Uma das mulheres que
interage com a câmera, ao final de Crônica
de um Verão, verbaliza a problematização
do filme: "Só somos verdadeiros quando estamos
sozinhos e à beira da histeria". A citação
é de lembrança, de uma única visão
do filme, mas o sentido é aproximado. Talvez
essas palavras exagerem um pouco, pois limitam o conceito
de verdade a um ideal metafísico de um "eu
essencial", mas, em linhas gerais, estão
em sintonia com a proposta de Jean Rouch e Edgar Morin.
A mulher em questão está reagindo, nesse
momento citado, à sua própria imagem no
filme. Fala depois de exibição promovida
pelos diretores a seus entrevistados. Uns criticam a
"interpretação" dos outros e
acusam-se de estarem falsos no filme. A colocação
da mulher citada aqui assume a auto-encenação
para a câmera. A palavra chave de sua afirmação,
porém, não é sozinho e sim a outra
expressão, "à beira da histeria".
Há na citação do estar quase histérico
a constatação de que, ao contrário
da suposição generalizada, a solidão
em si não inibe a (auto)encenação.
É preciso estar sem consciência de si mesmo.
Essa é também uma retórica intuitivamente
incumbida de constatar que, se sozinho o ser humano
já encena para si mesmo um personagem, diante
de uma câmera não há nada além
de interpretação. Com o olhar de alguém
sobre si, com a consciência da exposição
pública da própria imagem, não
há como não vestir um personagem. Não
teríamos mais um número para a câmera
nos momentos finais, compostos da própria (auto)crítica
de Rouch e Morin? Um problematiza todos os conflitos
não resolvidos no filme e no método de
realização, o outro celebra esses conflitos
como mobilizadores de uma continuidade do processo Morin
afirma na frase final: "Estamos aqui para ter problemas".
Sucinto. Encenações são pura problematização
da imagem.
Nesse sentido, o cinema-verdade, oficialmente fundado
por Rouch e Morin, estão em fina sintonia, na
verdade muito ampla, com o cinema moderno. Temos nos
dois casos uma disjunção dos elementos
narrativos, a inserção de ruídos
na produção de sentidos imediatos a partir
da organização dos planos, o cinema se
fazendo notar por meio da revelação do
olho de quem dirige e, com essa articulação
estilística, escancarando os artifícios
ilusionistas para buscar outra forma de comunicação.
O narrador onisciente é substituído pelo
narrador em dúvida. No entanto, nesse paralelismo,
em linhas gerais, há um paradoxo. Enquanto o
cinema de ficção buscava a aproximação
com a realidade, embora com outro estatuto, o cinema
documental aproximava-se da ficção, mas
sem querer organizar as atuações de seus
atores, de modo a se extrair significações
delas.
Crônica de um Verão coloca em crise
o documentário clássico-idealista, simulador
de apreensão ou síntese do real, e reiventa
a não ficção como linguagem e como
conceito. E não apenas por uma questão
filosófica, a partir da impossibilidade de se
encontrar uma essência em uma representação,
mas por questão de metodologia. Porque na exibição
para os entrevistados, quando uns falam das atuações
dos outros, emerge outra problemática: o reconhecimento
de si no recorte, gerado pela montagem, feita pelos
realizadores. Temos duas camadas: a da representação
de quem está diante da câmera e a da manipulação
dessa representação pelos autores. Há
a intervenção da câmera na filmagem
e dos realizadores nos cortes das imagens-falas e na
ordenação delas na estrutura narrativa.
O documentário então assume-se como o
registro da provocação de reações
à câmera e como organização
dessas reações para atender aos objetivos
de quem faz o filme (seja quais forem). Simples assim.
Complexo assim. Porque o objetivo de Jean Rouch e Edgar
Morin, ao estimularem um grupo de pessoas a falar de
si mesmos e de suas relações com o mundo
ao redor, é a princípio filmar como vivem
os franceses. Não se diz se buscam um padrão
que relaciona uma vida com outra, de modo a se buscar
naqueles indivíduos a parte de um grupo e nesse
grupo a parte de uma sociedade, ou se pretendem captar
modos de vida desconectados uns dos outros. Mostram
cafés da manhã, reclamações
sobre o trabalho, ideais hedonistas de felicidade, confissões
de conflitos emocionais. Cada um dos entrevistados compõe
personagens a partir da verbalização de
pensamentos e sentimentos que tanto informam sobre o
perfil psicológico deles como nos dão
a visão de cada um sobre seu posicionamento na
configuração social e política.
Não importa as respostas e afirmações
se verdadeiras ou se invenções. Importa
a crença nelas por parte de quem responde, a
verdade na forma-resposta, a inventiva autenticidade
de encenação. Importa a aparência,
as evidências, a reação aos encontros,
às intervenções. Até porque,
vivendo em comunidade, sempre mediado pelo olhar do(s)
outro(s) sobre suas palavras, gestos e posturas, o homem
é ator. Tem de encontrar sua autenticidade na
representação. E o conceito de cinema-verdade,
estabelecido por Rouch, nisso difere do de cinema-direto
(conceito de Ruspoli), no qual a intervenção,
se existe, é tornada transparente (por meio da
ausência de comentários, entrevistas, músicas,
movimentos da câmera), ou, se não existe
mesmo (câmera escondida), busca captar algo não
captável caso a câmera se faça notar
a seus filmados. Bill Nichols e Juliane Burton definiram
o primeiro procedimento como "interativo"
e o segundo como "observacional". O interativo
partia da premissa, por parte dos franceses, de que
a câmera viola intimidades e, sendo assim, implica
em riscos e em uma ética. Sua proposta: assumir
a intervenção e, a partir dela, provocar
reações reveladoras. Buscar a verdade
no "conflito" e nas trocas entre quem filma e quem é
filmado. Assumir a invasão do cinema. A linha
observacional perseguia a neutralidade, mais na forma-aparência
que no conceito
Cabe aqui um paralelo com a mesma oposição
na fotografia. O fotógrafo húngaro Georges
Brassai (ou Gyula Halász) denunciou fotógrafos
que, em nome da autenticidade, capturavam pessoas desprevenidas,
sem elas terem consciências de estarem sendo fotografadas.
Em seus ensaios sobre fotografia, publicados em 1977,
Susan Sontag, em uma nota de pé de página,
contrapôs-se a essa crença de Brassai.
"No rosto das pessoas, quando ignoram que estão
sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando
elas sabem disso", escreveu. O fotógrafo
americano Walker Evans, na prática, também
defendia o postulado da imagem roubada. Parte de seu
trabalho é construído a partir da utilização
de uma câmera oculta e em miniatura com a qual
fotografa passageiros de metrô. Rouch estava além
disso em termos estéticos. Havia virado a página
da discussão sobre a maior ou menor autenticidade
contida na imagem de quem não percebe a câmera.
Queria essa autenticidade, que nem sempre acontece,
diga-se logo, na reação à câmera.
Em pelo menos dois segmentos de Crônica de
um Verão, consegue essa proeza e atinge algo
inominável. Primeiro na confissão dos
conflitos psicológicos da mulher já citada
nesse texto, que, pelo grau de exposição,
provoca reações negativas entre outros
entrevistados, acusada de mostrar demais as fragilidades.
Segundo na cena em transe da judia que caminha pela
rua em aparente suspensão da razão.
O MOMENTO HISTÓRICO
Estamos em 1960. É um momento de mudanças
técnicas no cinema, que resultarem em mudanças
estéticas, com a conciliação de
circunstância com projeto artístico, como
fez os diretores agrupados sob o guarda-chuva da Nouvelle
Vague. Câmeras mais leves, som direto (gravador
Nagra). Os meios determinam a forma e não apenas
a produção. Michel Brault, o diretor de
fotografia, vale-se das condições. Tem
a possibilidade de filmar cenas mais longas e mover
a câmera sem transferir peso aos movimentos. A
platéia já estava se habituando com as
imagens do telejornalismo e do cinejornalismo: uma imagem
tremida, mal iluminada, pouco definida, editada com
cortes bruscos e um som impuro - tudo contendo uma marca
de autenticidade que contradizia o formalismo e a estilização
característicos do documentário clássico.
O som sincronizado com a imagem também ampliava
a sensação de uma captação
sem manipulação do real. Não era
possível capturar a vida como ela é se
não se podia exibir a fala na imagem, como escreveu
o cinegrafista Richard Leacock, um dos patriarcas do
cinema direto-observacional. Rouch irá pelo outro
caminho, o do som direto produzindo vida com as câmeras
leves, em vez de registrá-la como se a vida corresse
alheia à presença da câmera. Uma
pessoa fala para a câmera o que não falaria
sem ela, age de uma forma como não agiria sozinha.
Há na interpretação, portanto,
uma experiência única. Jean-Louis Commoli
enterraria em textos a transparência do documentário
ao escrever que a câmera produz eventos, que o
documento é fabricado pela técnica, formatado
por opções estéticas, não
existe em si e sem a intervenção do cinema.
Não há novidade nisso hoje, quando nos
habituamos ao cinema de encontros de Eduardo Coutinho
e com a exibição de imagens dos personagens
vendo suas imagens (Cabra Marcado para Morrer
e Boca do Lixo, de Coutinho, À Margem
da Imagem e As Parteiras, de Evaldo Mocarzel,
A Alma do Osso, de Cao Guimarães, Nem
Gravata Nem Honra, de Marcelo Masgão), mas,
nos anos 50-60, um castelo começava a ruir. E
outro, pela diluição posterior e neo-convenção,
foi erguido. Não há como tentar transpor
em palavras a experiência de um primeiro contato
com Crônica de um Verão sem fazer
uso da primeira pessoa e da subjetividade contida nesse
encontro (meu com o filme). Mesmo com todas as referências
históricas sobre sua importância, sobre
seu marco e sobre as características inaugurais
de seus procedimentos, a apreensão do filme se
deu sobretudo pela força das imagens e de sua
articulação. Nada ali podia ser considerado
uma novidade, para quem já tinha visto a reprodução,
diluição, derivação e multiplicação
das opções empregadas, mas ainda assim
elas pulsam com vitalidade, sobrepondo-se a todo o processo
decorrente desde então nos filmes documentais
(ou de não ficção, expressão
também problemática, se formos averiguar
a natureza da ficção, em toda amplitude).
Crônica de um Verão, para quem o
acaba de conhecer, não é apenas um documento
histórico, que exige a transposição
do olhar para quando foi feito, dentro do contexto de
então. É um tremendo filme. Ponto.
Mas a jornada pelo tempo é necessária
para se entender seu processo de existência, até
porque toda invenção artística,
mas principalmente as artes ancoradas na tecnologia,
respondem a seus momentos históricos e valem-se
de conquistas técnicas. Pois no caso estamos
também em fase seminal de um segmento da sociologia
que, adiante, iria romper com o conceito de indivíduo
produzido unicamente pela classe social, libertando
a construção do sujeito das paredes generalizantes
e resultando no conceito de "ator social", segundo a
definição de Alain Toraine, par intelectual
de Morin, que por sua vez colocaria contra o muro a
noção de sociedade como um tecido quase
homogêneo em seus conflitos e contradições
("Não suportamos mais as construções
intelectuais que explicam todas as nossas condutas por
meio de nossa relação com o poder ou de
nosso lugar na divisão do trabalho", Edgar Morin).
Os personagens de Crônica de um Verão,
embora vivam em uma mesma cidade, em um mesmo tempo
histórico, em segmentos diferentes de uma mesma
classe social, não podem ser vistos como sintomas
de nada, ou não como sintomas sobretudo de suas
redes. Cada um deles vive sua condição
social, sim, mas reage a ela com marca própria.
Vemos questões surgirem nas conversas, questões
daquele momento e daquele lugar, mas sem virar sistematização.
Talvez o indício mais evidente dessa falta de
indícios generalizáveis seja um operário
da Renault que desmistifica a figura clássica
do proletariado ao ver os colegas como burgueses.
ETNOGRAFIA FÍLMICA
Não se pode entender as conquistas e progressos
de Jean Rouch sem compreender conquistas e progressos
da antropologia. A etnografia pré-câmera
tinha como elemento mediador entre o observador e os
observados a escrita. O antropólogo via e relatava
em palavras. A memória era seu filtro entre o
real e o texto, e sua bagagem teórica e ideológica
preenchiam os hiatos, de modo a se criar um fio condutor
linear e aparar as contradições. A entrada
em cena da câmera conferiu ao observado fílmico
uma referência epistemológica mais legítima.
Trata-se, afinal, de evidência. Pode ser vista.
No entanto, conforme o uso se ampliou, surgiram problemas.
Pois documentar não tem caráter divino
e onisciente. Exige enquadramento e escolhas. Direção,
enfim. Mudou-se, consequentemente, a procura. O filme
etnográfico continuou a ter como base a observação
do real, mesmo se esse real for provocado pelo cineasta-etnógrafo
(ou etnógrafo-cineasta). Claudine de France definiu
como antropologia fílmica em Cinema
e Antropologia (1982, editora Unicamp) essa modalidade
de "registrar em imagens o homem como ele é
apreendido pelo filme, na unidade e na diversidade das
maneiras como coloca em cena suas ações,
seus pensamentos e seu meio ambiente" . Só
se apreende algo do homem, afirma Claudine de France,
se ele for provocado a mostrar-se. E só revelando
algo de si pode revelar, por extensão, algo da
sociedade contido em seus gestos e palavras.
Já em 1952, durante um congresso em Viena, Rouch
declarou: "Quando os cineastas fazem filmes etnográficos,
na verdade fazem filmes e não etnografia. Quando
etnógrafos fazem filmes etnográficos,
na verdade fazem etnográfica e não filmes"
O objeto da antropologia fílmica tornou-se, com
o uso mais freqüente da câmera, não
só o homem como também o instrumento da
disciplina, ou seja, o próprio filme. A metodologia
e o processo de observar, a misè-en-scene em
suma, passa a ser tematizada direta ou indiretamente.
"O estudo do homem pelo filme não significa
somente o estudo do homem, mas igualmente o homem filmado
tal como aparece no filme" (Claudine France em
Cinema e Antropologia). Esse cocneito é
mais avançado que o de Margaret Mead, no início
dos anos 70, para quem o homem só é apreendido
em ações, nunca em palavras, como se as
ações não fossem como as palavras
reações do observado ao observador. Ela
se apóia em títulos dos anos 30 aos 50,
como Sous les Masques Noirs, de Marcel Griaule
(referência primeira de Jean Rouch), Trance
and Dance in Bali, da própria Marguerit Mead
e Gregory Bateson, e The Hunters, de John Marshall,
antes da sincronização de som e imagem.
Interessava apenas o que era filmável, a ação
do homem sobre seu ambiente. A sincronização,
como afirma Claudine de France, descobriu o tempo do
homem. A filmagem em planos-sequências permitia
maior intimidade da câmera com as pessoas, além
da expressão verbal de emoções
e pensamentos.
Historicamente, o processo da sincronização
do som, sem o qual não haveria Crônica
de um Verão e seu conceito de cinema-verdade,
é contemporâneo da descolonização,
cuja conseqüência, no documentário
etnográfico, foi levar as câmeras voltarem-se
para as próprias sociedades de quem filma. O
observador deixa de ter imagem imparcial e tematiza
o próprio olhar, seus métodos, suas incertezas
sobre seus métodos. Também são
apontadas os procedimentos de misè-en-scene.
Rouch liderou essa turma de cineastas das ciências
humanas, composta também por David MacDougall,
Marc Piault, Eliane de Latour.
No entanto, como acusava Margared Mead, a antropologia
fílmica, assim como parte dos documentários,
tornaram-se tagarelas e, assim, subestimaram a capacidade
expressiva das imagens. Esse talvez seja hoje um dos
raros debates formais sobre o documentário no
Brasil: a ditadura do entrevistismo. Isso não
deixa de ser herança da etnografia original,
cuja metodologia apoiava-se na história oral,
em como a oralidade expressa uma cultura, mais até
que rituais ou comportamentos. A palavra no documentário,
porém, é uma produção histórica,
convertida em estética (com toda a problematização
dela). Antes do cinema falado, os documentários
recorriam, quando precisavam referir-se ao contexto
das imagens, aos letreiros explicativos. Nannok do
Norte, de Robert Flaherty, tem um porção
deles, alguns bem longos, que interrompem o fluxo visual.
Seguiu-se a hegemonia do documentário com narrador,
que lia os textos escritos pelos diretores, um dado
sonoro subestimado e importantíssimo para a fluência
do filme. Com Crônica de um Verão,
a voz chega ao "objeto", mas, como expõe
Rouch, o discurso continua mediado, mas agora assumindo
e problematizando a mediação, não
para encontrar soluções para se filmar
o homem tal qual ele é, mas para se criar permanentes
problemas nessas supostas soluções. "Estamos
aqui para ter problemas", conclui Morin. Tanto
a arte como as ciências (não só
humanas), quando conscientes de sua inserção
na vida e despidas de ideais totalizantes-enganadores,
têm compromisso com as dúvidas. Rouch revela-se,
assim, grande artista e cientista. Um homem embebido
de seu tempo, com toda a significação
dessa relação.
Cléber Eduardo
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