem produzindo de melhor atualmente
veja-se Shara de Naomi Kawase, Elefante
de Gus Van Sant ou Dez de Abbas Kiarostami, todos
desenvolvendo de alguma forma uma relação
algo semelhante com seus personagens. Um cinema da aventura,
um cinema do improviso, mas antes de tudo um cinema
que acredita nos mecanismos do cinema para mostrar como
há vida para além da tela, e como esse
cinema concerne antes de tudo a vida.
Ruy Gardnier
1. "Le
partisan du désordre créatif" in
Cahiers du Cinéma nº589, homenagem a Rouch.
2. Não
é de se espantar que, nas listas pessoais de
dez melhores filmes franceses lançados a partir
do pós-guerra constante da edição
161-2 dos Cahiers du Cinéma (janeiro de 1965),
lugar de gestação da nouvelle vague,
Rouch seja lembrado em dez listas, sete vezes para A
Pirâmide Humana (com votos de Godard e Rohmer)
e três para Moi un Noir.
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