Filme de Amor
Julio Bressane, Brasil, 2003

Três amigos seguem pelas ruas e se reúnem num quarto de pensão para se entregar a um ritual de sexo, declamações e histórias de amor.

Há duas aproximações possíveis ao cinema de Julio Bressane e em especial a esse Filme de Amor. De um lado, corre seu apelo intelectual colorido por citações, auto-referências e postulados verbais; de outro, circula um olhar lúdico, sensorial, um cinema-música como raramente se vê. Para além dessas duas camadas entrelaçadas, jogo de forças entre o trabalho de beleza apolínea e as dionisíacas reformulações do pôr-se-em-cena, Filme de Amor é cinema de beleza harmônica, de retorno do cinema ao cinema, em todo o seu arsenal de jogos, que vão dos simbolismos mais imbricados aos jogos mais físicos da imagem. Vênus e Marte, como nos é narrado durante o filme, a suavidade e o embate se encontram num cinema em que a Harmonia se dá pela coerência incoerente, pela homogeneidade descompassada. "O que está certo, está errado...E o que está errado é o que está certo..." – essa frase, evocada de O Anjo Nasceu (1969), reaparece em Filme de Amor nesse jogo de forças onde os opostos da criação produtiva e a desconstrução de linguagens (traços marcantes do cinema de Bressane)e se colocam lado-a-lado: não é à toa que uma das personagens de Filme de Amor virá, então, completar a idéia: "Porque os dois são a mesma coisa..." Esse movimento entre as palavras proferidas no filme de 1969 e o olhar contemporâneo de Julio Bressane pode ser identificado como um ponto de síntese de uma das formas com que o autor relê sua obra: do impacto desconstrutivista e combativo do início da carreira (Matou a Família e foi ao Cinema e O anjo nasceu), Julio Bressane migrou aos poucos para um cinema interessado nos fragmentos, na multiplicação de facetas, nos jogos em que o certo e o errado, o popular e o erudito, o belo e o feio se misturam, se desdobram um por dentro do outro, sem nunca alcançar qualquer síntese senão o fluxo mesmo de suas imagens.

Excesso lacônico, exagero sutil. Essa é a linha tênue por onde caminham as imagens de Julio Bressane e que em Filme de Amor faz uma belíssima revisão do tema ao longo de toda a sua obra. Certamente, este é o filme em que Julio Bressane mais dialoga diretamente com Julio Bressane: não apenas se reiterando seus clichês, mas fazendo uma antologia do amor por entre os clichês e signos cultivados por seu cinema, ao longo de 30 anos.

Nesse sentido, Filme de Amor, após dois filmes mais secos, mais imbricados na figura de seus personagens (São Jerônimo e Dias de Nietzsche em Turim), retoma sua tendência à investigação intersemiótica entre o verbal e o cinema tendo como objeto central não a obra de grandes escritores (seja o Oswald de Tabu, seja o mais recente Nietzsche, seja o Antônio Vieira de Sermões) mas o caldo de imagens e construções verbais presentes em seus próprios filmes e até mesmo ensaios escritos.

Na trilha sonora, podemos escutar trechos de O Anjo Nasceu, A Agonia, O Rei do Baralho, além de citações a Tabu, ao pouquíssimo visto Cinema Inocente e a trechos de sua breve incursão sobre a escrita. Nesse sentido, o filme funciona com uma antologia do amor na obra de Bressane, atravessando desde seu interesse pela pornografia, marcante em Cinema Inocente/Tabu, até os jogos de entrega ao inaudito e ao inexplicável, encontrado com peso em Dias de Nietzsche em Turim. Esse sentido de antologia é o que faz de Filme de Amor um filme de postulados, religiosamente interessado em religar as facetas do amor à suas narrações divinas, a um conjunto de gestos invisíveis que nos remetem ao senso inalcançável da vida.

À cada pequeno gesto físico, Bressane faz questão de associar o mais divino movimento de elevação; à cada idealização amorosa, Bressane procura o peso da carne, do desejo imediato dos corpos. Amor como gesto cinematográfico, cinema como gesto de amor: pornografia e pureza se encontram numa orgia de possibilidades afetivas que elevam três personagens banais ao lugar das três Graças divinas, entrelaçadas, recebendo visões de amor e desejo que refiguram seu tédio em uma ode ao amor, ao afeto, aos três gestos de dar, receber e retribuir. Prazer, Amor e Desejo.

A erudição, a fala coloquial e os murmúrios de prazer se encontram num lugar de declamações, de evocações onde a palavra cataliza o movimento e o movimento cataliza a palavra – espírito e corpo numa mesma celebração.

Filme de atmosfera ímpar, construída através da fotografia preto-e-branco (super-revelada) e colorida (saturada) de Walter Carvalho e do trabalho de maestria de Virgínia Flores na montagem e, principalmente, na Edição de Som. Não há ninguém hoje no Brasil que melhor saiba se utilizar das diferentes texturas de som e com as possibilidades do Dolby Digital. Virgínia Flores chega a criar um falso raccord de som quando personagens se movem para um lado e o som nos indica o movimento para o outro, desestruturando o filme como mera narração de eventos e o re-inserindo como gesto estético intransferível, único (sem nunca cair num maneirismo vazio). Julio Bressane é o responsável por essa liberdade, por essa sintonia fina que faz com que seu filme ultrapasse os gêneros sem deixar de prestar a eles sua reverência; que se utiliza e celebra as possibilidades da tecnologia sem deixar que ela desvie seu desejo.

Nessa atmosfera, a cena do vôo dos atores pelo quarto da pensão, entra certamente na coleção de pérolas da obra do cineasta, assim como toda seqüência em que Hilda passeia pelo casarão vazio em busca de um sentimento de amor perdido (simbolizado no prato de leite vazio e nos sons de um gato invisível); ou as imagens finais, após o ápice, em que a cidade rotinizada é revista sob esse olhar enamorado e nos aparece refigurada, transfigurada.

Nesse trilho, Filme de Amor é o primeiro filme de Julio Bressane a, claramente, se interessar por sair do teatro particular de seus três personagens, elevá-los à divindade e depois retornar a um olhar para a rotina, para os gestos sem aura (em que inclusive as interpretações e a maneira de filmá-las dialogam com a estética do cotidiano numa câmera tremida e coloquial que passeia por um edifício comercial no centro do Rio de Janeiro). A rotina e o banal enamorados como novo território bressaniano?

É difícil escrever sobre um filme com tantos meandros e possibilidades de leitura em pleno Festival do Rio e seus 4 filmes a serem vistos diariamente, mas fica a certeza de que Filme de Amor é uma obra ser revista não apenas pelo que reitera do universo de Julio Bressane como por aquilo que traz de novo.


Felipe Bragança