O Vestido
Paulo Thiago, Brasil, 2003

Antes de avaliarmos o processo de adaptação do poema de Carlos Drummond de Andrade (Caso do Vestido), primeiro adaptado para a forma de romance por Carlos Herculano Lopes, e só depois readaptado para a tela, tomemos as articulações dramáticas de O Vestido por sua autonomia audiovisual. Temos no cerne dos conflitos uma velha oposição entre modernidade e tradição, sendo a primeira enfocada como nociva para os valores morais e a segunda vista como uma reserva de manutenção da ordem ameaçada. Esse embate é dado por meio de um triângulo afetivo-sexual. Ulisses é o homem íntegro do interior, endividado por não saber lidar com as mudanças do capitalismo em sua região, que larga a esposa virtuosa, Ângela, por uma moça urbana sexualizada, Bárbara.

Não é casual o fato de estarmos situados em uma cidade-histórica, símbolo do depósito da preservação de mediadores de conduta do passado. A moral é força do hábito sedimentado, como escreveu Nietzsche em Aurora (sobretudo), e deve por isso ser transvalorada. Assim sendo, o filme, com sua aposta no conservadorismo, com sua satanização das mudanças não legitimadas pela sociedade, é anti-transvaloração. A configuração da família está em jogo e, para reorganizá-la, será preciso punir quem a ameaça. E o elemento ameaçador é o sexo, causa da perdição de Ulisses. O erotismo precisa ser domado para se reagrupar as normas repressoras dos instintos não civilizados. Essa condenada força do desejo tem chave trágica. Ulisses romperá com a ordem social e com sua própria razão ao se tornar prisioneiro de sua atração por Bárbara.

A tragédia está também na figura dessa amante. Saberemos ao longo do filme que ela está condenada a vagar a esmo, sem chance de redirecionar sua trajetória e de se reconstruir em outras bases. Já a esposa também se manterá na mesma posição, convicta em suas virtudes e fiel até quando é abandonada, sinal de sua entrega à tarefa de manter um estado de coisas. Por conta desse movimento determinista, ficamos sem entender a inclusão, em uma passagem, de figurantes expostos como parte do MST, cujo acampamento é usado pelo casal de amantes como motel. A luta agrária, posta ali na marra, é legitimada: uma cena de invasão policial nos empurra para o lado dos sem-terra. Nesse ponto, a necessidade de se piscar o olho para o movimento social, de irrelevante presença na tela, leva o filme a fugir atabalhoadamente de seu conservadorismo. É sua aposta em uma posição transformadora. Aposta furada, no caso.

Quase todas as ações têm como instância narrativa as duas mulheres. Em um primeiro momento, a esposa conta às filhas, de forma quase onisciente, como perdeu o marido. No segundo tempo, a amante conta à esposa, em ato de confissão e justificativa redentora, como o romance foi sepultado. Os dois fios condutores são elaborados de forma a despertar nossa compaixão. Só sofrendo e sendo punida a vilã, urbana e moderna, pode ser redimida aos nossos olhos. Só quando é reposta a ordem, temporariamente desarranjada, podemos nos solidarizar com a amante. Temos nessa dupla articulação de olhar e voz narradoras uma falta de rigor com o estatuto de narração das personagens, ao menos como apregoava o escritor Henry James e o teórico Percy Lubock. Ambas sabem de detalhes de situações que elas não teriam como saber - e também não contam como ficaram sabendo. Por outro lado, duas cenas chaves, a da transa do marido com a amante, e o reeencontro dele com a esposa, são omitidas pelo relato. E são dois momentos fundamentais para se melhor entender as emoções dos personagens.

A narração visual também coloca um problema. Não sofre alterações de acordo com a mudança de voz de quem narra. Isso é mais evidente no relato da amante, que não traduz esteticamente a piração dela. Algo ainda mais complicado em um filme mediado pelo desejo desestabilizador. No entanto, em vez de uma desarrumação aguda, vemos cenas reumáticas, sexo mecânico, sem vitalidade na imagem, sem vampirização dos corpos, sem sangue nas veias da tela, como vemos, por exemplo, na minissérie Os Maias, de Luiz Fernando Carvalho (para ficarmos dentro do registro da tragédia sexual). Esse rame-rame é acentuado pela forma de se montar a cena, de como palavras e ações são conduzidas, de como os atores se comportam, com diálogos desafiadores da credibilidade, seja lá em qual instância for (a vida, o cinema ou a literatura).

Tudo isso poderia ser entendido como fruto da opção por um narrador interno, pela fabulação-pesadelo das duas mulheres, pela origem poética do material (explicitado como colete à prova de críticas na assinatura de Drummond que fecha o filme - como se o escritor assinasse por esta adaptação) - o que justificaria a negação de um registro naturalista e a valorização de atuações posadas: a frase ao final, "tudo é ilusão como no cinema", seria a senha. Os nomes simbólicos (Ulisses, Fausto, Bárbara) também dariam a chave. Mas as justificativas nunca chegam a funcionar, porque o mesmo tom empolado impera também quando a instância narrativa é muda (e não as narradoras-personagens). Ou seja, a conclusão que fica: O Vestido é um mistério indecifrável.

Cléber Eduardo