Pânico!
O
dominical Pânico na TV já não
é exatamente nenhuma novidade. Desde o início
deste 2004, vem se destacando como uma das melhores
estréias em televisão dos últimos
anos, sendo certamente o melhor humorístico no
ar hoje na televisão aberta brasileira. A forma
com que conjugam o humor burlesco com a crítica
metalinguística da própria cultura de
massa em que estão inseridos, alcança
(não raro) momentos brilhantes. Toda sua estrutura
é armada como uma grande paródia do universo
cultural da televisão brasileira, jogando com
os clichês dos programas de auditório sem
perder de vista a provocação, e um saudável
sentido de "excesso", de "over".
Aliás, esse é um ponto notável
no programa: há cerca de oito meses no ar, o
programa ainda mantém o cultivo de uma falta
de limites, de uma aposta no erro e no acerto cada vez
mais rara numa televisão marcada pela padronização
de linguagem. Não há em Pânico
na TV qualquer noção pseudo-erudita
da boa ou da má qualidade na TV, não há
qualquer parâmetro moral da famigerada contrapartida
social ou da "linguagem popular"...Acima disso,
o dominical da Rede TV! surpreende justamente
por se colocar além de qualquer dicotomia entre
popular e inteligência, entre televisão
(ou meio de comunicação de massa) e criação
artística. Pânico na Tv é,
em sua base, uma grande celebração crítica
do meio e da linguagem televisiva, apinhada de boas
esquetes e algumas alfinetadas impagáveis onde
importam menos a TV de qualidade do que suas
qualidades de TV. "Vamos ser convidados
para a Tv Cultura...", debocham os apresentadores,
alfinetando a monotonia da programação
oficial. Não existem limites comerciais ou estatais
para a desconstrução do programa, que
desafia seus convidados (as "celebridades")
para um verdadeiro jogo de artimanhas onde o objetivo
maior é desestabilizar o lugar seguro das estrelas.
Um exemplo adorável no último domingo
foi a presença de Kelly Key como convidada especial
– tendo como "gancho"oficialesco, seu futuro
programa infantil na Rede Bandeirantes. Mais do que
o deboche escrachado e direto, Kelly Key foi surpreendida
por uma série de "peças", de
pegadinhas, de provocações capazes de
fazer com que a própria estrela saísse
de seu lugar-comum e debochasse de si mesma. Na melhor
passagem, foram apresentadas, num telão, algumas
perguntas (supostamente enviadas por futuros espectadores
da loira) onde crianças de seis, sete anos, faziam
perguntas NÃO sobre sua vida pessoal (lugar-comum
da "saia justa" que a cantora tiraria de letra),
mas sobre tópicos arriscados como: a dívida
externa brasileira, a cobrança da CPMF, o ataque
de Israel na faixa de Gaza, a Operação
Vampiro, entre outros. Ridicularizando, a um só
tempo, o ideal de relevância cultural na TV e,
no outro extremo, a banalidade quase débil dos
programas infantis da linhagem-Xuxa (não esqueçamos
que Key estará sendo produzida pela mesma Marlene
Mattos); o pequeno esquete-entrevista soube, além
disso, colocar contra a parede o próprio lugar
clichê da apresentadora infantil, totalmente incapaz
de articular qualquer resposta às perguntas.
Pelo contrário, as respostas de Key (entre o
constrangimento e a auto-paródia assumida) só
contribuíam para salientar as piadas, se saindo
com pérolas como: "Porque os Israelenses
são maus...".
Para encurtar os elogios, e para não contar tudo
de uma vez, cito alguns dos outros pontos altos do programa
em que se incluem: as incursões provocativas
do Repórter Vesgo (no último domingo,
na entrada do show do cada vez mais engomado Caetano
Veloso em São Paulo), a Hora da Morte
(exercício físico de comicidade no melhor
estilo das intervenções surrealistas)
e a irônica forma com que os playbacks dos convidados
são tratados no programa – onde a música
é sempre colocada sem sincronia com os lábios,
de maneira a explicitar a artificialidade da presença
"ao vivo" em questão (ou no quadro
final em que um sósia mal-feito de um cantor
é colocado para dublar a música de uma
banda). Com essas brincadeiras simples, o programa consegue
discutir a própria noção de autenticidade
na TV, debochando abertamente de um starsystem
que, de tão virtualizado, faz com que um sósia
de péssima qualidade possa simplesmente substituir
o artista "original" sem a menor vergonha...
e quase sem perdas para o espectador.
Para além desse
elogio rasgado e um tanto corrido, Pânico na
Tv, sem dúvida, merece muita atenção
e uma longa vida. Esperamos, futuramente, poder entrevistar
alguns de seus integrantes/idealizadores aqui para a
nossa Seção TV.
Nota 1:
A cena de reencontro amoroso entre Laura e Marcos (na
última sexta-feira) em Celebridade entrou
para a pequena lista de pérolas do novelão
de Gilberto Braga pela forma com que soube virar o jogo
previsível da vilania e perverter o drama dos
personagens diante das expectativas do espectador (dando
à antagonista um lugar de existência e
afeto raros na televisão – tão enamorada
por clichês de fácil digestão).
Digna de antologia, a cena também contou com
um trabalho preciso de direção – baseado
numa inspirada Cláudia Abreu e num adequadamente
monolítico Márcio Garcia: confirmando
que um dos grandes trunfos dessa telenovela tem sido
o feliz encontro de um texto crítico e habilidoso
com um trabalho de casting memorável.
Nota 2:
Para não ficar só nos elogios...É
terrível a mania que Ana Paula Padrão
tem de querer coroar suas reportagens especiais para
o Jornal da Globo com textos ensaísticos
(em off) da pior espécie. Na última
semana, visitando o Afeganistão pós-queda
dos talibã, a repórter demonstrou mais
uma vez seu talento para se aventurar em territórios
longínquos atrás de bons flagrantes culturais
e imagens pouco acessíveis, mas também
sua terrível inabilidade e incapacidade de conseguir
fazer do jornalismo um exercício mínimo
de alteridade cultural. Só para exemplificar
o tamanho constrangedor do problema: na última
reportagem, sobre a noite de Kabul, a imagem mostrava
um lugar onde homens se encontravam para dançar
músicas típicas afegãs (algo proibido
em tempos de talibã) e terminava com a seguinte
e bombástica frase na voz pseudo-elucidativa
de Ana Paula: "É, em Kabul, as noites são
de festa e rock'n'roll". Somado à forma
unilateral com que descrevia as maravilhas do novo regime
(eles agora "imitam nossas pizzas") e a "falta
de coragem" das mulheres que insistem em usar burcas
(como se isso não fosse tradição
em certos grupos muçulmanos há alguns
séculos...), esse tipo de deslize acabou por
transformar uma boa oportunidade jornalística
num arremedo mal-resolvido de cultura de rádio-relógio.
Onde um complexo processo de choque cultural (e uma
bela coleção de imagens – diga-se de passagem:
a Rede Globo é referência no assunto)
acaba por ser reduzido a essa meia dúzia de frases
de efeito e a frágeis tentativas de síntese,
que se tornam mais parecidas com um diário turístico
do que com um ensaio jornalístico...(Ver o artigo
Ana Paula Vai à África, de 2002).
Felipe Bragança
Textos
da semanas anteriores:
Notas,
notas, notas (por Francisco Guarnieri)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 2 (por Felipe Bragança)
Da
TV e dos corpos humanos, parte 1 (por Felipe Bragança)
Violência
da edição, edições da violência
(por Felipe Bragança)
Fauna
in concert: Tribos, Ayrton Senna, Monique Evans, João
Kléber (por Francisco Guarnieri)
Repórter
Cidadão: pouca cidadania, reportagem duvidosa
(por Francisco Guarnieri)
Semana
de carnaval (por Francisco Guarnieri)
A
dona da verdade (por Felipe Bragança)
Mormaço
(por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 Parte 2 (por Felipe Bragança)
Retrospectiva
2003 (por Felipe Bragança)
A
Grata futilidade de Gilberto Braga (por Felipe Bragança)
Aos
treze (por Roberto Cersósimo)
Algum
começo... (por Felipe Bragança)
Uma
novela de... (por Roberto Cersósimo)
O
canal das mulheres, a cidade dos homens (por Felipe
Bragança)
O
fetiche do pânico (por Roberto Cersósimo)
Televisão cidadã, cidadãos televisivos
(por Felipe Bragança)
|