DIA ÚTIL
Gare du Nord, episódio de Paris vu Par (1965)
 

Gare du Nord é o episódio de Jean Rouch para o filme Paris Vu Par..., projeto que ainda conta com curtas-metragens de Godard, Rohmer, Chabrol, Jean Douchet e Jean-Daniel Pollet, cada episódio correspondendo a um bairro parisiense famoso. Paris Vu Par..., de 1965, foi produzido por Barbet Schroeder (hoje em dia diretor de filmes medíocres) e pode ser visto como o filme que pontua a passagem definitiva da Nouvelle Vague às cores. Certamente o melhor episódio do filme, Gare du Nord revela um Rouch que aposta numa estética realista que por vezes parece querer seguir a sugestão de Zavattini de que o filme ideal consiste em acompanhar a vida de alguém 24 horas por dia. Não que Gare du Nord possua 24 horas, ou funcione como a vanguarda do reality show. Na verdade, o filme é feito de quatro planos, sendo que o primeiro e o último são brevíssimos planos gerais de introdução e conclusão, respectivamente. O miolo é composto de dois planos-seqüência separados por um corte à Festim Diabólico, uma vez que se disfarça no escuro da cena de descida no elevador. A motivação do corte é certamente a passagem do interior para o exterior, o que implica naturezas luminosas díspares e requer tipos de negativo distintos.

Gare du Nord destoa um pouco em relação ao que Jean Rouch filmava no mesmo período. Não é cinéma-verité, tampouco se aparenta integralmente ao que a própria Nouvelle Vague vinha constituindo. Antes de mais nada, é um filme com ambições realistas na sua construção de imagem e som e que lida, entretanto, com o limiar do falso. A grande linha de tensão de Gare du Nord está no seu parti pris jornalístico, tirado mesmo de recorte de jornal, confrontado a uma resolução dramática que caminha progressivamente rumo ao inverossímil. Se toda a primeira seqüência, que apanha o casal Odile e Jean-Pierre num típico café da manhã parisiense, parece demasiadamente "caseira" e antificcional, quando a câmera vai para a rua e passa a sofrer uma latente interferência da grande "substância" do mundo (o trabalho de som é cuidadoso em sublinhar a profusão e intensidade dos barulhos do espaço urbano, criando, com ajuda da instabilidade da câmera, uma atmosfera incômoda), ali naquela segunda parte o filme ganha ares de ficção do absurdo. Em resumo, o que ocorre é o café da manhã antes do trabalho (afinal, trata-se de um dia do meio da semana) acompanhado de uma discussão que leva Odile a sair irritada de casa e quase ser atropelada por um homem que, após abandonar seu carro em meio à rua, segue Odile e a interpela com cantadas das mais mirabolantes. Tudo que Odile reclamava com seu marido, todas as viagens que não fazia e todo o conforto que não possuía (o pequeno apartamento dos dois fica ao lado de uma obra que não só erguerá um prédio que lhes tapará a vista como ainda faz um barulho infernal), tudo isso lhe será oferecido pelo homem rico que cruzou seu caminho (ou foi ela quem cruzou o caminho dele?). No espaço fechado do apartamento, o filme optou pelo naturalismo em todas as suas nuances (não só forma, mas também falas, comentários sociais, relação com o espaço), quase um darwinismo social imposto à inconformada Odile. Ao ganhar as ruas, a realidade a céu aberto, Rouch introduziu na vida dela um personagem e um acontecimento eminentemente ficcionais. De um lado o jeito conformado e infantil de Jean-Pierre (a irritação de Odile perante as manias alimentares dele são das pequenas pérolas que fazem desse um grande filme), do outro o estranho que age como eterno adolescente, que não trabalha mas pode tudo graças ao dinheiro dos pais. As fantasias de consumo prometidas por aquele estranho, contudo, são rejeitadas por Odile e terminam por se espatifar nos trilhos da "Estação do Norte". O suicídio, a queda do alto do viaduto, é um derradeiro golpe da realidade – mas é também um movimento em falso. Gare du Nord escorrega no falso e cai, de volta ao real.

Os dois planos-seqüência de Gare du Nord não são explorações da duração. São dois planos de mais ou menos dez minutos cada, o primeiro correspondendo a toda a cena dentro do apartamento do casal e o segundo correspondendo à andança de Odile pela calçada, acompanhada do homem desconhecido que cruza seu caminho. Esses planos fazem coincidir o tempo de ação com o tempo do filme, e aí se encontra sua singularidade ontológica, pois se trata de mostrar vidas humanas num recorte espaço-temporal bastante determinado e filmá-las desde o mais banal (o café da manhã) até o mais inusitado (um estranho que faz promessas loucas e termina se suicidando), ressaltando não a vacuidade dessas ações, mas antes o acontecimento "verdadeiro" delas. Um verdadeiro fílmico, é preciso que se diga, de corpos que agem/reagem diante do aparelho registrador. O corte evitado não simplesmente domesticaria o tempo e lhe subtrairia a concreção: o corte, acima de tudo, fragmentaria ações humanas cuja força dependia da continuidade e neutralidade do meio expressivo. Somente uma câmera que "retrocedesse" a um estágio pré-montagem e adotasse a proximidade como premissa de ponto de vista poderia satisfazer ao anseio de Rouch. É uma satisfação de antropólogo, sem dúvida alguma, mas é uma contribuição de cineasta. Repousar sobre a duração era uma experiência já conhecida na época, e que não representa a pedra de toque da construção de Gare du Nord. O plano alongado de Rouch está muito mais para a ação cotidiana que precisa ser captada por uma câmera que executa também uma ação cotidiana, ou seja, uma ação que permite um misto de intimidade e descaso. Em uma só palavra, a câmera de Gare du Nord é desvencilhada – tanto de possíveis barreiras físicas (por ser leve e de pequenino porte) como de obstáculos morais (por adotar um ponto de vista inequívoco). Jean Rouch fez um grande filme de encontro e dessincronia: encontro entre pessoas que, quer se casem quer dialoguem fortuitamente, nunca acham uma sintonia de "estações".

Luiz Carlos Oliveira Jr.