Viagens fantásticas
(parte 1)
É curioso e sintomático
como nesse panorama cultural pós-pós-moderno
em que se vive hoje, alguns fenômenos audiovisuais
do início do século 20, parecem voltar
à tona atualizados. Muito em voga nos primeiros
anos do cinema e um fenômeno cultural na primeira
década do último século, os filmes
de viagem (registros cinematográficos de
regiões exóticas do mundo que faziam o
rebuliço da Europa e nos EUA, principalmente)
estão de volta em cada vez mais numerosos programas
de turismo-audiovisual que se multiplicam pelas TVs
a cabo em todo o mundo. A internet, a rapidez com que
as imagens e informações podem ser transmitidas,
essa proximidade parcial da imagem e dos sons, tem dado,
na última década, um gás renovado
a essa curiosa indústria de cartões
postais em movimento. De alguma forma, a rapidez
com que as informações são transmitidas
hoje, atualiza o sentimento de ao vivo, de presença
viva, de substituição de experiências
que capitaneava a produção primordial
dessa natureza imagens, há mais de cem anos.
Já comentei aqui na Seção TV, o
tipo de esvaziamento discursivo que esse estatuto da
imagem vem trazendo ao telejornalismo como um todo,
mas hoje e nas próximas semanas, gostaria de
me ater brevemente a três quadros específicos
do dominical global Fantástico e suas
curiosas estratégias de utilização
do que podemos apelidar de "passaporte audiovisual".
O primeiro deles, do qual trata na coluna de hoje, é
aquele que mais diretamente trabalha com o sub-gênero,
e que mais se localiza como uma celebração
aberta das suas possibilidades e cacoetes; o nome já
diz tudo: A Fantástica Volta ao Mundo.
Zeca Camargo (um dos poucos ex-MTV a ter se firmado
na TV aberta) protagoniza esse misto de programa televisivo
com weblog e propaganda de pacotes turísticos.
A cada semana, a partir de uma pré-seleção,
o público "escolhe" para qual destino
o apresentador-turista deve se encaminhar. Com uma proposta
ingenuamente definida como de crônica cultural,
o programa deixa de lado todo e qualquer interesse por
elementos presentes nos espaços visitados que
estejam fora dos quesitos ortodoxamente entendidos como
cultura, ou seja: alimentação, folclore
e espaços físicos. Por cultura, o programa
entende aquilo que pode se tornar uma atração
de entretenimento pós-antropológico. Mas,
se essa postura de amenização cultural
não é nenhuma novidade na televisão,
o que chama mais atenção no programete
é a mirrada quantidade de imagens e informação
que nos chega até a tele da TV. Um orçamento
relativamente vultoso, mais quase três meses de
atividades, são transformadas, semanalmente,
em fragmentos precários e mornos sobre os espaços
visitados, com duração não muito
superior a 5 minutos dentro da grade de programação.
Com a estrutura/estética de um cartão
postal, o que se vê são uma pequena coleção
de imagens do local visitado, adornados por uma pequena
narração que pontua as ações.
Fica evidente, e isso me parece o mais interessante,
é que o que há de menos importante no
programete é o que, de fato, chega até
o espectador – ou seja: é a informação,
a idéia imaginada dessas viagens a partir de
breves registros desse percurso que aparecem como a
verdadeira atração do programa. É
impressionante o nível de virtualização
dessa experiência, na medida que a viagem em si
mesma, a ida de Zeca Camargo aos locais, é antes
de tudo um objeto de informação e não
de experimentação. Zeca Camargo está
ali mais como o nome e a imagem de âncora-da-Rede-Globo
do que como um agente criativo/vivente dos espaços
imagéticos. A farsa da intimidade do diário
de viagens torna-se mais importante do que a experiência
imagética mesmo. Um programa de viagem que se
utiliza do fetiche da viagem mais do que percorre ou
habita, ainda que precariamente, seus cenários.
Lembro-me do curta-metragem-provocação
de César Migliorin, Ação e Dispersão
(Brasil, 2002), em que o diretor-personagem, percorria
o mundo queimando o orçamento do próprio
filme exibido, até o dinheiro acabar... É
mais ou menos isso o que Zeca Camargo pratica semanalmente
no Fantástico, mas, em seu caso, sem sequer
um pingo de ironia e (com ironia, agora...) usando um
orçamento um pouco mais alargado...
(Na próxima coluna, seguimos a viagem).
* * *
Para quem é ou já foi fã de histórias
em quadrinhos norte-americanas, a série de animação
Liga da Justiça (SBT pelas manhãs
e CartoonNetwork aos Sábados) é
um objeto de rara satisfação entre as
tantas e precárias adaptações desse
universo para a TV. Capitaneada pelo mesmo Bruce Timm
que participou da revitalização do Batman
televisivo com a série Batman: Adventures,
a animação é um primor de traço,
direção e roteiro como há muito
não se via nos desenhos animados de aventura.
Aliás, para aquele velho dilema dos grandes estúdios
em não encontrar bons roteiristas para as versões
cinematográficas dos heróis, a resposta
me parece óbvia: deixa tudo na mão de
Timm e sua equipe – os caras sabem o que fazem. O episódio
em que um vilão-sangue-suga retirava os poderes
de todos os super-heróis e é surpreendido
por um Batman sem super-poderes e apenas dono de muita
raiva e inteligência, era de se "copiar"
e levar para o cinema correndo, tamanho seu potencial
narrativo e visual para uma tela grande...Mas, e o que
é mais curioso, esse simples desenho animado
(que é um dos maiores sucessos nos EUA entre
crianças e adolescentes), parece assustar ainda,
pela complexidade das histórias e perfis dos
personagens, os bem-comportados executivos da Warner
– que seguem preferindo lutar por versões mais
amenas (pops?) dos super-heróis da editora DC
Comics, como tentativa vaga (e furada) de garantir retorno
financeiro nas salas de cinema... E seguem engavetando
projetos.
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Coito
de Cachorro, Otávio Mesquita, Sônia Abrão
e outras sumidades televisivas (por Francisco Guarnieri)
Pânico
(por Felipe Bragança)
Notas,
notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
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