Osama
Siddiq Barmak, Osama, Afeganistão/Japão/Irlanda, 2003

Depois da projeção, fica bastante fácil entender porque Osama ganhou o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro este ano, além dos três prêmios especiais conquistados em Cannes em 2003. O filme é aquilo mesmo que o ocidente esperava do "primeiro filme rodado no Afeganistão depois da guerra". A temática é justamente aquela que traduzia o país antes da (e durante a) guerra: o tratamento desumano dado pelo talibã à mulher. Nesse sentido, Osama cumpre sua função como filme-documento (não como documentário, frise-se bem): é um manifesto de que o novo país, ressurgido das cinzas não dos ataques americanos, mas da opressão religiosa de anos - aquela que produziu as rugas no rosto e abateu os olhos verdes de Sharbat Gula, a moça afegã que virou símbolo ao mesmo tempo (e em dois tempos) da beleza da diversidade cultural e do horror da não aceitação do outro. Osama é o Afeganistão que o mundo já conhecia, o único Afeganistão que o mundo poderia compreender.

Pois é este o elemento-chave para o filme: para se fazer legível para o mundo, o filme se fez espelho da dramaturgia do mundo, do olhar do mundo. Osama é um filme ocidental feito por um afegão. Um afegão que estudou na Rússia e que pouco viveu em seu país, é verdade, mas isso não precisaria ser uma questão. Se é, isso se dá apenas porque, no limite, seu filme se desconstrói como figura cinematográfica para se construir como discurso político.

Osama começa com uma filmagem que faz lembrar o cinema iraniano (ou a imagem deste que se tornou um outro clichê cinematográfico): uma câmera documental percorre as ruas de uma cidade típica afegã, ou seja, aquelas mostradas pela TV (e por alguns filmes). Pouco se consegue diferenciar paredes de calçadas, todos parecem amontoados pedregosos e áridos. Mostra em tom subjetivo, a denunciar a presença do cineasta, uma manifestação de mulheres de burca, que querem a liberdade de mostrar o rosto. Um menino pede dinheiro e serve como guia para a manifestação e sua dissolução pelos talibãs. A partir dali, o dado essencial de que o Afeganistão é o país em que a mulher é oprimida por excelência será a única informação necessária para acompanhar a trama.

Trama essa que recorrerá a um drama-padrão: a história da mulher que se faz passar por homem para conquistar uma posição que almeja. Daí, vê-se na tela o desenrolar da história da menina, transformada no menino Osama, que tentará (um bocado obrigada pela mãe e pela avó) a transitar no meio dos meninos.

O filme coleciona, então, situações sempre definidas por duas pautas: 1) apresentar à menina (e ao público) a rotina do hábito masculino afegão; 2) colocar a personagem em uma corda-bamba de risco de descoberta de sua condição. Tudo para justificar uma metáfora: a revelação de que o menino é uma menina se dá quando ela se vê (e é vista) diante de suas regras: a menstruação a denuncia. Ora, tornar-se uma mulher, para a personagem, assume uma dupla dimensão, o que serve como elemento de generalização do drama: é em busca do direito de tornar-se mulher que as mulheres do Afeganistão estão. A trama ser construída em torno de uma adolescente é o centro da simbologia.

O que conduz para a outra metáfora do filme: Osama. Ora, é inegável o efeito que o título produz. Mas a operação resulta, na verdade, em uma desosamização: não há nada de Bin Laden ali. Mais que isso: Osama é o nome mais dado a meninos no Paquistão e no Afeganistão nos últimos anos. Ser Osama é ser José, João, é ser só mais um, é ser qualquer um, ser todos. A menina de Osama é todas as mulheres afegãs e, mais, é o próprio Afeganistão. O que está em jogo é fazer possível a semiologia da desburquização da mulher, através da demonstração dos horrores da burca.

O filme dialoga muito bem com um irmão gêmeo: Cinco Horas da Tarde, de Samira Makhmalbaf. Neste filme, o primeiro rodado no país depois da guerra, mas sem a nacionalidade local, o feminino também é visto como um universal. Em ambos, as mulheres querem ser livres para exercer a feminilidade à americana. A operação de Osama não chega a ser nociva como a do filme da filha de Mohsen Majhmalbaf (no qual o feminino é definido pelo desejo de se usar saltos altos), mas trabalha com considerável inocência: a mulher é igualmente plana, apenas um objeto para a representação do movimento opressivo talibã.

Alexandre Werneck