Um prólogo narrado pela protagonista
já se incumbe de explicar as razões de
seus tormentos: ela sonhava em ser atriz na infância,
uma nova Marilyn Monroe, mas, no decorrer dos anos,
carente da celebridade nunca obtida, e do consequente
conforto material, torna-se prostituta. Em alguns segundos,
conhecemos a bula. Todo o transcorrer da narrativa apenas
irá confirmar esse diagnóstico: o da criança
moldada pelo aborto de um sonho, sonho esse por sua
vez moldado pela lógica de uma sociedade (a fama,
a riqueza). Nossa sofrida heróina, quando adulta,
vive dois movimentos: conhece o amor ao contato com
uma lésbica reprimida (pela religião e
pela família) e mata seus clientes para se vingar
de seu meio (que a produziu).
Conclusão: o mundo é injusto e embrutecedor,
os homens são monstros em potencial, o amor é
inviabilizado nessas condições. Não
há lugar para nossa heróina. E o filme
constrói-se o tempo inteiro para justificar seus
assassinatos e culpar todos ao redor por ela ser como
ela é. Todos: um policial, os clientes, a namorada,
as taras do humano e suas fraquezas. Só ela merece
redenção, ninguém mais, nem mesmo
a platéia. Não por acaso, quando caminha
no corredor da morte, ela olha para trás; na
verdade, para a câmera, para os espectadores.
Somos todos culpados pela transformação
do sonho da menina em um pesadelo para a sociedade.
O fato de ser baseado em caso real, como nos informa
o letreiro ao final, apenas ressalta o teor de diagnóstico.
A criminosa não constitui ali um caso isolado,
uma personagem específica, um tipo com complexidades
psicológicas, mas uma produção
social mais ampla. Só assim pode-se legitimar
sua reação. É auto-defesa, digamos
assim. Para não ficar dúvidas, os clientes
(com uma exceção) são transformados
em réus (para o filme). Há o sádico
capaz de matá-la, o gordo patético com
ejaculação precoce, o policial escroto
e o outro já aposentado com esposa doente. Todos
são expostos a algum tipo de condenação
pela câmera. A sociedade é opressora. Não
dá um emprego quando a heroína procura
- embora nada tenha a oferecer, como mão de obra,
e não tem como competir com concorrentes. A opressão
está em todo canto.
Daí a decisão de se mostrar também
cenas da namorada da heróina com sua família:
outro tipo de opressão, essa de ordem moral.
No final, nem mesmo o amor da parceira resiste ao mundo.
Para se safar, ela dá as costas, cai fora, lava
as mãos. Dramaticamente, portanto, há
indução à compaixão, em
um primeiro momento, e depois ao entendimento. Haveria
algo de brechtiano nessa tentativa de nos fazer ver
a personagem como resultado de seu meio? Pobre Brecht.
Até porque essa lógica implicaria relativizar
outros personagens em vez de reduzi-los a vilões.
Ou a justificativa para atitudes serve apenas para uns?
Visualmente, impera a pobreza. O único refresco
é uma outra fusão de imagens, algo típico
de quem arma o plano de forma burocrática e,
na hora de montar, lança mão de expedientes
para distrair os olhos. Teríamos para enchê-los,
ou perturbá-los, o caso de Charlize Theron, premiada
com o Oscar. Atriz de evidentes encantos, foi enfeiada
para o filme: ganhou uns quilos e perdeu a sobrancelha.
Cabe um comentário que, nos levando a sair parcialmente
do filme, questiona citérios de avaliações,
mas apenas para voltar ao filme. Parece nítido
que a transformação física, e nada
além dela, foi suficiente para garantir o Oscar.
Os eleitores da Academia de Hollywood, afinal, são
devotos dessa mutação visual. Bom ator
para eles é aquele que, em nome da arte e do
profissionalismo (mais do profissionalismo que propriamente
da arte), coloca a vaidade no estômago. Basta
engordar ou emagrecer, carregar o rosto de maquiagem
(ou dispensá-la) para enfeiá-lo, para
perder o glamour. Esqueçamos quem é Charlize,
sua beleza fora do papel, sua mudança de aparência.
Não sobra nada. Na verdade, sobra: gestos caricatos,
pose postiça de mulher máscula, falta
de verdade. Vemos o esforço da interpretação
sem que esse processo seja auto-referencial. É
limite mesmo.
Cléber Eduardo
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