As catástrofes provocadas
por fenômenos da natureza são antigas conhecidas
do cinema hollywoodiano. Filmes como Terremoto,
Inferno na Torre e afins foram maçantemente
estudados enquanto provocações de um medo,
tão caro aos potenciais de imersão da
sala-escura, projetado nos fenômenos da natureza
ou identificado a uma falha interna por um misto de:
a) discurso ecológico/pessimista contra a modernização
tecnológica desenfreada; e b) especulação
de inimigos "reais", uma vez que os inimigos
políticos não eram mais capazes de provocar
sequer um arranhão no império ultra-equipado
militarmente. É muito bem conhecida a preferência
das autoridades norte-americanas em culpar a natureza
ou alguma peça desajustada em seu maquinário
ao invés de admitir uma vulnerabilidade, em qualquer
grau que seja, em relação ao inimigo (característica
incrementada pelo orgulho ferido pós-Vietnam),
bastando lembrar as declarações, quando
da queda de algum helicóptero americano na última
guerra no Iraque, de que o motivo havia sido falha no
motor ou algo do tipo.
Não deixa de ser interessante, portanto, a conotação
adicional que o cinema-catástrofe ganha no pós-11
de setembro: agora a transferência do mal à
força maior da Natureza, com a qual ninguém
pode (nem mesmo os EUA), e à imprudência
tecnológica do Primeiro Mundo tem não
só uma função especulativa/provocativa,
mas principalmente cicatrizante. O maremoto que atinge
Manhattan, sede maior e mais emblemática dos
ataques terroristas (o avião que atingiu o Pentágono
quase não é lembrado, sua imagem sendo
um verdadeiro buraco-negro de antimatéria jornalística),
tem por função, além do espetáculo
mórbido, afogar os inimigos verdadeiros – ainda
frescos na memória do mundo – que mostraram sua
face, disseram que existem. A onda gigante que invade
Manhattan, verdadeira hidropolítica do afogamento,
é a única catarse possível do 11
de setembro. Re-encenar os aviões se chocando
contra as torres – e os efeitos especiais de O Dia
Depois de Amanhã dão provas de que
a cena seria, no mínimo, muito impactante – somente
reacenderia um medo, cravaria o punhal na ferida; não
é assim que deve funcionar uma terapia coletiva
para aquele episódio.
Roland Emmerich chegou em Hollywood empolgado com as
práticas de efeitos especiais elaborados dos
anos 80, tendo Spielberg como inspiração
mor. Artesão dedicado e bastante competente (seu
lado mais louvável, indubitavelmente), Emmerich
foi muito cedo enveredando pelo reacionarismo mais descarado
que podia existir, tornando-se porta-voz do patriotismo
norte-americano em sua versão bélica.
Disso resulta até uma cara-de-pau que faz dele
um cineasta singular dentro do panorama contemporâneo
(que está mais para o anti-bushismo exibicionista
de Michael Moore – vide prêmio recente em Cannes
– do que para a reconciliação da América
com o resto do mundo e sua reafirmação
como nação-líder). Poucos seriam
capazes, além de Emmerich, de filmar a cena de
O Dia Depois de Amanhã em que os americanos
invertem o sentido da imigração ilegal
na fronteira com o México, ou o discurso do presidente
na televisão, ao final do filme, em que ele agradece
aos países do Terceiro Mundo pela hospitalidade
e solidariedade em momentos tão difíceis.
Ou, a melhor de todas, o anúncio de que os EUA
perdoariam a dívida externa dos países
latino-americanos que concedessem abrigo a seus cidadãos.
"Isso é uma indecência!", alguns
podem exclamar. Mas é uma indecência na
mesma medida, ou melhor, em menor medida que praticamente
todas as imagens e comentários de Tiros em
Columbine.
Sentimento de culpa, reconciliação, reconstrução:
O Dia Depois de Amanhã tem de tudo isso
um pouco, mas nunca perde de vista o heroísmo,
a virtude que articula o indivíduo à coletividade
(processo básico desde Griffith), o que adquire
uma fórmula muito evidente em se tratando de
um filme-painel, que multiplica seus focos narrativos
somente para estabelecer um elo unificador entre eles
– a lógica do destino coletivo. No núcleo
representado pelo filho de Dennis Quaid (o cientista
que cruza o país de forma heróica, sobrevivendo
ao frio em busca do filho – mais didatismo, impossível),
toda a proposta reconstrutora do filme – "iluminista"
até – se torna óbvia: ele, a menina de
quem gosta e mais um grupo de pessoas ficam protegidos
dentro da biblioteca de Manhattan. Em meio aos livros,
ao conhecimento e à cultura acumulados pela humanidade,
são despertadas as fagulhas para o novo mundo
(de paz, de harmonia). Sempre que opta por articular
"mensagens" o filme é realmente muito
ruim, como na cena em que, para curar a septicemia da
menina que se machucou, abre-se um livro de medicina
e descobrem-se os sintomas da doença, a evolução,
o prognóstico... a cura. Roland Emmerich não
filma na chave hitchcockiana de Os Pássaros
(ainda que este seja citado numa única imagem
de O Dia Depois de Amanhã), do mal desconhecido
e cuja investida hostil permanece ambígua e inexplicável
– isso cabe hoje em dia a um Carpenter ou a um Shyamalan
em filmaços como The Thing e Sinais,
respectivamente. Os filmes de Emmerich necessitam de
explicação, esclarecimento, desenlace,
conclusão (e isso a princípio não
é defeito, mas o modo dramaturgicamente tosco
com que seus atos são expostos e o desespero
quase artificial em conduzir a humanidade à salvação
é que são fracos demais).
Resta o elogio válido, por mais lugar comum que
seja, de que os efeitos especiais são de fato
impressionantes (tanto a cena do furacão em Los
Angeles quanto a do maremoto em Manhattan são
muito boas) e a constatação de que O
Dia Depois de Amanhã, em meio a toda a obviedade,
guarda surpresas, como na bela cena – felliniana – do
navio russo que avança à deriva por entre
os prédios de Manhattan, perfurando o gelo até
encalhar em frente à biblioteca, onde uma fila
de rostos boquiabertos diz bastante sobre as intenções
do filme.
Luiz Carlos Oliveira Junior
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