Eu, um negro e
Jaguar: dois gestos de um cinema em flagrante
delito de invenção, alegria do pôr-em-cena
e êxtase da encenação compartilhada.
Uma celebração da fábula, da resistência
do corpo e da palavra diante da opacidade do real já-dado.
Cinema em construção redobrada, camadas
sobre camadas, de verdades adoravelmente forjadas e,
a um só tempo, inimitáveis em sua emergência.
"A ficção é o único
caminho para se penetrar a realidade"
Essa frase é, antes de tudo, uma provocação.
Jean Rouch sabia disso. Seu fazer cinema dependia desse
jogo, dessa fricção. Mestre de mestres,
Rouch é nome obrigatório para todo pensamento
que se debruce sobre o pôr-em-cena cinematográfico
e sobre os diferentes estatutos de Verdade (e representação)
atribuídos às imagens e a seu papel narrativo.
Etnógrafo decepcionado com a rigidez acadêmica
do "real" sociológico, desapontado
com as normas de representação "isenta"
de um cinema para museus, Jean Rouch começa
a trilhar, a partir da década de 50, uma das
obras fundamentais para tudo o que se pode delinear
hoje como o cinema moderno. Comumente associado a um
suposto "documentarismo", Rouch é,
em verdade, o primeiro cineasta a reagir de forma sistemática
e estrutural aos territórios normatizados da
"ficção" e do "documentário"
(como compreendidos na primeira metade do século
XX). Longe de qualquer niilismo anti-documentarista,
o cinema de Jean Rouch não nega barreiras de
representação por um possível caráter
destrutivo, mas justamente pela forma como corrói,
de forma positiva, os parâmetros de construção
das cenas, entrecruzando os clichês da dita "ficção"
e do fazer "documental" por dentro mesmo de
suas fronteiras e dinâmicas.
Num certo sentido, Rouch é quem retoma o fio
solto do Nanook de Flaherty (1924) que, desde
a sua apropriação pelo cinema didático-expositivo
de Grierson (década de 1930) vinha se desenvolvendo
em torno do mito do anti-ilusionismo. É Jean
Rouch o grande nome a re-fundar (no sentido me que retoma
a movimentação pioneira de Flaherty) o
lugar do "documentário" não
como um espaço de representação
alijado da ficção, mas como um conjunto
de conjugações cênicas que, ainda
que se caracterizando pelo desvio da grande dramaturgia,
não a negavam – e, muito menos, se queriam como
imagens de "outra natureza". A partir do movimento
de um certo cinema pós-etnográfico (e
seus desdobramentos em direção ao cinema-veritè),
Jean Rouch investiga o potencial expressivo não
mais do teatro bem-comportado da grande indústria,
mas as possibilidades de uma cena-outra: um teatro de
um real vasado por flutuações de cena,
em que os fatos narrados e a distensão simbólica
das palavras e do improviso se cruzam e se reinventam.
Onde os personagens são atravessados, perfurados
em máscaras, numa espiral em que se perde qualquer
sentido de referencial cristalino, em que o estatuto
da imagem é, antes de tudo, uma emergência
espectatorial.
O próprio sentido da palavra "personagem"
perde seu lugar de máscara delimitada por um
"papel" (articulado por um ator) – o sentido
de atuação perde seu antagonismo em relação
a uma suposta autenticidade da vida. Rouch costumava
dizer que não se interessava pela "Verdade
no cinema, mas pela Verdade DO cinema". Isso não
dito como um elogio do falso, da simulação
ou da farsa – não: como Eu um negro e
Jaguar denotam, o cinema de Rouch não
pode ser filiado a qualquer tentativa de denunciar (ou
mesmo celebrar) a imagem como farsa (postura um tanto
cínica, tomada por parte de seus "discípulos").
O que rouch quer é justamente ultrapassar esse
maniqueísmo juvenil, e não jogar com ele.
Abrindo o leque para um olhar que busque não
mais a vida em si mesma (ideal de captura), mas o teatro
emergencial da vida-posta-em-cena: aquela que Rouch
costumava chamar de "superverdadeira".
A câmera em Jean Rouch deixa de "perseguir"
a vida, e passa a ser, ela mesma, uma ferramenta de
catalização de suas possibilidades. Se
desde o ritual cênico de Os Mestres
Loucos (1954) Jean Rouch já esboçava
as possibilidades apaixonantes desse seu cinema-novo,
é na dupla jornada de Eu, um negro e Jaguar
que sua obra alcança o ápice de sua invenção,
em dois filmes que ultrapassam gêneros, que despistam
categorias.
Ao assimilar os elementos urbanos, europeizados e disformes,
que costumavam passar ao largo do olhar "documentarista"
mais tradicional (mais preocupado em mumificar bibelôs
culturais do que em se embrenhar no imaginário
de seus personagens), ambos os filmes derrubam tabus
da representação do lugar-África
no cinema. Jean Rouch provoca justamente por não
procurar em seus jovens "atores" qualquer
sentido museológico do que seria uma cultura
local "pura" ou "exemplar", definitiva.
Para isso, costura uma câmera de recortes, de
instantâneos de imagem, que acompanha as jornadas
e o cotidiano de seus personagens, mesclando atos e
fatos-marcados com momentos de fruição
irregular, efêmera, onde os atores não
são instrumentos da narrativa, mas fundadores
dela – encarando a lente, gesticulando para ela, fazendo
caretas, rindo. Jaguar foi rodado quase que ao
mesmo tempo da realização de Os Mestres
Loucos, mas foi finalizado quase 15 anos depois.
É, portanto, Eu, um negro o primeiro longa-metragem
de Rouch a encontrar seu formato final, e é nele
que Rouch vai exercitar aquela que é a maior
invenção artesanal de seu cinema, o grande
dispositivo rouchiano: a subversão da
narração em off a partir do deslocamento
do lugar da voz-que-narra.
Quando o cineasta convida seus próprios personagens
a narrar suas aventuras de modo improvisado, a partir
de uma meia dúzia de orientações
roteirizadas na montagem, a palavra lançada sobre
a imagem se transmuta. Tradicionalmente utilizada como
ferramenta de normatização, de frieza,
de descrição imparcial dos eventos, a
narração em off "escapole"
da voz do realizador e é entregue aos próprios
personagens que narram o filme enquanto assistem a projeção
do copião montado pela primeira vez. Imagens
em que são ao mesmo tempo "eles mesmos"
e os personagens "inventados" para (e pela)
narrativa. Cada fotograma passa a carregar ao mesmo
tempo uma camada de fabulação e de desvio
dela: de real latente e de gesto marcado.
Para que esse liquidificador possa funcionar (o cinema
de Rouch é sempre uma engrenagem fina em movimento)
a montagem é instrumento central, mesclando as
imagens mais encenadas (como a da luta de boxe de Eu,
um negro) e os instantes de quase-deriva da câmera
– incentivando, assim, que seus narradores de improviso
joguem com as cenas, assumindo-se como oradores de outros
que são eles, e deles mesmos que são
outros. As memórias dos atores se misturam
ao que deveriam ser as falas "dubladas" dos
personagens (a ausência de som-direto é
uma artimanha em ambos os filmes) – e, em certos, instantes,
é como se houvessem duas vozes vibrando na mesma
fala. É notório o episódio em que
um dos personagens de Eu, um negro é preso
quando – interpretando o "personagem" que
inventou para si mesmo (um agente da CIA infiltrado
no Níger, figura decalcada assumidamente do grande
cinema norte-americano) – desafia um policial local
em plena praça pública. Essa sujeira,
esse acaso, esse lugar onde não há margens
para as imagens, é que funda a grande experiência
de Rouch e seus parceiros-personagens. Amarrada por
essa narração sem eixo, salpicadas de
falas, de risadas, de fragmentos de memória que
ao mesmo tempo narram e comentam o filme, travando com
o espectador não uma relação unilateral
de discurso, mas uma verdade-cena compartilhada. Câmera,
atores e espectador são todos peças de
um curto-circuito interativo onde não existe
terreno firme, mas apenas insinuações
de sentidos.
A forma como os personagens re-narram a história
que eles mesmos criaram, a forma como inventam as memórias
e os supostos pensamentos em off desses seus
outros, é tão mais profunda quanto mais
aposta nessa superficialidade.
O que interessa a Rouch é justamente essa tenção
simbólica, essa defasagem entre a cena pro-posta
e a cena re-posta. É aí que o lugar, o
sentido de desbravamento "etnográfico"
aparece em Rouch não mais como um olhar de observação
de rituais alheios à câmera e/ou "exemplares",
mas como ritual em si mesmo, onde seus personagens podem
agir para a câmera e encarnar personagens-outros
como quem inventa a si mesmos.
Ao contrário de um denuncismo negativista, o
que se vê em ambos os filmes é um desejo
de transformar a crítica ao controle sócio-cultural
e a cr6onica da vida sub-capitalista não num
gesto de negação, mas num exercício
de digestão do real já-dado e transmutado
em expressões e identidades múltiplas
que sobrevivem e se esquivam da hegemonia cultural,
seja ela européia ou norte-americana (é
impossível não citar aqui a grande influência
que esse movimento teve sobre o cinema de Godard).
É riquíssima (e política) a forma
com que Rouch aposta não numa melancolia claustrofóbica,
mas numa possibilidade de energia e jovialidade em seus
personagens, construindo junto com eles as pistas de
uma imagem/palavra em que não há "objetos"
que se deixam domar, mas personagens que interagem com
a câmera e se imaginam (se fazem em imagens) para
além delas.
Entre os personagens pré-montados (nos breves
roteiros escritos para os filmes) e os personagens além-cena
de seus protagonistas não-atores, Jaguar
e Eu, um negro flutuam, menos interessados em
encontrar porto-seguro do que dar margem a essa flutuação.
Dois filmes em que os gestos de seus personagens são
a arena para a reflexão e onde o irreal deixa
de ser sinônimo de alienação ilusionista,
mas um sinal de pregnância do desejo e do sonho,
quebrando as normas de uma paisagem africana comumente
(e insistentemente) retratada/descrita/taxada como sinônimo
do desastre, da vitimização, da miséria
humana.
Se há miséria na cidade de Treichville
e nas estradas africanas, se seus personagens perambulam
pelas ruas de cidades empobrecidas e sem rumo, se são
perseguidos pela polícia, se sobrevivem em empregos
provisórios e precários, isso não
lhes tira a possibilidade de se indispor, de levantar
a voz, de se esquivar, de se inverter. Há uma
alegria incontornável e inimitável em
Eu, um negro e em Jaguar e que é
fruto justamente desse sentimento de positividade, de
afirmação do espírito que toma
as imagens. Um espírito vivaz que, para
Rouch, se faz ali: eternizadas no efêmero, conjugadas
em forma de cena. E por isso é tão importante
o sentido de artifício em Rouch; de imagem
arquitetada no encontro da câmera com o ator,
e do filme com o espectador. Nesse ultrapassamento de
fronteiras, reside uma afirmação da própria
vida como um artesanato de encontros, de amizades, de
imaginação; e de liberdade.
"...o problema todo é saber manter a sinceridade,
a verdade para com o espectador, nunca esconder o fato
de que estamos diante de um filme...Uma vez que estabelecido
esse pacto de sinceridade entre filme, atores e espectador,
quando ninguém está enganando ninguém,
o que interessa para mim é a introdução
do imaginário, do irreal. Usar o filme para contar
aquilo que apenas pode ser contado em forma de filme."
(Rouch)
Felipe Bragança
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