A contestação
do modelo civilizatório europeu, através
do, a princípio, estranho e violento ritual dos
haouka, na Costa do Ouro africana. Em Os Mestres
Loucos, Jean Rouch se detém sobre a estratégia
fundamental dos povos colonizados para resistir aos
colonizadores: apropriar-se dos signos que efetuam a
dominação e retrabalhá-los, questionando-lhes
a naturalidade, a fim de assegurar a inserção
e a sobrevivência em uma sociedade injusta e hostil.
Accra, Costa do Ouro, África. Centro urbano e
comercial, sob domínio britânico, cuja
efervescência econômica atrai populações
de todo continente, ávidas por empregos. No mercado
de sal, reúne-se, todo dia, o grupo de trabalhadores
africanos que professa a cerimônia dos haouka,
filmada por Rouch. Mesmo que pareça bárbaro
aos olhos caucasianos de Ocidente, o ritual em questão,
porém, nada mais representa que a reação
dos personagens ao exemplo de civilização
imposto pelo sistema colonial europeu, a saber, branco,
cristão, capitalista e tecnológico, enraizado
no preconceito racial, na profunda separação
entre as classes sociais, no controle do poder político
local e na violência militar.
Assim, os deuses haouka, bem como o culto religioso
que os envolve, não se originam na tradição
cultural africana, mas nascem do contato da África
subdesenvolvida e miserável com as potências
capitalistas coloniais que a exploram. Deuses da técnica,
de uma religião que se alimenta da modernidade,
seja ao copiar os protocolos e a estrutura hierárquica
dos conquistadores ingleses, seja ao aludir às
máquinas características do progresso
tecnocientífico: o "maquinista", o
"piloto de caminhão", os "sentinelas"
(que guardam o lugar sagrado com falsos rifles de madeira),
o "general", o "tenente", o "caporal
de serviço", a "prostituta" e
o "comandante" (que fala e ordena somente
em francês, remetendo aos primeiros europeus na
Costa do Ouro), além de outras entidades que
se referem às transformações da
milenar economia de subsistência africana em parte
integrante da divisão internacional do trabalho
como colônias ricas em mão-de-obra barata
e em recursos naturais, cujas cidades experimentam relativa
prosperidade graças aos investimentos metropolitanos
na melhoria da infra-estrutura para a espoliação
comercial.
Possuídos pelas divindades, os integrantes, em
estado de transe catártico, reencenam o comportamento
e as formas de interação social praticados
pelos brancos. Não se trata, contudo, de aculturação,
ou seja, da simples duplicação inocente
e mecânica da realidade que observam diariamente
na convivência desigual com o colonizador, o que
confirmaria assim a suposta superioridade racial européia
sobre os povos atrasados da África. Uma vez que
Jean Rouch estabelece o corte magistral que contrapõe
o ritual dos haouka ao da parada militar britânica
no qual aquele se baseia, torna-se clara a estratégia
de desconstruir o modelo colonial de organização
política da sociedade africana, tomado como natural
e verdadeiro, para mostrá-lo tão arbitrário
quanto qualquer outro, apenas mais um meio de dominação
que se valida pela força das armas e pelo poderio
financeiro da Europa desenvolvida.
Desterritorializados pela invenção da
prática haouka, a rede sígnica (na qual
se encontra o ridículo penacho no capacete do
comandante militar inglês) que antes reificava
a supremacia européia, agora é posta em
perspectiva para que os povos africanos constantemente
marginalizados pelo processo colonial fundem suas próprias
coordenadas dentro da sociedade que, via de regra, os
classifica como meros animais, criando, em conseqüência,
um novo espaço para o exercício da subjetividade
e da liberdade. É ao se identificar com o colonizador
– e ao contestá-lo – que o colonizado se legitima
e se faz ouvir no meio social excludente em que vive.
Se, em geral, vemos somente a alienação
dos dominados, em Os Mestres Loucos Jean Rouch,
ao contrário, expõe a estupidez dos dominantes.
Paulo Ricardo de Almeida
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