O Principio da Incerteza
Os filmes de Jane Campion sempre colocam o cinéfilo
diante de um problema: as qualidades da diretora são
completamente inseparáveis dos defeitos. Há
outros diretores do qual se pode dizer o mesmo, mas
os defeitos de Campion tem uma tendência especial
em incomodarem de tão inseparáveis de
tudo aquilo que ela faz certo. Se alguém apontar
um momento de um filme de Campion que seja sublime e
outro que seja ridículo, não demorará
a encontrar alguém que dirá o inverso.
Em Carne Viva em nada muda este panorama: as
idéias são no mínimo incoerentes,
os personagens coadjuvantes são frágeis,
a narrativa inepta. Jane Campion nunca fez (e provavelmente
nunca vai fazer) um filme de todo bem resolvido, mas
o que ela consegue em Em Carne Viva mais do que
compensa todos estes problemas.
Isto tudo dito, o quê exatamente o filme faz?
Para começo de conversa ele nos dá o cada
vez mais raro prazer de ver um filme construído
por alguém que sabe o que está fazendo.
Há uma seqüência, ainda próxima
do começo, que ilustra isto muito bem: Meg Ryan
recebe carona de dois policiais; a câmera permanece
dentro do carro focada quase o tempo todo nela. Campion
corta para fora do carro duas vezes (na primeira para
uma menina caminhando por um beco, na segunda para um
prédio). As interrupções da situação
principal são calibradas num timing perfeito:
entrecortam a situação principal, uma
variação sobre o motivo na mulher sufocada
pelo universo masculino que o filme repete, até
poder dinamitá-lo nos pontos certos, para aliviá-lo
- da mesma forma que garantem uma evocação
da insegurança da personagem.
Não é por nada que a única característica
típica de um "thriller" que o filme se propõe
a cumprir é a criação de uma atmosfera.
O filme trabalha dobrado, da fotografia às muito
bem escolhidas locações, passando pelo
roteiro com excesso de suspeitos, para criar este clima
de ameaça. Mas o mistério contido na atmosfera
de Campion é de uma outra ordem. Porque a ameaça
aqui não é a de um "bicho-papão
serial killer" que o roteiro vagabundo propõe.
Trata-se de uma atmosfera que reforça um clima
constante de insegurança e incerteza nada reconfortante.
Campion trabalha buscando atacar nossos sentidos - mas
o sentido que apresenta é tudo, menos claro.
O filme vai progressivamente se afastando das certezas
da sua trama banal rumo a um pântano lamacento
onde sobra vulnerabilidade: primeiro da personagem,
mas com o tempo também do espectador (e aqui
as limitações da diretora são até
um ganho). Trata-se, é claro, de um estudo de
personagem – todos os filmes da diretora poderiam se
chamar Retrato de uma Mulher –, mas um onde até
pela confusão da cineasta, não sobra espaço
para nenhuma resposta clara. Ninguém parece concordar
a respeito do que Em Carne Viva diz, e isto me
parece muito mais um mérito, dentro da construção
que o filme toma, do que se acredita num primeiro momento.
As incertezas da personagem se dobram na incerteza do
espectador diante das imagens.
Campion de certa forma conduz seu filme em direção
a uma versão estendida da seqüência
final de A Síndrome de Stendahl de Dario
Argento, onde um grupo benigno de homens era transformado
pela lente da câmera (e a subjetiva da personagem)
numa horda de estupradores. Só que a seqüência
de Argento era rápida se apavorante, enquanto
a cineasta procura esta mesma atmosfera distendida por
quase duas horas. Este movimento tira ênfase do
horror e a passa para a insegurança. Algo que
por sinal se multiplica na atuação (bem
melhor do que o grosso das criticas sugeriu) de Meg
Ryan. É óbvio que a atriz está
se esforçando para convencer num papel supostamente
mais dramático. Este esforço é
nítido na tela, e dele nasce muito do que há
de imperfeição nesta performance. Só
que esta imperfeição é, dentro
deste filme específico, uma força que
abre espaço para uma vulnerabilidade que uma
atuação mais tecnicamente refinada talvez
não pudesse criar.
É muito por conta disso que este Em Carne
Viva acaba se revelando um dos melhores filmes de
Campion: a diretora acaba por encontrar, de forma quase
improvável, um veículo perfeito para as
suas habilidades, onde tudo que não deixa de
ser problemático no seu cinema acaba conjugado
em favor do filme. Expondo ao máximo seus absurdos,
nos jogando longe das seguranças que a sua trama
sugere, explodindo a lógica e mergulhando no
absurdo, Em Carne Viva segue: bom e mal, eficaz
e confuso, sublime e ridículo, pessoal, único
e apaixonante.
Filipe Furtado
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