Porque já há
maturidade suficiente no cinema brasileiro para deixarmos
de lado essas muletas apriorísticas de gênero.
E não há nada mais pobre do que um filme
que quer ser, "antes de tudo", um "documentário".
Porque "documentário brasileiro" é
uma expressão vazia, de cunho agregador, mas
empobrecedor, que visa lustrar filmes fracos e obras
pobres, ao se aproveitar da beleza de uns poucos filmes
(transformados em exemplos de sucesso). Não há
qualquer outro sentido em se falar desse tal "documentário
brasileiro" se não como exercício
de filiação gratuita de filmes.
Porque não se pode chamar, por exemplo, Eduardo
Coutinho de "documentarista" como se assim
o colocássemos numa redoma ao mesmo tempo de
adoração e de amenização
de sua obra. Seus filmes não são apenas
"grandes documentários", ou grandes
porque "documentários". Seu
método, sua ética-dietética de
construção discursiva, ultrapassa qualquer
ideal de documento, e nada tem a ver com as entrevistas
de descrição temática, utilizadas
por outros cineastas. São de outra natureza!
Porque é uma farsa querer colocar na mesma prateleira
as entrevistas de um cinema como o de Coutinho e de
um filme como À Margem da Imagem. Não
importa que usem o mesmo instrumento (as entrevistas)
– suas músicas são totalmente dissonantes.
Assim como o uso de instrumentos diferentes (os melodrama
ficcionais de Walter Salles e o denuncismo documental
do filme de Mocarzel) podem tocar notas muito parecidas.
Porque quando um jovem cineasta como Paulo Sacramento
nos dá uma obra-prima como O Prisioneiro da
Grade Ferro, não se trata de um fruto do
"documentarismo" brasileiro. E seu filme está
muito além de possíveis cartilhas ou escolas
– ou melhor: não é fruto dessa ou daquela
abordagem apenas. É fruto de um caldo que vai
além dos documentarismos de ocasião.
Porque o "documentário brasileiro",
se é um fenômeno hoje, é antes de
tudo um fenômeno de caráter econômico:
retratando a alternativa de muitos jovens cineastas
por projetos de baixo-orçamento e o interesse
das TVs a cabo em mediar questões sócio-culturais
contemporâneas através de aproximações
audiovisuais menos rasteiras do que as do telejornalismo,
mas sem competir com a grande dramaturgia televisiva.
E ponto.
Porque "documentário" não é,
nem nunca foi, um "gênero". Assim como
o cinema "de ficção", o "documentário"
significou antes uma formatação a uma
espécie de super-gênero (uma categoria)
onde todo e qualquer filme que não se enquadrasse
nos modelos rígidos do cinema-de-ficção
(outro super-gênero), era enquadrado (se excetuando
o lugar menor dedicado ao cinema "de animação").
Porque está claro que "documentário"
não define sequer a ferramenta utilizada ou sua
forma de relação representacional com
o público. Lembremos que o melhor filme policial
brasileiro dos últimos anos foi Ônibus
174 – proposta de filme-narrativo que constrói
suas cenas em torno de entrevistas que narram eventos
e fragmentos de imagens de TV. Nada mais diferente da
delicadeza estética e intimista de Nelson
Freire, por exemplo. Ou seja, não há
nenhuma irmandade prevista entre "documentários"
(ou sua forma de realização) senão
o desejo comum de se desviar da "grande ficção".
Porque esse cinema da não-ficção
(da nova-ficção esboçada por Flaherty
em Nanook) surge antes como reação
desviante por dentro da cristalização
do grande cinema, do que como desejo de negar a ficcionalização
da vida. E se é Grierson quem inventa o uso da
palavra "documentário" para definir
um ideal de cinema não-ilusionista (supostamente
inspirado pelo cinema de Flaherty), esse termo já
não suporta o peso de seus significados possíveis.
Porque "documentário" termina, hoje,
por ser tudo aquilo que não se encaixa no modelo
bem comportado (argumento-personagem-ator-cena) do cinema
tradicional: toda forma de encenação em
que o pacto personagem-câmera-espectador se esquiva,
entra em viés em relação ao modelo
(esse sim, cristalizável e reproduzível)
da indústria "ficcional".
Porque sendo um cinema que antes de qualquer coisa é
definido pela ausência de um pacto pré-estabelecido,
o documentário será, antes de tudo, mais
do que uma só coisa, mas sempre um "outro".
Nesse sentido, o termo negativo da não-dramaturgia
me parece talvez mais propício (ainda que remeta
a enganadora idéia da falta de invenção).
Porque, embora o desvio em questão é um
desvio de um mesmo objeto idealizado (a grande ficção),
seus desvios não são convergentes.
E sua natureza será, justamente, a invenção
de novos pactos de cena, e não a reiteração.
Porque, em verdade, o que se viu após o impacto
da cinematografia de Jean Rouch (e das experiências
limítrofes do cinema-direto norte-americano)
é que o dito "cinema documentário"
como território de fórmulas para o desvelamento
do real tinha se esgotado em si mesmo. O sentimento
do "real", do "ao vivo", já
havia sido alcançado no limite de sua expressão
(na figura das câmeras leves, do som-direto, da
televisão). Missão cumprida enquanto pesquisa
de linguagem e horizonte possível, esse sentimento
de "real" deixa de ser suficiente para responder
à inquietude do próprio cinema.
Porque, depois que o telejornalismo assume o papel de
mediador maior da memória coletiva – o "documentarismo"
dos cinejornais, entra em colapso. A reportagem audiovisual
(com seu dinamismo diário e difusão fragmentada)
ocupa o lugar da exposição dos fatos e,
dessa forma, lança o (até então
bem-comportado) "documentário" para
um (saudável) vazio.
Porque se o real existe hoje enquanto objeto potencial
e insinuado do cinema, ele deixa de ser objeto-de-caça
e se torna motricidade-em-ato para uma formulação
para além dele. O cinema de não-ficção
deixa de ser "sobre" seus objetos para se
tornar um exercício de olhares "através".
Porque não há nada mais diferente
de um "documentário" do que outro "documentário".
Eu não vou falar sobre o "documentário
brasileiro"...
Porque não há mais linguagem de ficção
e linguagem do real. Há sim, formas de
aproximação, de conjugação
de discursos. Assim como teremos projetos de valor totalmente
diversos dentro da dita "ficção"
(do melodrama social de Walter Salles à expressividade
catártica de Bressane), é muito pobre
colocar os filmes de não-ficção
na mesma prateleira. Pobre e inútil (inverossímel
até!) como chamar Eduardo Coutinho e Silvio Tendler
de "colegas documentaristas". Eles não
fazem a mesma arte. Eles não são colegas
de "gênero"...
Porque não há nada mais diferente de um
cinema biográfico-histórico-narrativo
do que um cinema de exposição das palavras
e fabulação de imaginário. Em outras
palavras: o recente Glauber-labirinto do Brasil
(de Silvio Tendler) em nada se aparenta com o trabalho
de Eduardo Coutinho em um Santo Forte. Ou seja:
assim como o filme de Tendler está mais perto
das biografias históricas de um Sérgio
Rezende, a obra de Coutinho encontra ecos maiores numa
quase-fábula como Madame Satã (Karim
Ainöuz) do que em qualquer filme brasileiro recente.
Mesmo aqueles, chamo atenção, que também
se atenham ao uso do dispositivo de entrevistas com
não-atores para se constituir.
Porque se um filme sobre um genial e popular Paulinho
da Viola pode ser não mais do que medíocre;
e um filme com senhoras aposentadas e ociosas de um
edifício em Copacabana pode dar fruto a um grande
filme (Edificio Master), certamente, a beleza
do cinema não está na descoberta do objeto
(assim como na ficção, o roteiro não
realiza o filme, apenas o potencializa), mas na sua
construção em filme. Um filme fraco pode
ser realizado a partir de um livro genial ou de um personagem
cativante...
Porque (isto posto e bem delineado): o que seria, então
esse suposto "documentário brasileiro"?
Existiria alguma massa unitária entre os filmes,
alguma movimentação estética que
os constituísse como um bloco apartado, por exemplo,
das obras dedicadas à ficção tradicional?
A resposta é clara: não.
Porque o que se vê é um grande número
de filmes dispersos, desintegrados. E mesmo que se procure
o diálogo, que este seja entendido da mesma forma
não-integralista com que vemos o diálogo
entre dois filmes de "ficção"como
Cidade de Deus e O Invasor, por exemplo.
Ou seja: não há prioridade de diálogo
entre esses supostos filmes "documentais"
– não há prioridade de filiação
entre eles.
Porque o que se merece destacar (para além dessas
valorizações baseadas numa suposta "natureza"
nobre), é que tem sido nesse território
do cinema da não-dramaturgia (da ficção-em-experimento)
que tem surgido algumas das expressões mais ricas
de nosso cinema. Mas isso não significa nos vangloriarmos
de 15, 20 filmes por ano, mas apenas uma constatação
simples e ancestral: a potência e riqueza das
imagens desviantes dos pré-dispostos da grande
ficção.
Porque "documentário", hoje (além
de categoria de edital e nicho para festivais de cinema),
não delineia nada. Ou seja, o dizer "documentário"
virou antes um elemento da produção
cultural do que um elemento propriamente cinematográfico.
E é perigoso que em prol dessa defesa da não-ficção,
tente-se colocar uma diversidade de filmes brasileiros
em torno de uma mesma gaveta da "qualidade".
Porque o documentário, enquanto nicho cultural,
ao mesmo tempo que cria espaço para a diferença,
acaba por limitar a emergência do novo para além
dessas fronteiras delineadas. Talhando um olhar diretivo
e "documentarista" que muitas vezes é
menos dos filme, do que do espectador.
Porque é um equívoco que um festival como
o Festival de Gramado crie um prêmio para o "melhor
documentário" e ignore os filmes assim enquadrados
em todas as demais categorias: roteiro, montagem , fotografia,
edição de som. Como se o cinema de não-ficção
fosse fruto do mero acaso ou que fosse (por outro viés)
menos cinema.
Porque não há, então, cinema documentário
brasileiro. Há cinemas brasileiros. Há
modos de cena. Invenções de narração.
Boas e ruins. Mais ou menos ricas. E é isso o
que deve nos importar... "Documentário"
(como a maliciosa cartela do trailer de O
Prisioneiro da Grade de Ferro intui) é, antes
de tudo, uma palavra dura e branca, escrita num fundo
negro, opaca e misteriosa, de onde tudo (e nada) pode
emergir.
Porque "documentário" é, acima
de tudo, esses abismos. E não há oportunismos
(ou filiações festivas), que possam mudar
isso.
Felipe Bragança
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