Talvez a maior das dificuldades de
aproximação com o mundo retratado nos
dois primeiros filmes de Chris Columbus para os livros
de J.K. Rowling fosse captar a amplitude daquela realidade,
um universo rico - muito mais do que meramente de excentricidades
mas também cheio de humanidade. Talvez ao notar
o fracasso do primeiro filme, que ainda se esforçava
de alguma forma em tal aspecto, Columbus tenha optado
no segundo em se conter na trama, em tentar criar um
filme mais redondo - criando um filme um bocado torto.
Muito mais do que adicionar meramente menos ingenuidade
à trama, como se tem sido comum mencionar, Alfonso
Cuarón teve em seu primeiro grande mérito
quebrar essa barreira: Harry Potter e todo o mundo retratado
ali (e isso vale não só para as proximidades
de Hogwarts, mas como para tudo ali mostrado) recebem
um tratamento muito mais aberto neste terceiro filme.
Tanto da parte do cineasta, como também do roteirista
Steven Kloves, que teve a alcunha de adaptar todos os
livros até aqui (trabalhando em contato direto
com a autora), fica claro que aquele universo é
cheio por demais de detalhes e possíveis subtramas,
de personagens (alguns excelentes como os gêmeos
Weasley surgem muito menos em cena do que poderiam)
que enriqueceriam ainda mais a obra, de possibilidades
que ali não poderiam caber, mas que bravamente
expostos nos permitem enxergar para além do menino-bruxo
e sua varinha. Mesmo que não possa ali mostrar
essa infinitude de vida, o filme respira essa existência.
Uma impressão forte o bastante para de partida
coloca-lo em oposição clara às
medianas adaptações anteriores.
Um dos primeiros fortes indícios é a opção
do filme em não ignorar a vida privada de Harry.
Enquanto se quer nos era dado a possibilidade de saber
que o garoto dividia um quarto com outros rapazes nos
filmes de Columbus, aqui, logo após a chegada
a Hogwarts, já somos introduzidos não
só a esta informação, mas num momento
humano que pareceria um extraterrestre nos primeiros
filmes, vemos os meninos fazendo o tipo de brincadeira
e piada que qualquer jovem adolescente faz - nos é
permitido ver que a diversão existe ali para
além de aventuras com varinha. A sutileza é
um dos pontos mais acertados de Cuarón na relações
dos personagens: todas as reações, tanto
em relação a trama que dá impulso
ao filme quanto a fatos normais que os jovens personagens
encaram na idade, são mostrados com um nível
de acerto impressionante. Enquanto no segundo filme
Chris Columbus mostrou ter a sutileza de um mamute na
cena em que Ron e Hermione mostravam pela primeira vez
um interesse diferente um pelo outro, aqui há
diversos momentos em que a possibilidade surge, mas
as reações e as causas são sempre
filmadas com precisão humana incrível,
sem ter que apelar para momentos épicos com música
emotiva no volume máximo.
Toda essa carga humana em falta nos primeiros filmes
– quem disse que magia não casa com humanidade?
– serviu também para solucionar um problema comum
e fácil de se cair: o de mitificar em excesso
Harry Potter. Em momento algum o personagem aqui parece
cair em algo sobrehumano, sem deixar ao mesmo tempo
de ser um grande mago em formação. Isso
se vê em todos estes momentos citados de cotidiano,
mas também por Harry necessitar cada vez mais
da ajuda alheia – claro que só Harry poderia
ter espantado os dementadores num momento-chave do filme,
mas ele jamais se quer cogitaria estar ali presente
não fosse Hermione, ou muito menos saberia o
que fazer ali não fosse o professor Lupin. Ao
contrário do que muito se previu, o falecimento
de Richard Harris e a entrada de Michael Gambon com
o mago supremo de Hogwarts, Dumbledore, foi um grande
achado para o filme. Além de Dumbledore ser aqui
tratado de forma bem menos endeusada, Gambon permitiu
ao personagem um ar bem mais descontraído, permitindo
a ele até mesmo momentos de humor, algo que a
figura absolutamente serena e poderosa centrada em Harris
nos primeiros filmes jamais nos permitiu ver.
Interessante ver o quanto insiste a crítica (ao
menos local) em que Harry Potter voltou mais "maduro"
– afinal, embora seja claro que a referência caiba
muito mais ao filme do que ao personagem, ser maduro
é algo que este filme estará sempre longe.
É o oposto que vive o longa na verdade – enquanto
seus personagens adentram cada vez mais uma fase menos
madura e cheia de explosões (toda a seqüência
inicial de Harry com os tios, o chute na cama, Harry
sorrindo na cama e mostrando pela primeira vez que também
se diverte ao enganar propositalmente os tios), sua
trama também parece cada vez menos redonda e
fechada, abrindo diversas pontas que não se interessa
em fechar. Se há amadurecimento aqui, é
um grande adendo de inteligência e porque não,
esperteza.
Cuarón revela também um ponto primordial
em cinema, a questão do tempo. O entrecortar
dos planos, até mais em uma aventura como esta,
pede uma noção de tempo exercida aqui
com um tipo de particularidade acertada que chega a
surpreender. Se Cuarón foi contratado por ter
realizado A Princesinha, O Prisioneiro de
Azkaban vai se aproximar principalmente deste longa.
O ponto é: Cuarón parece exibir uma capacidade
rara em saber dirigir este tipo de produção:
tanto neste novo longa quanto em A Princesinha
o cineasta parece unir este talento de manipular grandes
produções (que exigem diversas particularidades),
ao seu lado mais humano, presente em filmes como E
Sua Mãe Também ou Grandes Esperanças.
Estes dois longas de grande orçamento soam mais
completos e não menos pessoais (sem deixar de
responder a outros estímulos, incluindo ser um
ótimo produto de vendagem fácil). Anima
ver que Cuarón já declarou ter interesse
em voltar futuramente (até mesmo muito em breve)
a dirigir um Harry Potter.
Cuarón mostrou também ter ótima
noção de como aproveitar seus atores.
O segundo filme, por exemplo, denunciava uma tendência
impressionante a canastrice por Rupert Grint, o Ron.
Cuarón então resolve usar essa canastrice
na direção de atores para acrescentar
ao personagem, não abandonando o ator em suas
dificuldades: ele ainda exibe a mesma careta, mas aqui
ela deveria estar presente. Todos os adolescentes aqui
parecem ter passado por conversas um tanto mais longas
sobre seus personagens; do próprio Harry (Daniel
Radcliffe), pouco inocente, explosivo mas ainda assim
heróico, até mesmo ao garoto-mala Draco
Malfoy, irritante como deve ser, mas sem um excesso
quase insuportável visto antes. Os adultos não
caem fora: como citado em outro momento temos a marcante
presença de Michael Gambon, mas também
David Thewlis e Gary Oldman - o segundo sobretudo surpreendendo
muito, fugindo por completo do óbvio e longe
de estar no piloto automático. Alan Rickman aos
poucos permite mais ambigüidade ao professor Snape,
a cena em que protege os garotos é de uma sutileza
bastante forte. Trabalhando dentro de um universo tão
específico e particular, o cuidado em saber usar
estes elementos pode ser vital, e alguns excessos ainda
escapam mesmo com o cuidado - Emma Thompson por exemplo
parece o tempo todo estar na corda bamba entre uma péssima
atuação e uma ótima (o que não
deixa de ter seu interesse particular).
Embora pudesse listar as mais diversas seqüências
de ótimo cinema, há a volta no tempo,
uma pequena obra-prima. Além de uma idéia
inteligentíssima arquitetada em cena com extrema
eficiência – os planos em que Harry e Hermione
acompanham a si mesmos a distância são
sobrepostos de tal maneira que fica claro o exímio
trabalho com o quadro. Ao voltarem no tempo para que
pudessem salvar um personagem, os dois amigos não
enganam o tempo ou algo similar, mas sim a si mesmos
– a forma como o filme põe isto em cena é
impressionante, invertendo toda a noção
de narrativa clássica até ali posta em
cena. Toda a encenação é feita
com tamanho trabalho que, para notar diversas sutilezas
perdidas nestas seqüências (e tudo o que
vêm pouco antes delas), é necessário
uma ou mais revisões. Toda a alteração
no tempo ocorre diante de nossos olhos sem que possamos
perceber: Cuarón monta tudo de forma que a encenação
se faça presente, mostrando incrível habilidade
em saber manipular o que se decorre em cena. Tudo que
se segue na volta no tempo, cada passo, é uma
reconstrução de algo que já foi
visto – realizado de forma única. A cena em que
Hermione e Harry finalmente chegam em tempo ao local
onde estavam é de um humor (uma das armas mais
bem utilizadas pelo cineasta no filme) genial.
Um dos aspectos que mais soavam errados nos filmes de
Columbus partiam da capacidade de transformar um tema
com tantas brechas cinematográficas em obras
um tanto carentes em todos os aspectos da construção
dentro do cinema. Um dos grandes triunfos de Cuarón
em O Prisioneiro de Azkaban é não
só adicionar um lado muito mais próximo
da magia e bruxaria ao filme, dando espaço para
suspense mais desenvolvido, mas o de também levar
ao que filma um uso pensado e consideravelmente melhor
das diversas particularidades da obra de J.K. Rowling.
A começar pelo uso do espaço de Hogwarts,
explorado com planos mais longos e que permitem uma
noção boa da dimensão do local
- além do ótimo uso do mapa que vai parar
nas mãos de Harry, que além de ter extrema
importância ao desenrolar do filme, desdobra a
decupagem. Podemos citar ainda os quadros "vivos",
que não ganham só um espaço maior
em cena, como deixam de ser mero artefato irreverente
local, tal qual as fotos em movimento (até mesmo
um desenho em um momento); ou os "dementadores", não
presentes nos filmes anteriores, mas não menos
bem usados. Ou ainda a maneira como Cuarón dá
espaço para que John Williams se solte na trilha
sem ter de cair no "mais do mesmo" que o persegue diversas
vezes: em um momento (uma perseguição
chuvosa em meio ao céu no único momento
de quadribol do filme) Williams repentinamente transforma
sua tradicional música de suspense em uma espécie
de releitura do tema de Psicose, outra sutileza
somente percebida em uma revisão.
Construir dentro do cinema usando todos os artifícios
à mão na criação de um universo
não só bem articulado, mas cheio de sentimentos
e questões (dos quais muitos persistem soltos
e sem respostas), além da percepção
do tempo como chave do cinema, são das muitas,
e cada vez mais perceptíveis, belas impressões
deixadas por O Prisioneiro de Azkaban.
Guilherme Martins
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