Existe algo na arte de
Jean Rouch que traz à mente o cinema de Abbas
Kiarostami. É possível perceber em filmes
como Os Mestres Loucos e Close-Up a presença
de um dispositivo decorrente de uma fenda que surge
entre o material que a câmera apreende num determinado
momento (a cerimônia dos Haouka em Os Mestres
Loucos, o julgamento do falso Makhmalbaf em Close-Up)
e a apresentação deste material num momento
posterior, ocasião na qual os cineastas escolhem
pela criação de um recito (fabulação
não parece o termo a ser empregado aqui) a partir
de dados que adicionam ou completam seus registros (mas
que jamais se propõem, de forma alguma, como
experiências completas de encenação,
dos objetos que os cineastas põem em cena). Essa
fenda (que de diversas maneiras define aquilo que é
chamado de cinema moderno, e que conhecemos pelo epíteto
de montagem) existe, no caso de Rouch, pela maneira
que a encenação do cotidiano dos participantes
da cerimônia religiosa a que assistimos no miolo
de Os Mestres Loucos surge no início e
ao final do filme. Ao estruturar seu filme desta forma,
Rouch obtém um resultado notável ao possibilitar
a percepção de que sua câmera
esteja ela encenando o cotidiano proletário,
a "vida normal" dos Haouka ou a cerimônia, o "espetáculo"
onde eles são possuídos por um grupo de
espíritos jamais tenta separar um modo "ficcional"
de um modo "documental". Rouch parece mais interessado
em mostrar como "ficção" e "documentário"
trocam, intercambiam e mediam vários dos mesmos
resultados, mesmas pesquisas e mesmas preocupações
que em forjar um teatrinho falsamente binário
entre representação/não-representação...
Algo que é muito semelhante ao que Kiarostami
consegue em Close-Up ao cruzar os episódios
dos encontros entre Hossein Fabdzian e a família
que passará a desfrutar da sua interpretação/performance
do cineasta Mohsen Makhmalbaf com as cenas do julgamento
de Hossein, cenas estas que o próprio Kiarostami
propõe na banda de áudio como tão
"ficção" quanto o resto do filme.
E assim existem os filmes como Close-Up e Eu,
um Negro, que nos colocam pela primeira vez num
mundo maravilhoso que adoramos conhecer e explorar com
a ajuda dos seus autores (verdadeiros pedagogos no sentido
mais estrito da palavra), e os filmes como Dionysos
e O Vento nos Levará, filmes que problematizam
e tornam difícil a compreensão deste novo
mundo, que mostram que encanto e fascinação
caminham lado-a-lado com juízo e rigor. Dyonisos,
mais que um experimento em forma ou o momento em que
um percurso de mais de 30 anos abre um parêntese
e se coloca em questão, é antes de mais
nada a acumulação de uma série
de idéias sobre o cinema e as possibilidades
de pesquisas com linguagem, intertextualidade, metalinguagem
e representação. Algumas imagens do filme
são de fato tão impressionantes e tão
absurdamente ricas a carcaça de um carro dependurado,
balançando como se fosse as carcaças de
um tigre, e o renascimento deste carro como um tigre que se torna impossível não se sentir
como um mero infante diante de tudo que este homem conhece
não só dos mundos em que viveu (o da África,
o do cinema, o da etnografia, o da Europa) como também
daqueles que faz existir no seu filme (o mundo da universidade,
dos estudos, do conhecimento, da história etc.).
Notável um trabalho de cineasta tão simples
e eficaz e que é ao mesmo tempo o mais acertado,
o mais claramente adequado para aquilo que se pretende
colocar na tela.
Não contente em ser um arquiteto engenhoso como
também um geólogo com impressionante capacidade
de percepção, Rouch é um montador
nato, alguém que conhece o métier
como poucos (o corte que nos leva de um arco de pedras
para a fachada da universidade onde Hugh Gray apresentará
sua tese de doutorado dá dimensão de todos
estes talentos de Rouch). Mas o que provavelmente mais
impressiona em Dionysos é a forma com
que Rouch traz à tela toda a historicidade dos
ambientes, tudo aquilo que entre uma cena e outra nos
leva de um determinado tempo-espaço para outro.
De um galpão-estúdio na França
dos anos 80 a alguma cerimônia religiosa na África
dos anos 60, de documento para ficção
e o inverso ao momento em que os dois não se
separam mais, de uma celebração nas ruas
de Paris a uma cena de um de seus filmes dos anos 50,
tudo em Dionysos parece dar uma perspectiva histórica
que aproxima o trabalho de Rouch aos cinemas de Jean-Luc
Godard, Roberto Rossellini e Hans-Jürgen Syberberg
(as sobreposições de tela em Dionysos
lembram particularmente o cinema deste último);
enfim, de todos que tomaram emprestadas as lições
do professor Rouch e de quem Rouch, novamente um estudante
em plenos anos 80 e após 30 anos de cinema, parece
tomar emprestado para realizar este filme. Fazer do
simples ato de se mostrar um acontecimento em uma arte
e amalgamar história com etnografia, este parece
ser um dos credos de Rouch aqui, e para tanto o cineasta
parece interessado em fazer ele mesmo uma pequena história
acerca da evolução das representações,
operação que surge quase que sorrateiramente
e que no entanto acaba por conferir ao filme alguns
dos seus momentos de maior beleza (o carro-tigre passeando
pelas ruas de Paris, a celebração dos
confrades de Hugh Gray no parque onde o filme se inicia,
os passeios realizados por dentro de palcos/pinturas
etc.).
Puro êxtase formal, total entrega de um sujeito
a um objeto que muitas vezes parece lhe causar um certo
estranhamento, documento de uma experiência que
por todos os seus poros deixa entrever o entusiasmo
de todos os participantes, Dionysos é
destes filmes que chacoalham nossas cabeças durante
muito de suas durações mas que abrem em
seus finais horizontes e perspectivas que satisfazem
não apenas os olhos como também o intelecto.
E como bem sabemos, estes filmes sejam eles Close-Up,
Stromboli ou Dionysos são especiais.
Bruno Andrade
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