Antes de avaliarmos o processo de
adaptação do poema de Carlos Drummond
de Andrade (Caso do Vestido), primeiro adaptado
para a forma de romance por Carlos Herculano Lopes,
e só depois readaptado para a tela, tomemos as
articulações dramáticas de O
Vestido por sua autonomia audiovisual. Temos no
cerne dos conflitos uma velha oposição
entre modernidade e tradição, sendo a
primeira enfocada como nociva para os valores morais
e a segunda vista como uma reserva de manutenção
da ordem ameaçada. Esse embate é dado
por meio de um triângulo afetivo-sexual. Ulisses
é o homem íntegro do interior, endividado
por não saber lidar com as mudanças do
capitalismo em sua região, que larga a esposa
virtuosa, Ângela, por uma moça urbana sexualizada,
Bárbara.
Não é casual o fato de estarmos situados
em uma cidade-histórica, símbolo do depósito
da preservação de mediadores de conduta
do passado. A moral é força do hábito
sedimentado, como escreveu Nietzsche em Aurora
(sobretudo), e deve por isso ser transvalorada. Assim
sendo, o filme, com sua aposta no conservadorismo, com
sua satanização das mudanças não
legitimadas pela sociedade, é anti-transvaloração.
A configuração da família está
em jogo e, para reorganizá-la, será preciso
punir quem a ameaça. E o elemento ameaçador
é o sexo, causa da perdição de
Ulisses. O erotismo precisa ser domado para se reagrupar
as normas repressoras dos instintos não civilizados.
Essa condenada força do desejo tem chave trágica.
Ulisses romperá com a ordem social e com sua
própria razão ao se tornar prisioneiro
de sua atração por Bárbara.
A tragédia está também na figura
dessa amante. Saberemos ao longo do filme que ela está
condenada a vagar a esmo, sem chance de redirecionar
sua trajetória e de se reconstruir em outras
bases. Já a esposa também se manterá
na mesma posição, convicta em suas virtudes
e fiel até quando é abandonada, sinal
de sua entrega à tarefa de manter um estado de
coisas. Por conta desse movimento determinista, ficamos
sem entender a inclusão, em uma passagem, de
figurantes expostos como parte do MST, cujo acampamento
é usado pelo casal de amantes como motel. A luta
agrária, posta ali na marra, é legitimada:
uma cena de invasão policial nos empurra para
o lado dos sem-terra. Nesse ponto, a necessidade de
se piscar o olho para o movimento social, de irrelevante
presença na tela, leva o filme a fugir atabalhoadamente
de seu conservadorismo. É sua aposta em uma posição
transformadora. Aposta furada, no caso.
Quase todas as ações têm como instância
narrativa as duas mulheres. Em um primeiro momento,
a esposa conta às filhas, de forma quase onisciente,
como perdeu o marido. No segundo tempo, a amante conta
à esposa, em ato de confissão e justificativa
redentora, como o romance foi sepultado. Os dois fios
condutores são elaborados de forma a despertar
nossa compaixão. Só sofrendo e sendo punida
a vilã, urbana e moderna, pode ser redimida aos
nossos olhos. Só quando é reposta a ordem,
temporariamente desarranjada, podemos nos solidarizar
com a amante. Temos nessa dupla articulação
de olhar e voz narradoras uma falta de rigor com o estatuto
de narração das personagens, ao menos
como apregoava o escritor Henry James e o teórico
Percy Lubock. Ambas sabem de detalhes de situações
que elas não teriam como saber - e também
não contam como ficaram sabendo. Por outro lado,
duas cenas chaves, a da transa do marido com a amante,
e o reeencontro dele com a esposa, são omitidas
pelo relato. E são dois momentos fundamentais
para se melhor entender as emoções dos
personagens.
A narração visual também coloca
um problema. Não sofre alterações
de acordo com a mudança de voz de quem narra.
Isso é mais evidente no relato da amante, que
não traduz esteticamente a piração
dela. Algo ainda mais complicado em um filme mediado
pelo desejo desestabilizador. No entanto, em vez de
uma desarrumação aguda, vemos cenas reumáticas,
sexo mecânico, sem vitalidade na imagem, sem vampirização
dos corpos, sem sangue nas veias da tela, como vemos,
por exemplo, na minissérie Os Maias, de
Luiz Fernando Carvalho (para ficarmos dentro do registro
da tragédia sexual). Esse rame-rame é
acentuado pela forma de se montar a cena, de como palavras
e ações são conduzidas, de como
os atores se comportam, com diálogos desafiadores
da credibilidade, seja lá em qual instância
for (a vida, o cinema ou a literatura).
Tudo isso poderia ser entendido como fruto da opção
por um narrador interno, pela fabulação-pesadelo
das duas mulheres, pela origem poética do material
(explicitado como colete à prova de críticas
na assinatura de Drummond que fecha o filme - como se
o escritor assinasse por esta adaptação)
- o que justificaria a negação de um registro
naturalista e a valorização de atuações
posadas: a frase ao final, "tudo é ilusão
como no cinema", seria a senha. Os nomes simbólicos
(Ulisses, Fausto, Bárbara) também dariam
a chave. Mas as justificativas nunca chegam a funcionar,
porque o mesmo tom empolado impera também quando
a instância narrativa é muda (e não
as narradoras-personagens). Ou seja, a conclusão
que fica: O Vestido é um mistério
indecifrável.
Cléber Eduardo
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