A pergunta se impõe: é
possível chamar de ato de caridade ou de honestidade
aqueles que são feitos apenas para que outras
pessoas tomem conhecimento e considerem seus realizadores
pessoas "caridosas" ou "honestas"? Não estariam
seus perpetradores automaticamente excluídos
dessas categorias, pela simples motivação
de seus atos? Pois a pergunta vale, quando pensamos
em Minha Vida sem Mim: como chamar de "sensível"
um filme que parece obcecado em cada plano em "parecer
sensível"? O filme usa uma série de artifícios
de linguagem que parecem se ligar à uma noção
de "sensibilidade" com tal frieza que há sempre
um inequívoco distanciamento entre o espectador
e o objeto deste dito "olhar sensível". Na verdade,
o problema parece ser de ordem dupla: com esses artifícios
o filme parece querer atingir o espectador como "sensível",
mas ao mesmo tempo negar sua condição
melodramática ou manipuladora. Só que
do jogo duplo não pode emergir mais do que um
esquizofrênico exercício de "morde-e-assopra"
cinematográfico.
Como se sabe, o tema do "doente terminal" é dos
mais explorados pela dramaturgia, especialmente nas
produções para TV que costumam passar
no nosso querido Supercine. A diretora Coixet parece
auto-consciente demais disso o tempo todo, querendo
fugir de ser enquadrada em tal categoria, sem no entanto
perceber que (lição que podia ter aprendido,
aliás, de seu padrinho artístico e produtor
executivo, Pedro Almodóvar) o abraço ao
melodrama não será nunca um problema em
si, e sim de que tipo de releitura de gênero se
poderá montar a partir dele, que honestidade
e entrega pode criar entre espectador e personagens,
entre espectador e narrativa (porque se o melodrama
é o gênero da entrega, por natureza, como
alcançá-la quando a diretora o nega?).
O que é toda a recente produção
de Almodóvar senão um diálogo em
alto nível com a tradição do melodrama?
Temos ainda outros felizes (com trocadilho) exemplos
recentes podem vir do estudo de caso de Todd Haynes
em Longe do Paraíso, ou do aparente mapeamento
da matriz genética latino-americana do gênero
melodramático por alguns cineastas argentinos
(o mais recente exemplo entrou em cartaz por aqui junto
com o filme de Coixet - Valentin, de Alejandro
Agresti).
Coixet parece ter vergonha o tempo todo de sua matriz
melodramática clara (mas, ora bolas, o filme
é narrado em off pela pessoa que vai morrer!),
e a evita tanto com procedimentos de linguagem (se filiando
ao "modus filmicus" do cinema independente pela granulação
e jogo cromático alterado da imagem, pela câmera
inquieta, pela montagem em cortes descontínuos)
quanto por golpes narrativos (o uso dos personagens
"offbeat", "estranhinhos", ou a negação
da morte como tema entre os personagens - evitando grandes
explosões de sentimentos). No entanto, como sua
confiança em seu talento de emocionar pela via
do distanciamento não a deixa segura, então
ela carrega na música, nos tons explicativos
da pior estirpe - aquele que tenta suprir a ausência
da possibilidade fílmica do artifício
do discurso interior do personagem (típico da
literatura, matriz, aliás, do filme - uma adaptação
literária), e até mesmo num uso quase
grotesco da câmera lenta, como no desfecho do
filme. Com isso, o filme trafega o tempo todo num meio
termo absolutamente covarde entre manipular e negar
que o está fazendo, bem envergonhado.
Mas, o pior de tudo é o trabalho com personagens
que ela opta por fazer por conta desta opção.
Definido que se trata de um filme "sensível",
que vai querer a adesão do espectador sem, no
entanto, deixar de ser "muderno", Coixet se agarra ao
mais triste método de manipulação:
o que nega tridimensionalidade, vida própria
aos personagens. Filmado com desejos de extremo realismo,
de "vida como ela é" (a câmera e o estilo
nos dizem isso o tempo todo), seu desenho de personagens
nada deixa a dever ao mais óbvio trabalho de
tipos: o marido compreensivo, o amante atormentado e
romântico, o médico amigo e emocionado.
Todos não passam disso: tipos - e uma boa pista
para isso é a escalação de figurinhas
fáceis do circuito "alternativo" do cinema mundial
em papéis mínimos, como que a emprestar
estampas aos seus personagens e prestígio ao
filme ao mesmo tempo (Amanda Plummer, para variar, faz
a "doidinha" de plantão, Maria de Medeiros surge
como uma cabeleireira excêntrica, etc). Destes,
o pior é mesmo Mark Ruffalo como o "amante extra-sensível",
um personagem tão ruim quanto a interpretação
do ator.
No meio dessa unidimensionalidade (que é bastante
melodramática, mas por isso mesmo anti-naturalista
por definição), mesmo a personagem principal
tenta ser afogada, por exemplo, por sua narração
em off - que a empresta qualidades de quase santa, de
figura que passa pelo martírio sem perder por
um segundo uma mistura de retidão de caráter
e compreensão da vida que não se poderia
esperar dela. Há uma necessidade de tornar a
ela também a encarnação da diretora:
"sensível", acima de tudo, mas sem perder jamais
a superioridade e compreensão com todos os seus
"anjos tortos" (o marido, as filhas, a mãe, a
amiga). Não há espaço aqui para
revolta com a condição da morte vindoura
- apenas uma amável despedida da vida, onde se
recoloca e direciona a vida de todos à sua volta,
como uma deusa de sabedoria e amor. A vida parece vista
de tão longe que, de fato, sua perda não
seria nada assim tão grave, no máximo
tristonho.
No entanto, existe um motivo plausível para esta
personagem nunca deixar completamente de ser pungente,
e nos manter minimamente interessados no filme, e este
motivo tem nome: Sarah Polley. Polley é uma atriz
que, desde que a vimos pela primeira vez (O Doce
Amanhã), sempre mostrou uma capacidade inata
de iluminar a tela nas suas passagens por ela, dar força
e vida interior a qualquer personagem (basta ver o ótimo
Madrugada dos Mortos). Aqui, ela não deixa
que o clima de "melodrama-blasé" que Coixet tenta
impor ao filme apague sua condição de
atriz: com uma mordida de lábios enquanto conversa
com o amante, com um esbolo de sorriso triste enquanto
se despede dele, com cada mínimo gesto na tela,
Polley parece um libelo contra a banalidade de um filme
que chega a conclusões profundas como "não
existe gente normal". Ela tenta, sozinha, elevar o filme
a algo mais do que Coixet parece conseguir fazer dele.
Não chega a conseguir, mas seus esforços
ao tentar tornam, pelo menos, o esforço do espectador
mais bem recompensado.
Eduardo Valente
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