Há uma atmosfera programática
em O outro lado da rua que faz do filme não
muito mais do que um objeto morno de observação.
Para um filme que trata de sentimentos em ebulição
e da descoberta de afetos, a frieza da narrativa (empregada
pelo roteiro e direção do estreante Marcos
Bernstein) contribui apenas impedindo, no final das
contas, que o filme provoque qualquer impacto ou qualquer
tipo de sentimento forte no espectador.
"Provocar", essa talvez seja a palavra em
falta no vocabulário cinematográfico do
filme, por demais preocupado em "cumprir"
as artimanhas e manhas de seu roteiro. De alguma forma,
O outro lado da rua repete o padrão dos
recentes filmes brasileiros a receber a famigerada ajuda
do "Laboratório de Roteiros de Sundance" (vem
à cabeça, de cara, Durval Discos),
cujo principal sintoma parece ser a estranha inconsistência
com que tentam se apropriar de um cinema de gênero
apenas como exercício de amenização
formal da invenção e, por outro lado,
parecem se aproximar de um cinema de invenção
apenas como forma de dar às obras o frágil
status de "obra de arte".
O resultado, como se pode ver nesse O outro lado
da rua, é um cinema marcado pelo esmaecimento
da linguagem, em que as seqüências parecem
antes estar obedecendo ao roteiro do que se utilizando
dele como potencializador de imagens. Essa é
a marca central dessa espécie de amestramento
que os roteiros cinematográficos parecem sofrer
através de Sundance – um certo ar de cartilha
esfriada, apinhada de pequenas sacadas/tiradas de falas
marcadas, mas incapaz de ser o que deveria ser o grande
papel de um bom roteiro: dar ao filme a base de possibilidades
justamente de ultrapassá-lo. Em O outro lado
da rua, tem-se a impressão de que cada cena
está ali colocada funcionalmente, repetindo diretrizes
narrativas sem qualquer vivacidade cênica.
Mesmo as elogiáveis interpretações
de Fernanda Montenegro e Raul Cortez aparecem perdidas,
indecisas entre um naturalismo mais livre e um cinema
de tipos (que parece demarcado pelas falas, algumas
habilidosas, escritas por Bernstein). Raul Cortez, talvez
por trabalhar com um personagem mais contido/duro, acaba
por alcançar um tom de voz e fragilidade que
(bem mais discretos do que a "figura" da personagem
Regina) se segura melhor nessa flutuação
incerta de estatutos. Não coloco aqui em cheque
a habilidade corporal de Fernanda Montenegro, mas a
forma como a narrativa é incapaz de apresentar-lhe
uma sintonia/direção clara de interpretação.
Fazendo com que o desenrolar do filme se torne um refém
de si mesmo, dependente das pequenas iluminuras que
a atriz sabe impôr aqui ou ali em seus passos,
a um só tempo, marcados e indecisos.
Essa imprecisão, essa deriva involuntária
(intra e inter-cenas) entre um cinema-posado e um cinema
de improvisos acaba mesmo minando a suposta atmosfera
de suspense que o filme tenta empregar. Ou seja: o filme
"informa" que há suspense, o filme
"informa" que há um possível
perigo, o filme "informa" que a personagem
esteja temerosa e confusa emocionalmente – mas em nenhum
momento a construção de linguagem e atmosfera
cênica consegue fazer com que o filme atice esses
afetos físicos/fortes no espectador. Não
há suspensão alguma de sentidos no suspense
de O outro lado da rua: está tudo muito
dado, mastigado, mecanicamente repetido dentro dos lugares
comuns "da solidão urbana" e da "velhice".
A própria vida caótica de Copacabana se
transforma num pano de fundo reiterativo, sem vida,
em que o filme dá muito pouco tempo a seu próprio
tempo para escapar de si e, possivelmente, surpreender.
Mesmo a bela cena de amor entre Regina e o "suspeito"
parece muito aquém de seus atores, tamanha a
gana da narrativa em seguir sempre adiante, sempre adiante;
num dinamismo de eventos esvaziados (e irritantemente
ornados por uma trilha sonora calculada para encontrar
as lágrimas...).
De repente, o filme acaba. E a sensação
é de que essa beleza possível se perde
em tamanho sentimentalismo de laboratório,
fazendo-o passar sem provocar (de novo a palavra) qualquer
vestígio, qualquer pegada mais firme – transformando
um cinema salpicado de algumas boas premissas num objeto
frio e de resultado não mais do que decepcionante.
Resta, sim, ali, um ou outro olhar entre os dois atores,
alguns silêncios adoráveis, um certo tom
de voz que Montenegro encontra nessa ou naquela frase
e que, por vezes, vale mais do que todo o resto do filme...
E não muito mais do que isso.
Felipe Bragança
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