O Dia Depois de Amanhã
Roland Emmerich, The day after tomorrow, EUA, 2004

As catástrofes provocadas por fenômenos da natureza são antigas conhecidas do cinema hollywoodiano. Filmes como Terremoto, Inferno na Torre e afins foram maçantemente estudados enquanto provocações de um medo, tão caro aos potenciais de imersão da sala-escura, projetado nos fenômenos da natureza ou identificado a uma falha interna por um misto de: a) discurso ecológico/pessimista contra a modernização tecnológica desenfreada; e b) especulação de inimigos "reais", uma vez que os inimigos políticos não eram mais capazes de provocar sequer um arranhão no império ultra-equipado militarmente. É muito bem conhecida a preferência das autoridades norte-americanas em culpar a natureza ou alguma peça desajustada em seu maquinário ao invés de admitir uma vulnerabilidade, em qualquer grau que seja, em relação ao inimigo (característica incrementada pelo orgulho ferido pós-Vietnam), bastando lembrar as declarações, quando da queda de algum helicóptero americano na última guerra no Iraque, de que o motivo havia sido falha no motor ou algo do tipo.

Não deixa de ser interessante, portanto, a conotação adicional que o cinema-catástrofe ganha no pós-11 de setembro: agora a transferência do mal à força maior da Natureza, com a qual ninguém pode (nem mesmo os EUA), e à imprudência tecnológica do Primeiro Mundo tem não só uma função especulativa/provocativa, mas principalmente cicatrizante. O maremoto que atinge Manhattan, sede maior e mais emblemática dos ataques terroristas (o avião que atingiu o Pentágono quase não é lembrado, sua imagem sendo um verdadeiro buraco-negro de antimatéria jornalística), tem por função, além do espetáculo mórbido, afogar os inimigos verdadeiros – ainda frescos na memória do mundo – que mostraram sua face, disseram que existem. A onda gigante que invade Manhattan, verdadeira hidropolítica do afogamento, é a única catarse possível do 11 de setembro. Re-encenar os aviões se chocando contra as torres – e os efeitos especiais de O Dia Depois de Amanhã dão provas de que a cena seria, no mínimo, muito impactante – somente reacenderia um medo, cravaria o punhal na ferida; não é assim que deve funcionar uma terapia coletiva para aquele episódio.

Roland Emmerich chegou em Hollywood empolgado com as práticas de efeitos especiais elaborados dos anos 80, tendo Spielberg como inspiração mor. Artesão dedicado e bastante competente (seu lado mais louvável, indubitavelmente), Emmerich foi muito cedo enveredando pelo reacionarismo mais descarado que podia existir, tornando-se porta-voz do patriotismo norte-americano em sua versão bélica. Disso resulta até uma cara-de-pau que faz dele um cineasta singular dentro do panorama contemporâneo (que está mais para o anti-bushismo exibicionista de Michael Moore – vide prêmio recente em Cannes – do que para a reconciliação da América com o resto do mundo e sua reafirmação como nação-líder). Poucos seriam capazes, além de Emmerich, de filmar a cena de O Dia Depois de Amanhã em que os americanos invertem o sentido da imigração ilegal na fronteira com o México, ou o discurso do presidente na televisão, ao final do filme, em que ele agradece aos países do Terceiro Mundo pela hospitalidade e solidariedade em momentos tão difíceis. Ou, a melhor de todas, o anúncio de que os EUA perdoariam a dívida externa dos países latino-americanos que concedessem abrigo a seus cidadãos. "Isso é uma indecência!", alguns podem exclamar. Mas é uma indecência na mesma medida, ou melhor, em menor medida que praticamente todas as imagens e comentários de Tiros em Columbine.

Sentimento de culpa, reconciliação, reconstrução: O Dia Depois de Amanhã tem de tudo isso um pouco, mas nunca perde de vista o heroísmo, a virtude que articula o indivíduo à coletividade (processo básico desde Griffith), o que adquire uma fórmula muito evidente em se tratando de um filme-painel, que multiplica seus focos narrativos somente para estabelecer um elo unificador entre eles – a lógica do destino coletivo. No núcleo representado pelo filho de Dennis Quaid (o cientista que cruza o país de forma heróica, sobrevivendo ao frio em busca do filho – mais didatismo, impossível), toda a proposta reconstrutora do filme – "iluminista" até – se torna óbvia: ele, a menina de quem gosta e mais um grupo de pessoas ficam protegidos dentro da biblioteca de Manhattan. Em meio aos livros, ao conhecimento e à cultura acumulados pela humanidade, são despertadas as fagulhas para o novo mundo (de paz, de harmonia). Sempre que opta por articular "mensagens" o filme é realmente muito ruim, como na cena em que, para curar a septicemia da menina que se machucou, abre-se um livro de medicina e descobrem-se os sintomas da doença, a evolução, o prognóstico... a cura. Roland Emmerich não filma na chave hitchcockiana de Os Pássaros (ainda que este seja citado numa única imagem de O Dia Depois de Amanhã), do mal desconhecido e cuja investida hostil permanece ambígua e inexplicável – isso cabe hoje em dia a um Carpenter ou a um Shyamalan em filmaços como The Thing e Sinais, respectivamente. Os filmes de Emmerich necessitam de explicação, esclarecimento, desenlace, conclusão (e isso a princípio não é defeito, mas o modo dramaturgicamente tosco com que seus atos são expostos e o desespero quase artificial em conduzir a humanidade à salvação é que são fracos demais).

Resta o elogio válido, por mais lugar comum que seja, de que os efeitos especiais são de fato impressionantes (tanto a cena do furacão em Los Angeles quanto a do maremoto em Manhattan são muito boas) e a constatação de que O Dia Depois de Amanhã, em meio a toda a obviedade, guarda surpresas, como na bela cena – felliniana – do navio russo que avança à deriva por entre os prédios de Manhattan, perfurando o gelo até encalhar em frente à biblioteca, onde uma fila de rostos boquiabertos diz bastante sobre as intenções do filme.

Luiz Carlos Oliveira Junior