Três amigos seguem pelas ruas e
se reúnem num quarto de pensão para se
entregar a um ritual de sexo, declamações
e histórias de amor.
Há duas aproximações possíveis
ao cinema de Julio Bressane e em especial a esse Filme
de Amor. De um lado, corre seu apelo intelectual
colorido por citações, auto-referências
e postulados verbais; de outro, circula um olhar lúdico,
sensorial, um cinema-música como raramente se
vê. Para além dessas duas camadas entrelaçadas,
jogo de forças entre o trabalho de beleza apolínea
e as dionisíacas reformulações
do pôr-se-em-cena, Filme de Amor é
cinema de beleza harmônica, de retorno do cinema
ao cinema, em todo o seu arsenal de jogos, que vão
dos simbolismos mais imbricados aos jogos mais físicos
da imagem. Vênus e Marte, como nos é narrado
durante o filme, a suavidade e o embate se encontram
num cinema em que a Harmonia se dá pela coerência
incoerente, pela homogeneidade descompassada. "O
que está certo, está errado...E o que
está errado é o que está certo..."
– essa frase, evocada de O Anjo Nasceu (1969),
reaparece em Filme de Amor nesse jogo de forças
onde os opostos da criação produtiva e
a desconstrução de linguagens (traços
marcantes do cinema de Bressane)e se colocam lado-a-lado:
não é à toa que uma das personagens
de Filme de Amor virá, então, completar
a idéia: "Porque os dois são a mesma
coisa..." Esse movimento entre as palavras proferidas
no filme de 1969 e o olhar contemporâneo de Julio
Bressane pode ser identificado como um ponto de síntese
de uma das formas com que o autor relê sua obra:
do impacto desconstrutivista e combativo do início
da carreira (Matou a Família e foi ao Cinema
e O anjo nasceu), Julio Bressane migrou aos poucos
para um cinema interessado nos fragmentos, na multiplicação
de facetas, nos jogos em que o certo e o errado, o popular
e o erudito, o belo e o feio se misturam, se desdobram
um por dentro do outro, sem nunca alcançar qualquer
síntese senão o fluxo mesmo de suas imagens.
Excesso lacônico, exagero sutil.
Essa é a linha tênue por onde caminham
as imagens de Julio Bressane e que em Filme de Amor
faz uma belíssima revisão do tema ao longo
de toda a sua obra. Certamente, este é o filme
em que Julio Bressane mais dialoga diretamente com Julio
Bressane: não apenas se reiterando seus clichês,
mas fazendo uma antologia do amor por entre os clichês
e signos cultivados por seu cinema, ao longo de 30 anos.
Nesse sentido, Filme de Amor, após
dois filmes mais secos, mais imbricados na figura de
seus personagens (São Jerônimo e
Dias de Nietzsche em Turim), retoma sua tendência
à investigação intersemiótica
entre o verbal e o cinema tendo como objeto central
não a obra de grandes escritores (seja o Oswald
de Tabu, seja o mais recente Nietzsche, seja
o Antônio Vieira de Sermões) mas
o caldo de imagens e construções verbais
presentes em seus próprios filmes e até
mesmo ensaios escritos.
Na trilha sonora, podemos escutar trechos
de O Anjo Nasceu, A Agonia, O
Rei do Baralho, além de citações
a Tabu, ao pouquíssimo visto Cinema
Inocente e a trechos de sua breve incursão
sobre a escrita. Nesse sentido, o filme funciona com
uma antologia do amor na obra de Bressane, atravessando
desde seu interesse pela pornografia, marcante em Cinema
Inocente/Tabu, até os jogos de entrega
ao inaudito e ao inexplicável, encontrado com
peso em Dias de Nietzsche em Turim. Esse sentido
de antologia é o que faz de Filme de Amor
um filme de postulados, religiosamente interessado em
religar as facetas do amor à suas narrações
divinas, a um conjunto de gestos invisíveis que
nos remetem ao senso inalcançável da vida.
À cada pequeno gesto físico,
Bressane faz questão de associar o mais divino
movimento de elevação; à cada idealização
amorosa, Bressane procura o peso da carne, do desejo
imediato dos corpos. Amor como gesto cinematográfico,
cinema como gesto de amor: pornografia e pureza se encontram
numa orgia de possibilidades afetivas que elevam três
personagens banais ao lugar das três Graças
divinas, entrelaçadas, recebendo visões
de amor e desejo que refiguram seu tédio em uma
ode ao amor, ao afeto, aos três gestos de dar,
receber e retribuir. Prazer, Amor e Desejo.
A erudição, a fala coloquial
e os murmúrios de prazer se encontram num lugar
de declamações, de evocações
onde a palavra cataliza o movimento e o movimento cataliza
a palavra – espírito e corpo numa mesma celebração.
Filme de atmosfera ímpar, construída
através da fotografia preto-e-branco (super-revelada)
e colorida (saturada) de Walter Carvalho e do trabalho
de maestria de Virgínia Flores na montagem e,
principalmente, na Edição de Som. Não
há ninguém hoje no Brasil que melhor saiba
se utilizar das diferentes texturas de som e com as
possibilidades do Dolby Digital. Virgínia Flores
chega a criar um falso raccord de som quando
personagens se movem para um lado e o som nos indica
o movimento para o outro, desestruturando o filme como
mera narração de eventos e o re-inserindo
como gesto estético intransferível, único
(sem nunca cair num maneirismo vazio). Julio Bressane
é o responsável por essa liberdade, por
essa sintonia fina que faz com que seu filme ultrapasse
os gêneros sem deixar de prestar a eles sua reverência;
que se utiliza e celebra as possibilidades da tecnologia
sem deixar que ela desvie seu desejo.
Nessa atmosfera, a cena do vôo dos
atores pelo quarto da pensão, entra certamente
na coleção de pérolas da obra do
cineasta, assim como toda seqüência em que
Hilda passeia pelo casarão vazio em busca de
um sentimento de amor perdido (simbolizado no prato
de leite vazio e nos sons de um gato invisível);
ou as imagens finais, após o ápice, em
que a cidade rotinizada é revista sob esse olhar
enamorado e nos aparece refigurada, transfigurada.
Nesse trilho, Filme de Amor é
o primeiro filme de Julio Bressane a, claramente, se
interessar por sair do teatro particular de seus três
personagens, elevá-los à divindade e depois
retornar a um olhar para a rotina, para os gestos sem
aura (em que inclusive as interpretações
e a maneira de filmá-las dialogam com a estética
do cotidiano numa câmera tremida e coloquial que
passeia por um edifício comercial no centro do
Rio de Janeiro). A rotina e o banal enamorados como
novo território bressaniano?
É difícil escrever sobre
um filme com tantos meandros e possibilidades de leitura
em pleno Festival do Rio e seus 4 filmes a serem vistos
diariamente, mas fica a certeza de que Filme de Amor
é uma obra ser revista não apenas pelo
que reitera do universo de Julio Bressane como por aquilo
que traz de novo.
Felipe Bragança
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