O "cinema-olho".
Esta é a imagem de Dziga Vertov tal como ela
aparece na página nove dos Cahiers du Cinéma
de maio-junho de 1970. A sobrancelha esquerda um pouco
estirada, o nariz apertado a fim de não mascarar
a visão, as pupilas abertas a 3,5 ou 2,9, mas
o ponto focal no infinito, vertiginosamente colocado,
para além dos "soldados em assalto":
"Eu sou o cinema-olho, eu sou o olho mecânico,
eu sou a máquina que mostra o mundo como só
ela pode ver. Doravante serei libertado da imobilidade
humana. Eu estou em movimento perpétuo, aproximo-me
das coisas, afasto-me, deslizo por sobre elas, nelas
penetro; eu me coloco no focinho do cavalo de corrida,
atravesso as multidões a toda velocidade, coloco-me
à frente dos soldados em assalto, decolo com
os aeroplanos, viro-me de costas, caio e me levanto
ao mesmo tempo dos copos que caem e se levantam..."
Nesse manifesto dos Kinoks [cinema-olho] de 1923,
no qual o "mão na câmera" vale
como "mãos na pluma e mãos na charrua",
todo o cinema de amanhã (e não o de hoje,
uma vez que nós não sabemos ainda fazer
os filmes imaginados por Dziga Vertov) está já
inscrito e, bem no meio do arquivo dos Kino-Glaz
[câmera-olho] de 1924, aparece a segunda imagem
de Vertov, a do "cinema-relance" ou "cinema-piscar-d’olhos",
daquele que era ele mesmo o grupo dos Kinoks,
dos terroristas do cinema da revolução:
"No começo, de 1918 a 1922, os Kinoks
existiam no singular, ou seja, eles não eram
senão um só..."
Em outro momento, a imagem muda. Na fotomontagem comercial
de O Homem com a Câmera, ele desmente o
sorriso da boca. É a provocação
inquieta daquele que criara um filme que não
terminamos ainda de entender e que, razão mais
forte, não poderia fazer senão surpreender
os espectadores já faz quarenta e dois anos.
Em 1930, o "cinema-olho" foi enriquecido de
uma "rádio-orelha" e, diante da mesa
de montagem (ou do púlpito de gravação)
de Enthousiasme, o olhar atento de um pesquisador
de laboratório que está em vias de inventar
o cinema sonoro e, na primeira tentativa, de introduzir
o trovejar do som real das usinas de Donbass, em uma
época na qual, no Leste assim como no Oeste,
considerava-se que "os filmes sonoros deveriam
ser filmados não ao ar livre, na barulheira das
ruas, mas no interior de estúdios perfeitamente
isolados..."
Por isso, esse filme de luta e de pesquisa foi arrastado
na lama, "mutilado, lacerado, asfixiado, ferido
em combate". Sozinho, Charlie Chaplin compreendeu
seu alcance e escreveu em 1931 a Dziga Vertov: "Jamais
imaginei que os ruídos industriais pudessem ser
assim ordenados e se tornar tão belos. Considero
Enthousiasme uma perturbadora sinfonia..."
E é um realizador irritado, também "ferido
em combate", que, em 1933, empreende o projeto
de um filme-afresco, considerado hoje em dia pelos soviéticos
como sua principal obra, Três Cânticos
para Lênin, gigantesco trabalho em arquivos
visuais e sonoros, cine-poema épico sobre o chefe
da revolução. Ao editar em "intervalos"
os documentos de atualidades, ao jogar o tempo todo
com o contraponto entre imagem e som, o tempo todo misturando
legendas poéticas com imagens chocantes, Vertov
introduziu pela primeira vez no cinema "a entrevista
direta", os testemunhos cândidos de um misturador
de cimento e de um agricultor de colcós. Mas
esse filme veio muito tarde e muito cedo: à medida
que os personagens históricos desapareceram da
cena política, as tesouras da censura fizeram
desaparecer as seqüências correspondentes
e, hoje, não resta do filme mais do que uma versão
truncada.
A quarta imagem de Vertov é a de seu "cinema-sorrir"
de 1933, metade encoberto pela sombra da viseira de
um boné do homem da câmera (na qual ele
utiliza dois tripés) que vem, mas que se vai,
um pouco malicioso, sem nenhuma vergonha de ter permanecido
fiel até o fundo às experiências
futuristas de sua juventude.
Mas é de uma quinta imagem de Vertov que falarei
aqui: é aquela de George Sadoul. O historiador
do cinema sabia fortemente que não havia dado
o espaço suficiente a este pioneiro genial que
o cinema soviético oficial havia conseguido fazer
cair nas sombras como um simples "operador de atualidades".
E permanecerá como um dos méritos exemplares
de Sadoul ter sabido recolher e traduzir documentos
que, sem ele, teriam sido, talvez, definitivamente perdidos.
Quando Edgar Morin e eu decidimos fazer de Crônica
de um Verão uma experiência nova de
"cinema-verdade", nossa única intenção
era fazer uma homenagem a Dziga Vertov, sem entretanto
nos dar conta de que jogávamos com o fogo sempre
chocante de um cinema pronto a nos explodir nas mãos,
e foi necessária toda a amistosa sagacidade de
Georges Sadoul para nos ajudar a dividir os petardos
molhados daqueles verdadeiros coquetéis Molotov.
Que pesquisa apaixonante! Em 1961, Krasimera Rad, aluna
húngara do IDHEC, escreveu-nos uma monografia
sobre Vertov e traduziu em francês alguns manifestos
desconhecidos; em 1961, Georges e Routa Sadoul trouxeram
de Moscou manuscritos, publicados ou não, que
lhes haviam sido confiados pela viúva de Vertov.
No MIPE de Lyon, sob a orientação de Pierre
Schaeffer, com Leacock, Brault, Ruspoli, Pierre Lhomme,
de manhã, fabricávamos a câmera
de nossos sonhos e, à tarde, com Geroges Sadoul,
nós nos perguntávamos se kino-pravda
significava simplesmente "o suplemento filmado
do jornal Pravda" ou "cinema-verdade",
sigla mágica de sentido fabulosamente incerto...
Assim, ano após ano, esboça-se um "cine-retrato"
de Dziga Vertov. E, claro, esse retrato do "homem-moto-perpétuo"
não poderia ser senão mutante como determinados
tecidos ondulados clareados à luz de friso, não
poderia estar senão cortado em facetas no grande
vendaval dos anos 20, "com um ar"... menos
ao lado de Marinetti e dos fantasmas inquietantes do
futurismo que do da companhia de Guillaume Apollinaire
compondo, ao acaso, nos cafés, os "poemas-conversações"...
Que importa se o retrato é inacabado, que importa
se as imagens mais pertinentes estão extintas...
Que importa, depois de tudo, se os burocratas nunca
chegaram de fato a mutilar os filmes de Vertov: haverá
o suficiente de alguns bocados de imagens projetadas
na cinemateca, de folhetos malditos mas cuidadosamente
recolhidos, pelos quais Georges Sadoul nos transmite
a mensagem daquele que disse: "Nos pensávamos
ter o direito não somente de não fazer
filmes para o grande consumo mas também, de tempos
em tempos, os filmes que gerem filmes... Eles
são uma garantia necessária a futuras
vitórias...".
Jean Rouch
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