ATUALIDADE DE JEAN ROUCH
A Pirâmide Humana (1961) e Pouco a Pouco (1969)

A história do documentário comumente nos é ensinada com um espírito evolutivo, em que cada geração nova responde a questões de outros grupos mais antigos e refina a relação entre realidade e artifício. Grierson responde a Flaherty, os cinemas modernos (verdade e direto) respondem a Grierson e brigam entre si, o cinema reflexivo parodia o direto e mostra sua insuficiência. Vendo dessa forma, cabe uma pergunta: o que é assistir a um filme de Jean Rouch hoje? Não é uma pergunta retórica: o nível de autoconsciência do espectador aumentou absurdamente dos anos 60 para cá, a possibilidade de alterar digitalmente a imagem joga a suspeita sobre o grau de documento de qualquer coisa filmada, isso para nem entrar na seara de que os documentários hoje lidam muito bem, sem muitos problemas, em misturar partes encenadas com imagens de arquivo e/ou provas documentais. Jean Rouch, então, peça de museu? Apenas uma etapa na luta contra o dogma da realidade nua e crua, contra a mistificação da imagem como documento insuspeito sobre a realidade? Os filmes dizem outra coisa...

O aspecto mais rico da obra de Jean Rouch, e um que raras vezes se menciona, é o fato de que os dispositivos trazidos à luz por cada filme, em seu empenho de alargar o espectro da realidade para além do mero registro factual, são incrivelmente variados e únicos, de operação a operação. Reencenação, pesquisa sociológica, psicodrama, atuação pura e simples, banda sonora criativa e ficcionalizada contra filmagem descritiva, os artifícios são muitos. Alguns aparecem já na proposta do filme, outros são encontrados no meio do percurso. O objetivo, instaurar uma realidade densa e viva na qual os personagens possam de fato existir, é sempre o mesmo, mas – ironizando a celébre fórmula de Aristóteles –, o método de alcançá-lo se dá de diferentes maneiras. No cinema de hoje, talvez apenas Abbas Kiarostami consiga se equiparar em termos de criatividade nas relações entre material filmado e artifício. Não à toa, são dois cineastas que colocam em crise a separação entre documentário e cinema ficcional: um parte da etnologia – a filha mais velha do colonialismo, como diz Yann Lardeau1 – para questionar o processo de produção desse saber, enquanto outro parte do cinema pedagógico para suscitar em seus espectadores o questionamento – também pedagógico – sobre a veracidade das imagens. Ambos utilizaram a potência do falso para instaurar o verdadeiro. Entre o verídico e o verdadeiro, se inscreve o grande cinema.

É inevitável que parte da bravata técnica e contextual de um filme como A Pirâmide Humana acabe se perdendo hoje. Não é fácil colocar-se imaginariamente em 1961 e tentar medir quanto esse filme difere radicalmente do que então vinha sendo feito no cinema, o de ficção incluído. Filmagem sincrônica (tomadas de som direto), leveza dos equipamentos e filmagem em locações (ao contrário de filmar em estúdios) era ainda uma revolução – revolução que, diga-se, deveu-se muito a outro filme de Rouch, Moi, un Noir (1958). Se hoje todas essas "novidades" são favas contadas, o dispositivo do filme ainda tem muito o que surpreender. A Pirâmide Humana começa com uma conversa entre o realizador e os intérpretes do filme. A experiência é explicada: colocar juntos na mesma classe um grupo de brancos europeus e outro de negros africanos, tudo isso na cidade de Abidjan, Costa do Marfim. O objetivo também é externado: pesquisar as relações entre as raças no que tange a preconceito, coisas em comum, afabilidade mútua, etc. O método: nem observação pura e simples, nem roteiro arranjado. Cada um vai interpretar livremente um papel previamente combinado, de forma muito parecida com a terapia do sociodrama, inventada pelo médico e romancista Jacob Levy Moreno no começo do século XX. O filme passa então a apresentar personagens ficcionais que, interpretando arquétipos verdadeiros (o melhor da classe, o formador de grupinhos, a militante, o separatista, etc.), acabam criando um resultado compósito em que importa pouco se é "verídico" – no sentido de responder sinceramente a motivações reais. O decisivo é, como num sociodrama (ou psicodrama, considerando do ponto de vista de cada personagem), interpretar papéis que podem ou não ser seus para poder melhor chegar a um resultado de conjunto.

De todos os longa-metragens mais conhecidos de Rouch, A Pirâmide Humana é sem dúvida o que mais selvagemente inventa o método à medida que o filme é feito. Pela metade do filme, Jean Rouch chama sua equipe novamente para conversar. Trata-se agora de criar uma historinha para fazer a história fluir: Nadine, uma branca com lábios carnudos, vai flertar com todos os meninos – brancos ou negros – e assim provocar brigas no seio da turma, até culminar num instante traumático para o grupo inteiro. O filme muda de tom e de ritmo, mas a pesquisa inter-racial permanece lá: de forma mágica, a narrativa criada faz com que a diferença racial seja colocada em segundo plano, e o espectador passa a encará-los não mais como índices de branqueza ou negritude, mas como seres humanos individuados, com suas características, dilemas e charmes. No final, o filme faz questão de não "chegar" a nenhuma prova, não mostra o resultado de nenhuma pesquisa. Ao contrário, ele se mostra a si mesmo, exibe na voz off do próprio realizador seus objetivos: não fazer uma pesquisa sobre o racismo (mesmo que o assunto seja discutido em vários momentos do filme) ou sobre as dificuldades de convivência, mas antes de tudo estabelecer essa convivência, com uma experiência que é o filme.

Se no plano conceitual A Pirâmide Humana impressiona, o plano estilístico não deixa por menos. Rouch não é apenas um renovador das formas do documentário, mas também uma nova sensibilidade dentro da forma cinematográfica. Não à toa, Moi un Noir e Jaguar terão um aspecto decisivo como influência em Jean-Luc Godard (o primeiro pelos jump cuts, o segundo pela forma de falar e de agir dos personagens, malandros safos que lembram por diversas vezes o Michel Poiccard de Acossado): despojamento na maneira de filmar exteriores, desobrigação para com a gramática de corte e encadeamento de planos, fluência cotidiana da fala – até então dominada por um literatismo de roteiro, ao menos no cinema francês –, a improvisação das cenas e a ausência de roteiro prévio são constantes da obra de Rouch, e serão traços determinantes de boa parte da nouvelle vague que virá logo depois. A Pirâmide Humana ainda apresenta a cena protótipo que Éric Rohmer perseguirá por boa parte de sua carreira: Denise conversando com num parque com Nadine sobre a sexualidade e o comportamento moral desta última. O verde, a indefinição sentimental das mulheres, a filmagem em locação são constantes de Rohmer desde A Colecionadora (1969)2.

Pouco a Pouco, realizado em 1969, oito anos depois de A Pirâmide Humana, renova a forma com que Rouch faz a autocrítica da etnologia através da própria matéria de seu filme. O filme nasce como uma espécie de adaptação das Cartas Persas, de Montesquieu: Damouré, herói recuperado de Jaguar, viaja até a França para pesquisar a arquitetura e contratar projetistas que façam um prédio para abrigar sua companhia africana, chamada "Petit à petit". De quebra, nosso protagonista aproveita para realizar diversos estudos de campo sobre a vida dos franceses: olhar-lhes os dentes, medir-lhes o crânio, avaliar suas vestimentas e retirar daí as conclusões mais apressadas e preconceituosas. Rouch realiza com esse movimento uma espécie de etnologia transversa: aplica aos franceses toda espécie de experimento de cobaia que uma vez os colonizadores aplicaram aos africanos.

Essa operação não é apenas um gimmick engraçado. Ao mesmo tempo que ela revela toda a falibilidade de uma ciência montada tendo por base a tentativa de justificar teses que já estavam dadas todas prontas – a inferioridade dos africanos, o primitivismo dessas aglomerações –, ela funciona ao próprio nível daquilo que Jean Rouch entende por sua operação antropológica dentro do campo de estudos em que cresceu. Toda sua obra – ao menos sua obra que diz respeito imediatamente aos africanos – pode ser vista como uma tentativa de reparar uma falha constante da etnologia: montar um retrato vivo dos africanos que coloca em cena.

Colocar em cena, fazê-los agir e criar junto, e não "registrar", essa é a pedra de toque primordial na relação de Jean Rouch com seus africanos, e essa é também a lição – na falta de vocábulo melhor – que o cinema de Rouch ainda tem a dar hoje. Lição que vem se conjugar com aquilo que o cinema vem produzindo de melhor atualmente – veja-se Shara de Naomi Kawase, Elefante de Gus Van Sant ou Dez de Abbas Kiarostami, todos desenvolvendo de alguma forma uma relação algo semelhante com seus personagens. Um cinema da aventura, um cinema do improviso, mas antes de tudo um cinema que acredita nos mecanismos do cinema para mostrar como há vida para além da tela, e como esse cinema concerne antes de tudo a vida.

Ruy Gardnier

1. "Le partisan du désordre créatif" in Cahiers du Cinéma nº589, homenagem a Rouch.

2. Não é de se espantar que, nas listas pessoais de dez melhores filmes franceses lançados a partir do pós-guerra constante da edição 161-2 dos Cahiers du Cinéma (janeiro de 1965), lugar de gestação da nouvelle vague, Rouch seja lembrado em dez listas, sete vezes para A Pirâmide Humana (com votos de Godard e Rohmer) e três para Moi un Noir.

 

 





Rouch (à esq.) com quatro alunos-atores de A Pirâmide Humana