DIONYSOS
França, 1984
 

Existe algo na arte de Jean Rouch que traz à mente o cinema de Abbas Kiarostami. É possível perceber em filmes como Os Mestres Loucos e Close-Up a presença de um dispositivo decorrente de uma fenda que surge entre o material que a câmera apreende num determinado momento (a cerimônia dos Haouka em Os Mestres Loucos, o julgamento do falso Makhmalbaf em Close-Up) e a apresentação deste material num momento posterior, ocasião na qual os cineastas escolhem pela criação de um recito (fabulação não parece o termo a ser empregado aqui) a partir de dados que adicionam ou completam seus registros (mas que jamais se propõem, de forma alguma, como experiências completas de encenação, dos objetos que os cineastas põem em cena). Essa fenda (que de diversas maneiras define aquilo que é chamado de cinema moderno, e que conhecemos pelo epíteto de montagem) existe, no caso de Rouch, pela maneira que a encenação do cotidiano dos participantes da cerimônia religiosa a que assistimos no miolo de Os Mestres Loucos surge no início e ao final do filme. Ao estruturar seu filme desta forma, Rouch obtém um resultado notável ao possibilitar a percepção de que sua câmera – esteja ela encenando o cotidiano proletário, a "vida normal" dos Haouka ou a cerimônia, o "espetáculo" onde eles são possuídos por um grupo de espíritos – jamais tenta separar um modo "ficcional" de um modo "documental". Rouch parece mais interessado em mostrar como "ficção" e "documentário" trocam, intercambiam e mediam vários dos mesmos resultados, mesmas pesquisas e mesmas preocupações que em forjar um teatrinho falsamente binário entre representação/não-representação... Algo que é muito semelhante ao que Kiarostami consegue em Close-Up ao cruzar os episódios dos encontros entre Hossein Fabdzian e a família que passará a desfrutar da sua interpretação/performance do cineasta Mohsen Makhmalbaf com as cenas do julgamento de Hossein, cenas estas que o próprio Kiarostami propõe na banda de áudio como tão "ficção" quanto o resto do filme.

E assim existem os filmes como Close-Up e Eu, um Negro, que nos colocam pela primeira vez num mundo maravilhoso que adoramos conhecer e explorar com a ajuda dos seus autores (verdadeiros pedagogos no sentido mais estrito da palavra), e os filmes como Dionysos e O Vento nos Levará, filmes que problematizam e tornam difícil a compreensão deste novo mundo, que mostram que encanto e fascinação caminham lado-a-lado com juízo e rigor. Dyonisos, mais que um experimento em forma ou o momento em que um percurso de mais de 30 anos abre um parêntese e se coloca em questão, é antes de mais nada a acumulação de uma série de idéias sobre o cinema e as possibilidades de pesquisas com linguagem, intertextualidade, metalinguagem e representação. Algumas imagens do filme são de fato tão impressionantes e tão absurdamente ricas – a carcaça de um carro dependurado, balançando como se fosse as carcaças de um tigre, e o renascimento deste carro como um tigre – que se torna impossível não se sentir como um mero infante diante de tudo que este homem conhece não só dos mundos em que viveu (o da África, o do cinema, o da etnografia, o da Europa) como também daqueles que faz existir no seu filme (o mundo da universidade, dos estudos, do conhecimento, da história etc.). Notável um trabalho de cineasta tão simples e eficaz e que é ao mesmo tempo o mais acertado, o mais claramente adequado para aquilo que se pretende colocar na tela.

Não contente em ser um arquiteto engenhoso como também um geólogo com impressionante capacidade de percepção, Rouch é um montador nato, alguém que conhece o métier como poucos (o corte que nos leva de um arco de pedras para a fachada da universidade onde Hugh Gray apresentará sua tese de doutorado dá dimensão de todos estes talentos de Rouch). Mas o que provavelmente mais impressiona em Dionysos é a forma com que Rouch traz à tela toda a historicidade dos ambientes, tudo aquilo que entre uma cena e outra nos leva de um determinado tempo-espaço para outro. De um galpão-estúdio na França dos anos 80 a alguma cerimônia religiosa na África dos anos 60, de documento para ficção e o inverso ao momento em que os dois não se separam mais, de uma celebração nas ruas de Paris a uma cena de um de seus filmes dos anos 50, tudo em Dionysos parece dar uma perspectiva histórica que aproxima o trabalho de Rouch aos cinemas de Jean-Luc Godard, Roberto Rossellini e Hans-Jürgen Syberberg (as sobreposições de tela em Dionysos lembram particularmente o cinema deste último); enfim, de todos que tomaram emprestadas as lições do professor Rouch e de quem Rouch, novamente um estudante em plenos anos 80 e após 30 anos de cinema, parece tomar emprestado para realizar este filme. Fazer do simples ato de se mostrar um acontecimento em uma arte e amalgamar história com etnografia, este parece ser um dos credos de Rouch aqui, e para tanto o cineasta parece interessado em fazer ele mesmo uma pequena história acerca da evolução das representações, operação que surge quase que sorrateiramente e que no entanto acaba por conferir ao filme alguns dos seus momentos de maior beleza (o carro-tigre passeando pelas ruas de Paris, a celebração dos confrades de Hugh Gray no parque onde o filme se inicia, os passeios realizados por dentro de palcos/pinturas etc.).

Puro êxtase formal, total entrega de um sujeito a um objeto que muitas vezes parece lhe causar um certo estranhamento, documento de uma experiência que por todos os seus poros deixa entrever o entusiasmo de todos os participantes, Dionysos é destes filmes que chacoalham nossas cabeças durante muito de suas durações mas que abrem em seus finais horizontes e perspectivas que satisfazem não apenas os olhos como também o intelecto. E como bem sabemos, estes filmes – sejam eles Close-Up, Stromboli ou Dionysos – são especiais.

Bruno Andrade

 

 





cartaz de Dionysos