The
Perfet Drug
Existe um fator cultural
muito forte e que, de uma maneira ou de outra, acaba
sempre por vir à tona quando da exibição
de alguns filmes de David Lynch. Esse fator é
desdobramento do que Serge Daney, um dos grandes nomes
da história da crítica cinematográfica,
já apontava nos anos 70: a consolidação
de sociedades cada vez mais eficazes na atitude de ler
(e decifrar, dissecar estruturas de linguagem), mas
cada vez menos capazes de ver. Quando se fala
em "civilização da imagem",
por exemplo, não se leva em conta a distinção
entre o visual e a imagem, o primeiro correspondendo
à "verificação óptica"
de um procedimento de significação (leitura),
enquanto a imagem seria o que ainda resguarda uma experiência
para além do visual, uma forma de percepção
que dribla a equação mais comum. O próprio
cinema, nos seus termos particulares, assim que abraçou
a narratividade ergueu todo um edifício de códigos
que ultrapassa a simples analogia icônica. Em
se tratando de A Estrada Perdida, entretanto,
tudo cujo modelo operacional é aferido nesse
confuso acordo entre visão e cognição
deve ser deixado de lado. São justamente os dois
binômios-base da cultura visual (causa-efeito
e visão-cognição) o que pode impedir
a fruição plena desse filme.
O grande tema de Lynch
é a luz. Mesmo o som, perfeitamente trabalhado
tanto em A Estrada Perdida quanto em Veludo
Azul ou História Real, é uma
espécie de cara-metade dos objetos reluzentes,
um murmúrio da luz (se há uma imagem recorrente
em Lynch, é a de uma lâmpada com defeito,
ou com insetos dentro dela, acendendo e apagando ao
som de um ruído incômodo). Até as
extraordinárias trilhas sonoras de Angelo Badalamenti
acompanham as curvas de luminosidade dos filmes de Lynch
para que são compostas. Em A Estrada Perdida,
assim como em Cidade dos Sonhos, o diretor segue
uma lógica de cinema-instalação;
o que vale é atravessar o filme, passar pelo
seu campo magnético. Nenhuma parede é
mero anteparo, qualquer superfície tem cor, tem
estampa, reflete ou texturiza uma imagem ou uma luz.
Além de duração e força,
a luz em Lynch tem motivo e forma – daí ele sempre
frisar sua fonte e sua incidência. Mas essa luz,
esse clarão que cega possui também outro
nome, complementar à sua natureza física:
o amor. O universo lynchiano é movido a paixão,
é o lugar da efervescência, do irracional,
da sensualidade, do sonho. E, sabemos, o que essa moeda
traz no verso é o pesadelo da perda, o afundamento,
a loucura, o destino trágico.
A Estrada Perdida
apanha Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette)
numa fase difícil do casamento. Ele a está
sentindo distante, como no sonho que resolve contar:
"você estava lá, mas não era
você". O filme é exatamente sobre
isso: estar lá e não estar, ou ainda,
estar com alguém e não saber quem é,
não importando se acabou de conhecê-la
ou se estão casados há anos. A angústia
irredutível do amor é igual àquela
provocada pela imagem: mesmo a esposa, mesmo a pessoa
com quem se passa a maior parte da vida é sempre
um "outro", guarda sempre um mistério,
o que remete a um dos princípios fundadores da
imagem, qualquer imagem: a alteridade radical, o fato
de que, por mais próxima que ela possa estar,
sempre haverá uma opacidade, uma intransponibilidade.
"Você nunca irá me ter", diz
Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira) a Pete,
após transarem na areia do deserto, faróis
do carro sobre eles, numa das cenas mais sensuais da
história do cinema. Esses personagens que se
confundem (e nos confundem), esses rostos que se misturam
são projeções de qualquer relação
amorosa.
Lynch é um dos
poucos cineastas a ainda trazer para a tela o nunca
visto – além de ressignificar o muito visto –
e lidar com as ressonâncias do inexplorado, do
ausente. Não há outra maneira de filmar
a ausência senão através de suas
vibrações na superfície dos objetos
mostrados. É justamente isso que vemos em A
Estrada Perdida, um filme em que tudo que interessa
está na tela, mas sempre fazendo ecoar algo distante.
Essa invasão do fora-da-tela, do desconhecido,
do acaso, é uma verdadeira invasão de
privacidade, como nas fitas de vídeo que Fred
e Renne recebem, e que consistem em imagens feitas dentro
da sua própria casa por alguém que eles
nem desconfiam como pode ter entrado lá. A imagem,
pornográfica por excelência, é sempre
(e em si mesma) invasiva: "roubar" o semblante
de alguém e expô-lo em praça pública:
a imagem é já a ob-cena (Daney). A
Estrada Perdida vai plantando armadilhas, vai seduzindo
o espectador, mexendo com sua mente. Mas o destino dessas
pistas recolhidas já foi dado na primeira imagem
do filme: a estrada vazia, escura, e a câmera
(e, por conseguinte, nós) assumindo o ponto de
vista do motorista, vendo a interminável sucessão
de listras amarelas, uma após a outra, parcelas
cuja soma não fornece um resultado redondo. Cabe
ao filme apenas iluminar essas listras através
do alcance limitado imposto pelo farol do carro – o
resto é escuridão.
E há os momentos
mágicos, como na cena em que Alice aparece para
Pete ao som de "This magic moment" (Lou Reed),
e isso basta para que ele se apaixone. Entrada em cena
que lembra a primeira aparição de Sandy
(Laura Dern) em Veludo Azul: quando o amor surge
no filme, este se enche de uma cor e de um brilho que
até então não parecia ter. Se Lynch
filma também coisas obscuras, é porque
faz um cinema musical cujo fraseado dificilmente entrega
a nota seguinte; uma complexa equalização
que seus filmes acham entre a melodia e a dissonância,
entre a beleza e a bizarrice. A resposta está
no final de Veludo Azul: "É um mundo
estranho", Sandy diz calmamente, ao contemplar
o passarinho que fisga um inseto com o bico: o estranho
alimenta o belo.
Longe de uma defesa do
refinamento estético e da leitura difícil,
o cinema de David Lynch é um arranjo experimental
bastante atento a potencialidades – e indiferente a
mensagens. Ele acrescenta fermento aos signos, mas não
os desmonta (como muitos pensam); simplesmente lança-lhes
luz. Lynch constrói ambiência, dá
ritmo ao espaço dos acontecimentos, faz menos
uma pesquisa formal do que uma provocação.
Em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer,
vale lembrar que nenhuma das drogas que a personagem
principal consome consegue aluciná-la com a mesma
eficácia da fotografia singelamente assustadora
que ela pendurou na parede do quarto (a imagem de uma
porta que a conduz ao pesadelo noturno). Não
percamos tempo com joguinhos de adivinhação,
esqueçamos as engenhocas narrativas: produto
da farmácia de Lynch, A Estrada Perdida
é alucinógeno dos melhores.
Luiz Carlos Oliveira
Jr.
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