O TEATRO VASADO DO REAL
Eu, um Negro (1959) e Jaguar (1954-67)

Eu, um negro e Jaguar: dois gestos de um cinema em flagrante delito de invenção, alegria do pôr-em-cena e êxtase da encenação compartilhada. Uma celebração da fábula, da resistência do corpo e da palavra diante da opacidade do real já-dado. Cinema em construção redobrada, camadas sobre camadas, de verdades adoravelmente forjadas e, a um só tempo, inimitáveis em sua emergência.

"A ficção é o único caminho para se penetrar a realidade"

Essa frase é, antes de tudo, uma provocação. Jean Rouch sabia disso. Seu fazer cinema dependia desse jogo, dessa fricção. Mestre de mestres, Rouch é nome obrigatório para todo pensamento que se debruce sobre o pôr-em-cena cinematográfico e sobre os diferentes estatutos de Verdade (e representação) atribuídos às imagens e a seu papel narrativo.

Etnógrafo decepcionado com a rigidez acadêmica do "real" sociológico, desapontado com as normas de representação "isenta" de um cinema para museus, Jean Rouch começa a trilhar, a partir da década de 50, uma das obras fundamentais para tudo o que se pode delinear hoje como o cinema moderno. Comumente associado a um suposto "documentarismo", Rouch é, em verdade, o primeiro cineasta a reagir de forma sistemática e estrutural aos territórios normatizados da "ficção" e do "documentário" (como compreendidos na primeira metade do século XX). Longe de qualquer niilismo anti-documentarista, o cinema de Jean Rouch não nega barreiras de representação por um possível caráter destrutivo, mas justamente pela forma como corrói, de forma positiva, os parâmetros de construção das cenas, entrecruzando os clichês da dita "ficção" e do fazer "documental" por dentro mesmo de suas fronteiras e dinâmicas.

Num certo sentido, Rouch é quem retoma o fio solto do Nanook de Flaherty (1924) que, desde a sua apropriação pelo cinema didático-expositivo de Grierson (década de 1930) vinha se desenvolvendo em torno do mito do anti-ilusionismo. É Jean Rouch o grande nome a re-fundar (no sentido me que retoma a movimentação pioneira de Flaherty) o lugar do "documentário" não como um espaço de representação alijado da ficção, mas como um conjunto de conjugações cênicas que, ainda que se caracterizando pelo desvio da grande dramaturgia, não a negavam – e, muito menos, se queriam como imagens de "outra natureza". A partir do movimento de um certo cinema pós-etnográfico (e seus desdobramentos em direção ao cinema-veritè), Jean Rouch investiga o potencial expressivo não mais do teatro bem-comportado da grande indústria, mas as possibilidades de uma cena-outra: um teatro de um real vasado por flutuações de cena, em que os fatos narrados e a distensão simbólica das palavras e do improviso se cruzam e se reinventam. Onde os personagens são atravessados, perfurados em máscaras, numa espiral em que se perde qualquer sentido de referencial cristalino, em que o estatuto da imagem é, antes de tudo, uma emergência espectatorial.

O próprio sentido da palavra "personagem" perde seu lugar de máscara delimitada por um "papel" (articulado por um ator) – o sentido de atuação perde seu antagonismo em relação a uma suposta autenticidade da vida. Rouch costumava dizer que não se interessava pela "Verdade no cinema, mas pela Verdade DO cinema". Isso não dito como um elogio do falso, da simulação ou da farsa – não: como Eu um negro e Jaguar denotam, o cinema de Rouch não pode ser filiado a qualquer tentativa de denunciar (ou mesmo celebrar) a imagem como farsa (postura um tanto cínica, tomada por parte de seus "discípulos"). O que rouch quer é justamente ultrapassar esse maniqueísmo juvenil, e não jogar com ele. Abrindo o leque para um olhar que busque não mais a vida em si mesma (ideal de captura), mas o teatro emergencial da vida-posta-em-cena: aquela que Rouch costumava chamar de "superverdadeira".

A câmera em Jean Rouch deixa de "perseguir" a vida, e passa a ser, ela mesma, uma ferramenta de catalização de suas possibilidades. Se desde o ritual cênico de Os Mestres Loucos (1954) Jean Rouch já esboçava as possibilidades apaixonantes desse seu cinema-novo, é na dupla jornada de Eu, um negro e Jaguar que sua obra alcança o ápice de sua invenção, em dois filmes que ultrapassam gêneros, que despistam categorias.

Ao assimilar os elementos urbanos, europeizados e disformes, que costumavam passar ao largo do olhar "documentarista" mais tradicional (mais preocupado em mumificar bibelôs culturais do que em se embrenhar no imaginário de seus personagens), ambos os filmes derrubam tabus da representação do lugar-África no cinema. Jean Rouch provoca justamente por não procurar em seus jovens "atores" qualquer sentido museológico do que seria uma cultura local "pura" ou "exemplar", definitiva.

Para isso, costura uma câmera de recortes, de instantâneos de imagem, que acompanha as jornadas e o cotidiano de seus personagens, mesclando atos e fatos-marcados com momentos de fruição irregular, efêmera, onde os atores não são instrumentos da narrativa, mas fundadores dela – encarando a lente, gesticulando para ela, fazendo caretas, rindo. Jaguar foi rodado quase que ao mesmo tempo da realização de Os Mestres Loucos, mas foi finalizado quase 15 anos depois. É, portanto, Eu, um negro o primeiro longa-metragem de Rouch a encontrar seu formato final, e é nele que Rouch vai exercitar aquela que é a maior invenção artesanal de seu cinema, o grande dispositivo rouchiano: a subversão da narração em off a partir do deslocamento do lugar da voz-que-narra.

Quando o cineasta convida seus próprios personagens a narrar suas aventuras de modo improvisado, a partir de uma meia dúzia de orientações roteirizadas na montagem, a palavra lançada sobre a imagem se transmuta. Tradicionalmente utilizada como ferramenta de normatização, de frieza, de descrição imparcial dos eventos, a narração em off "escapole" da voz do realizador e é entregue aos próprios personagens que narram o filme enquanto assistem a projeção do copião montado pela primeira vez. Imagens em que são ao mesmo tempo "eles mesmos" e os personagens "inventados" para (e pela) narrativa. Cada fotograma passa a carregar ao mesmo tempo uma camada de fabulação e de desvio dela: de real latente e de gesto marcado.

Para que esse liquidificador possa funcionar (o cinema de Rouch é sempre uma engrenagem fina em movimento) a montagem é instrumento central, mesclando as imagens mais encenadas (como a da luta de boxe de Eu, um negro) e os instantes de quase-deriva da câmera – incentivando, assim, que seus narradores de improviso joguem com as cenas, assumindo-se como oradores de outros que são eles, e deles mesmos que são outros. As memórias dos atores se misturam ao que deveriam ser as falas "dubladas" dos personagens (a ausência de som-direto é uma artimanha em ambos os filmes) – e, em certos, instantes, é como se houvessem duas vozes vibrando na mesma fala. É notório o episódio em que um dos personagens de Eu, um negro é preso quando – interpretando o "personagem" que inventou para si mesmo (um agente da CIA infiltrado no Níger, figura decalcada assumidamente do grande cinema norte-americano) – desafia um policial local em plena praça pública. Essa sujeira, esse acaso, esse lugar onde não há margens para as imagens, é que funda a grande experiência de Rouch e seus parceiros-personagens. Amarrada por essa narração sem eixo, salpicadas de falas, de risadas, de fragmentos de memória que ao mesmo tempo narram e comentam o filme, travando com o espectador não uma relação unilateral de discurso, mas uma verdade-cena compartilhada. Câmera, atores e espectador são todos peças de um curto-circuito interativo onde não existe terreno firme, mas apenas insinuações de sentidos.

A forma como os personagens re-narram a história que eles mesmos criaram, a forma como inventam as memórias e os supostos pensamentos em off desses seus outros, é tão mais profunda quanto mais aposta nessa superficialidade.

O que interessa a Rouch é justamente essa tenção simbólica, essa defasagem entre a cena pro-posta e a cena re-posta. É aí que o lugar, o sentido de desbravamento "etnográfico" aparece em Rouch não mais como um olhar de observação de rituais alheios à câmera e/ou "exemplares", mas como ritual em si mesmo, onde seus personagens podem agir para a câmera e encarnar personagens-outros como quem inventa a si mesmos.

Ao contrário de um denuncismo negativista, o que se vê em ambos os filmes é um desejo de transformar a crítica ao controle sócio-cultural e a cr6onica da vida sub-capitalista não num gesto de negação, mas num exercício de digestão do real já-dado e transmutado em expressões e identidades múltiplas que sobrevivem e se esquivam da hegemonia cultural, seja ela européia ou norte-americana (é impossível não citar aqui a grande influência que esse movimento teve sobre o cinema de Godard).

É riquíssima (e política) a forma com que Rouch aposta não numa melancolia claustrofóbica, mas numa possibilidade de energia e jovialidade em seus personagens, construindo junto com eles as pistas de uma imagem/palavra em que não há "objetos" que se deixam domar, mas personagens que interagem com a câmera e se imaginam (se fazem em imagens) para além delas.

Entre os personagens pré-montados (nos breves roteiros escritos para os filmes) e os personagens além-cena de seus protagonistas não-atores, Jaguar e Eu, um negro flutuam, menos interessados em encontrar porto-seguro do que dar margem a essa flutuação. Dois filmes em que os gestos de seus personagens são a arena para a reflexão e onde o irreal deixa de ser sinônimo de alienação ilusionista, mas um sinal de pregnância do desejo e do sonho, quebrando as normas de uma paisagem africana comumente (e insistentemente) retratada/descrita/taxada como sinônimo do desastre, da vitimização, da miséria humana.

Se há miséria na cidade de Treichville e nas estradas africanas, se seus personagens perambulam pelas ruas de cidades empobrecidas e sem rumo, se são perseguidos pela polícia, se sobrevivem em empregos provisórios e precários, isso não lhes tira a possibilidade de se indispor, de levantar a voz, de se esquivar, de se inverter. Há uma alegria incontornável e inimitável em Eu, um negro e em Jaguar e que é fruto justamente desse sentimento de positividade, de afirmação do espírito que toma as imagens. Um espírito vivaz que, para Rouch, se faz ali: eternizadas no efêmero, conjugadas em forma de cena. E por isso é tão importante o sentido de artifício em Rouch; de imagem arquitetada no encontro da câmera com o ator, e do filme com o espectador. Nesse ultrapassamento de fronteiras, reside uma afirmação da própria vida como um artesanato de encontros, de amizades, de imaginação; e de liberdade.

"...o problema todo é saber manter a sinceridade, a verdade para com o espectador, nunca esconder o fato de que estamos diante de um filme...Uma vez que estabelecido esse pacto de sinceridade entre filme, atores e espectador, quando ninguém está enganando ninguém, o que interessa para mim é a introdução do imaginário, do irreal. Usar o filme para contar aquilo que apenas pode ser contado em forma de filme." (Rouch)

Felipe Bragança

 

 





Oumarou ou Edward G. Robinson, herói de Eu, um Negro