Dois cinemas na América Latina
A concentração financeira e a configuração
mercadológica da indústria cultural em
geral, e do cinema mundial em específico, talvez
nos ajudem a entender a necessidade de se agrupar alguns
filmes sob rótulos vinculados às suas
origens. É uma forma de se criar identidades
nacionais ou continentais em meio a um processo de estandartização
de estilos e de uma quebra de identificação
dos povos com suas produções menos contaminadas
pelos elementos externos - conceito esse bastante relativo
(ainda mais no caso do Brasil, país mediado por
referências externas), mas muito em voga nos anos
60, em textos de Glauber Rocha e Julio Garcia Espinosa,
por exemplo. Busca-se ainda um discurso destinado a
afirmar o pertencimento de um conjunto de criações
em uma determinada tradição e projeto,
histórico e/ou estético, para assim responder
e resistir a um estilhaçamento identitário
gerado pela influência dos traços culturais
exportados em escala mundial pelo país economicamente
hegemônico (os EUA). No entanto, nessa tentativa
de tornar homogêneo filmes distintos para enquadrá-los
como produtos de seu tempo e de suas sociedades, surgem
distorções - como quase sempre acontece
quando a obra de um indivíduo é deixada
de ser vista primeiramente em si, por suas singularidades
artísticas, para ser tratada por questões
mais políticas que propriamente estéticas,
como obra de um país ou de continentes.
Não se está querendo aqui retomar o ideal
romântico de um "eu artístico",
desconectado de seu contexto (ambiente social e tempo
histórico), mas repor os filmes no cinema para
discursos não ofuscarem evidências. Porque
certos agrupamentos ocasionalmente geram leituras centradas
demais na aproximação grosseiramente sociológica
com as imagens e pouco concentradas no específico
das articulações audio-visuais. O cinema
deixa de ser visto, nesses casos, sobretudo como linguagem
e, embora isso não deixe de ser interessante
em outro tipo de abordagem, passa a ser encarado como
sintoma. Tentemos relativizar essa idéia uniformizante
de cinema-origem. Abbas Kiarostami tem pouco a ver com
Majid Majid, Bruno Dumont não tem sintonia com
Cedric Klapisch, Tsai Ming-Liang nada dialoga com Zhang
Yimou, Walter Salles faz um cinema muito distinto de
Lucrécia Martel. Interessa-nos as transversais
contidas nessa última paralela, motivada pelas
estréias simultâneas de Diários
de Motocicleta, de Salles, e La Ciénega
(O Pântano), de Lucrécia Martel.
Sabemos do esforço político e intelectual
de Walter Salles, com a publicidade conseqüente
ou motivadora desse esforço, para aumentar a
visibilidade dos filmes da América Latina (brasileiros,
argentinos e mexicanos basicamente). O cineasta brasileiro
tornou-se, nos últimos anos, o porta-voz e diplomata
desse segmento - algo positivo na guerra por lugares
na vitrine audiovisual.
Essa postura ocasionou o lançamento no Brasil
do filme de Lucrécia Martel, La Ciénega,
comprado pela produtora de Salles para compensar o descaso
das distribuidoras. Tal conexão, na tela, desconecta-se.
Se para o diretor o termo chave da expressão
"cinema latino-americano" tende a ser "latino-americano",
para Lucrécia, na prática e em entrevistas,
essa palavra chave é "cinema" - pois sua construção
é de um universo autoral, não de um projeto
para além de sua arte pessoal, na qual evidentemente
está embutida sua identidade nacional, mas sempre
a partir de sua identidade artística. O cinema
no Brasil, Argentina e México, se tomado em sua
totalidade e não apenas pelos filmes exibidos
em festivais, é muito diversificado e difícil
de ser condensado, tendo em vista nosso limitado conhecimento
no Brasil (via Mostra de São Paulo e do Rio,
Cinesul, lançamentos no circuito e em DVD). Se
já é impossível termos uma visão
unificadora dessa abstração mítica
(a América Latina), cujos países só
podem ser agrupados pelo processo histórico-econômico
(mais ou menos em comum, de colonização
e exploração), não por suas características
culturais, mais rarefeito ainda seria falar em um cinema
latino-americano uno. Apaixonados tem nada a
ver com El Bonaerense (ambos argentinos). Japon
não fala a mesma língua de Sexo, Pudor
e Lágrimas (ambos mexicanos), e por aí
vai. Também não é o caso de se
considerar a transitoriedade estética da filmografia
de Walter Salles um sinal esquizofrênico de uma
ausência de marca nacional-continental bem delineada.
Não há menos brasilidade ou latinidade
em Terra Estrangeira e A Grande Arte do
que em Central do Brasil e Diários
de Motocicleta. Cada um deles são respostas
a um contexto de cinema e de mundo, mediados por preocupações
pessoais e projetos profissionais, uns buscando inserção
em tradições locais, outros projetando-se
para além delas, todos inevitavelmente brasileiros
e latino-americanos
A identidade latino-americana
Unidade estética continental? Isso pode ser sugerido
pelas sucessivas alusões à "Nueva
Onda", marketing tão válido quanto
frágil, ao menos em sua nomenclatura, pois reivindica
uma "onda", fenômeno efêmero,
e não projetos autorais duráveis. Essa
Onda é conectada? Pode ser aqui e ali, em um
título e outro, mas, se as características
desses filmes forem colocadas em plano mundial, é
possível novas conexões. Situações
limites, câmera na mão, cortes abruptos,
grão na imagem e personagens agonizantes, em
crise ou em estado de transgressão (geral), convenhamos,
não é exclusivo de latino-americanos -
embora, por sua aceitação crítica,
possa ser uma identidade cultural e de mercado buscada,
sobretudo por ser artisticamente legitimada no exterior.
Mas mesmo com essa legitimação é
difícil encontrar um cinema continental. Daí
o interesse por tomar dois filmes que, por serem dirigidos
por dois dos maiores expoentes dessa onda (Walter Salles
e Lucrécia Martel) são exemplares de como,
na prática de dois profissionais de um mesmo
continente, com projeção e poder de articulação
internacional, as opções podem ser tão
díspares - e não porque ele é brasileiro
e ela argentina, mas porque cada um pensa e faz o cinema
à sua maneira.
A começar pela relação com a própria
"latinoamericanidade" de cada um deles. Em La Ciénega,
esse é um dado da imagem, não do tema.
Em Diários de Motocicleta, essa é
a grande questão. O diretor segue o percurso
de sua dupla de personagens para, por meio da descoberta
por parte deles de um continente que só conheciam
pelos livros, fazer um sintético inventário
das mazelas contidas entre a Argentina e o Peru, assim
como para propor uma intervenção solidária.
Nos momentos finais, Ernesto Guevara, já consciente
de sua condição latino-americana, imanado
com outros povos (com os pobres e com os missionários
de outros povos), fala de uma única raça
mestiça para a qual não deveriam haver
fronteiras. Pode-se ver o filme, em uma de suas chaves,
como um movimento rumo a essa identificação
e pertencimento, como a construção, em
última instância, de identidade coletiva
- um neo-bolivarismo, atualizado para o novo fluxo de
dinheiro e de cultura. E um dos mais fortes componentes
dessa identidade, não apenas "continental"
como cinematográfica, é a resistência
e a persistência diante das adversidades. Ernesto
é asmático, mas faz esportes; a moto quebra
e eles continuam; o dinheiro acaba e eles prosseguem.
Não há como comer e onde dormir, mas eles
inventam soluções de improviso. Estaríamos,
por meio da significação desse trajeto
da dupla, em diálogo com a estética da
fome glauberiana - não por conta seu teor estético-agressivo,
mas por sua retórica de superação
da falta de condições materiais com criatividade
e convicção. Diários de Motocicleta
reafirma a América Latina, e o cinema latino-americano,
nesse escaninho da reação contra os limites
da ação.
Qualquer busca da identidade é gerada exatamente
pela dificuldade de se ver como parte de algo. É
o caso de Ernesto e, sendo ele o porta-voz da narrativa
(mais que narrador), supõe-se que o filme adere
à busca. Vemos a tentativa de se entrar para
o time, mas para ser o capitão dele, pois há
mais a dar que a receber. Isso reverbera no filme. Guevara
e o filme olham o povo e o cenário que encontram
sempre com proximidade distante, com um olhar de fora,
de observador, da racionalização da experiência
(ou da experiência vivida para ser racionalizada),
como expressam as recorrentes cenas nas quais escreve
em um caderno. Olhar etnográfico (na definição
de Lenoi Gourham, "descrição de sociedades
distantes de seus autores") e onisciente em sua
voz subjetiva, de quem vê e entende. Esse distanciamento
não é brechtiano, no sentido de nos colocar
em frente à cena com uma câmera longe das
ações, mas o de um observador que, apesar
de interagir com o "outro", está sempre
interagindo como observador, não como interlocutor.
Teologia da derrota e o voluntarismo
Há uma certa teologia distópica na caridade
missionária do futuro Che. Por sabermos qual
é o seu futuro como revolucionário ele
é visto como a semente de um messianismo, estagiário
de salvador dos oprimidos, mas, como também sabemos
da interrupção de seu projeto, ou pelo
menos do desgaste dele, não há como apagar
o traço de fracasso desse programa guevarista.
É algo visualizado no olhar pesado de Granado
vendo a partida de Ernesto (partida do passado para
o futuro e do futuro que virou passado, imagem de utopia
em projeto arquivado em nossos dias). Também
se faz notar na cena em que, empregando a voz do herói
em off, o filme assina embaixo de seu lamento, movido
pelo rumo do Peru, dos incas aos espanhóis, de
Machu Pichu a Lima, em postura saudosista e impotente,
sem a reatividade necessária ao devir histórico.
O elogio do futuro utópico, portanto, carrega
consigo a distopia. Ernesto entra com voz over, supomos
pela articulação da narrativa, quando
a jornada encerrou. Narra de um futuro em relação
àquela viagem, finalizada com uma frase de alcance
atemporal ("Quanta injustiça"), pois
se refere a aquele tempo e também ecoa pelo nosso
tempo (diálogo do filme com o mundo hoje). Já
para a instância narradora do filme, instância
muda, esse futuro já se tornou passado (como
é evidenciado no letreiro final, quando informa-se
sobre o destino de Guevara, inclusive a data de sua
morte).
O filme existe por conta do quem se tornou Guevara,
não pela viagem. A instância narradora
sabe o fim da história desde o começo
e, assim, inscreve-se na definição de
Píer Paolo Pasolini, a do narrador-morto que
extrai sentido do passado pois narra recapitulando e
tirando lições das situações.
Resulta desse olhar consciente do caminho histórico
uma oscilação entre ingenuidade e demagogia
com seu momento. Paradoxalmente, porém, se tomarmos
apenas a construção do herói na
tela, há sintonia histórica, pensada ou
intuída, entre filme e mundo atual. Um filme
sobre o Che dos anos 60, revolucionário, adepto
das armas em favor da liberdade, estaria fora de pauta
das questões emergenciais - luta armada, hoje,
é fora de moda. Politicamente incorreto e moralmente
condenável. Mas o jovem Che, com seu ímpeto
de voluntarismo social, de missionário disposto
a ser útil para atenuar a dor do terceiro mundo,
de herói burguês entediado com sua vidinha
programada e previsível, em busca de aventura
e de imprevistos, é tema contemporâneo:
Ernesto é o herói da era das ONGs. Não
vive rupturas ou enfrentamentos, mas uma ação
paliativa, cuja função é, pela
sua frase a uma jovem no leprosário, sobretudo
de conforto de sua consciência (sentir-se útil).
A aproximação com os sofridos e com os
pobres, segundo suas palavras, serve para torná-lo
mais humano ("mais próximo da natureza humana").
O clímax dessa abertura de olho para se fazer
contato com o "outro" é a metafórica
travessia do rio. Confirma-se ali a transformação,
iniciada no atendimento a uma doente no Chile, desenvolvida
no aperto de mão ao senhor com hanseníase.
Ernesto é PhD em fazer a coisa certa: corre para
salvar o cão depois de quase quebrar o pescoço
em uma queda de moto, não gasta os dólares
dados pela namorada para satisfazer um capricho até
encontrar quem necessite deles, é franco com
um senhor doente, também com um médico
sem vocação para sua ambição
literária. As boas ações do herói
têm como consequência a sedução
do espectador para essa mesma sensação:
sentir-se bem por estar do lado da causa certa, por
se comover com a pobreza e com a injustiça, com
a impotência de gente tão explorada (comoção
essa cultivada por meio de música sensível,
de palavras bonitas das cartas para a mãe, de
fotos em preto-branco - inspiradas nos registros do
peruano Martin Chambe, mas com ecos de Sebastião
Salgado - a cor por convenção da miséria
cult).
Temos nesse procedimento uma pedagogia dos sentimentos
corretos, uma reciclagem açucarada do projeto
do CPC, uma modernização ficcionalizada
das posturas documentais de John Grierson e uma variação
bem aparada do programa de Fernando Birri ("o cinema
não serve para inventar a realidade, mas para
reinventá-la, para interpretá-la e transformá-la"),
com a provocação do sentimento no lugar
da conscientização e do confronto político.
Nos anos 60 e 70, como escreveu Antonio Candido em Literatura
e Subdesenvolvimento, a constatação
do subdesenvolvimento, na literatura e no cinema, era
combustível transformador. Agora, assim como
em Diários de Motocicleta, também
há ação, mas atenuante. A escolha
do material a ser convertido em discurso cinematográfico
é apropriada e sem dúvida sintomática.
Somos convidados menos a nos sentir latinos com necessidade
de virar a mesa e mais a termos pena da condição
dos latinos e assim fazermos algo para diminuir o sofrimento
e nos sentirmos moralmente saudáveis por estender
a mão.
Identidade do cinema
A latinidade é uma questão superada, ou
nem é uma questão, no filme de Lucrécia
Martel. A identidade latino-americana está em
suas imagens sem precisar ser tematizada, como está
na imagem de qualquer filme da América Latina,
inclusive naqueles rompidos com a herança dos
cânones da região (Glauber Rocha, Nelson
Pereira dos Santos, Tomas Gutierrez Alea, Fernando Birri,
Jorge Sanjinés, Garcia Epinosa, Fernando Solanas).
Lucrécia não reverencia esses referenciais
mas está em sintonia com eles, pois parte de
algo já dado, de sua inserção no
mundo das imagens como produto histórico-cultural,
no entanto dispõe-se acima de tudo em propor
um olhar e um estilo singular na relação
com essa produção de sua obra pela conjuntura
da qual faz parte. "Descontinuidade é talvez
a marca principal da atividade cinematográfica
da América Latina", escreve José
Carlos Avellar em "A Ponte Clandestina", onde vê
a fragmentação como fruto do enfrentamento
inconcluso da realidade, do conflito entre razão
e sentimento, do duelo entre um discurso organizado
e outro mais próximo de uma fala automática,
ainda sem sistematização. Walter Salles
está mais vinculado a esse primeiro discurso,
organizado, enquanto Lucrécia Martel herda essa
segunda característica, automática, que
se fragmenta no enfrentamento da realidade. Nessa organização
quase didática, esquemática, Salles tromba
com Ken Loach (em seus filmes de maior carga emocional,
sempre já sabendo o que vai encontrar ao fim
do processo); Lucrécia encontra com Abbas Kiarostami
(o cineasta por excelência do processo e da busca).
A cineasta argentina e cidadã do cinema herda,
com ou sem consciência, a herança glauberiana,
enquanto conceito pelo menos (em texto de 1958, publicado
em A Revolução do Cinema), de fundir
dois pólos dicotômicos até os anos
60, o cinema de montagem e manipulação
de Serguei Eisenstein e o cinema de contato direto com
a vida de Césare Zavattini, combinação
essa praticada então por Luis Buñuel,
conforme Glauber.
Seu mundo, porém, é micro (e enorme em
abrangência). Ela está mais interessada
nos climas íntimos e dicotômicos de relações
familiares específicas, cheias de pulsão
de vida e de sinais de decripitude - que pode até
ser vista como reflexo de classe (a média) e
da situação de um país (a Argentina),
mas não propõe essa relação
direta pela qual sua linguagem naturalista pediria uma
leitura alegórica. Seu filme concentra-se em
uma casa, e ela se faz notar, por extensão, mesmo
nas cenas exteriores. Um mundo cabe entre quatro paredes
e isso o vacina contra generalizações,
ao contrário das visões panorâmicas
por superfícies sociais. La Ciénega/O
Pântano, ao contrário de Diários
de Motocicleta, não busca diagnósticos,
menos ainda soluções. Os sentidos propostos
são rarefeitos e nebulosos, pantonosos até,
e concentram-se apenas nas próprias situações,
na matéria (corpos, paisagens), "em uma
verdade só possível de ser encontrada
nas coisas" (segundo o poeta conceitual William
Carlos Williams). Sem, porém, partir delas para
se chegar a algo para além delas; vendo-as tanto
como parte do contexto como renovadas por associações
elípticas com ele, de acordo com as arbitrárias
exigências da subjetividade, não pelo suposto
"objetivismo" da sociológica relação
de causa e efeito. A significação está
na própria imagem e não na leitura da
imagem, significações variadas dentro
da polifonia de vozes e situações, na
qual cada um tem sua verdade e sua razão, sem
se extrair disso uma conclusão sintética.
É uma de suas maiores diferenças, em termos
estéticos, do projeto pedagógico de Diários.
Em La Ciénega, a imagem é; em Diários,
a imagem diz. Mas diz com as palavras, com a voz do
narrador, mesmo quando já havia "sido".
Dois momentos são exemplares. 1) A cena na qual
o herói atende uma mulher doente e expressa no
silêncio a impotência dele e dela. Grande
momento de Gael Garcia Bernal e de Walter Salles. Mas
logo entra uma narração explicativa e
mata esse momento de cinema. 2) A sequência em
que, perguntado por um casal de retirantes andinos se
viaja com o amigo em busca de trabalho, Ernesto diz
que não: viaja por viajar. Segue-se uma expressão
constrangida diante da situação - cena
resolvida. Mas logo segue uma explicação
em off. O contraponto é o momento em que, após
receber uma carta, Ernesto reage agressivamente. Nenhuma
palavra. Sabemos do que se trata. Há cineasta
nessa passagem.
Também ao contrário de Diários,
que olha seu herói no mundo (a América
Latina), La Ciénega olha olhares dos personagens
para o mundo (uns para os outros). Isso coloca a câmera
como parte de seu ambiente, não como observador
descritivo e conclusivo dele. A câmera tem estatuto
de personagem e, em função da polifonia,
corta de um olhar para outro, a acompanhar o balé
das visões. Temos uma intimidade sem distanciamento
e, por conta dessa excessiva proximidade da câmera
com os corpos (também próximos entre si,
sempre roçando uns nos outros), não há
como vê-los com legendas explicativas. Nem tudo,
porém, é diferença. Diários
de Motocicleta fala a mesma língua de La
Ciénega, parcialmente pelo menos, ao detectar
a alegria em um meio degradante (e degradado). Isso
é mais visível em trechos no leprosário
(no jogo de futebol e no batuque com os doentes). Na
despedida de Ernesto, contudo, a alegria dá lugar
à impotência (presente no olhar do herói
e não no dos pacientes).
Imagem-tempo, imagem-espaço, imagem-ação
Pier Pasolini escreveu que uma narrativa, na assepção
clássica do termo, começa quando o narrador
está morto, quando os fatos já estão
distantes e têm um sentido de conjunto, quando
a vida não atrapalha a compreensão. Walter
Salles faz essa operação com seu material.
Cada ação será colocada dentro
de um chave de entendimento mais ampla, que serve para
mais tarde dar significação ao específico,
sempre a partir de uma significação geral
na qual o filme irá desembocar. O cinema de prosa,
segundo Pasolini, e o cinema clássico, de forma
geral, perseguem essa organização. Gilles
Deleuze analisa essa compartimentação
do tempo e do espaço na disposição
de eventos em Imagem-Ação. Em Imagem-Tempo,
debruça-se sobre o cinema moderno, no qual,
acima de tudo, o tempo torna-se forma, quando não
tema. Diários de Motocicleta inscreve-se
em Imagem-Ação. Em trechos da viagem,
poucos minutos dão conta de muitos quilômetros
percorridos, pois havia poucos acontecimentos a mostrar.
Em outros trechos, poucos quilômetros são
mostrados em muitos minutos, em geral nas paradas, pois
são ricos em eventos. Como em Caminho das
Nuvens, de Vicente Amorim, o deslocamento é
secundário. Não importa o tempo empregado
nas ações, mas a capacidade dessas ações
de revelar os personagens, assim como as motivações
de suas transformações. Não importa
o processo, mas a lição aprendida com
ele, ou seja, o resultado alcançado. Viaja-se
já sabendo o percurso e o destino final.
É outro o percurso em La Ciénega.
Assim começa: imagens de pimenta, som de grilo,
trilha extra-diegética agenciadora de tensão
e sensação de risco, uma menina que chora,
som de trovão, um quadro com a imagem da neve
em um quarto, corpos suados na piscina e deitados na
cama, corpos que se arrastam, que caem, que se machucam,
que agem como zumbis. Somos situados em poucos planos
no espaço e colocados entre os seres: vemos crise,
degradação. Veremos adiante corpos que
se tocam, que desejam, que se lançam à
aventuras, que produzem ações, mas sem
ter a consciência dos sentidos dessas ações.
Nos primeiros momentos, o absurdo se instala, logo se
naturaliza. Uma mulher cai bêbada, corta-se, sangra,
mas seu marido a ignora: enche o copo e sai de cena.
Reaparece secando o cabelo no banheiro enquanto a esposa
é encaminhada a um pronto-socorro. Vemos o início
de uma construção de seres e de um ambiente
decrépito ("aquela casa é um desastre",
diz alguém), com ocasionais quedas de luzes e
de corpos, com a revelação de preconceitos
étnicos, com acidentes que deixam cicatrizes
(sinal de sobrevivência e resistência aos
percalços), com sangramentos freqüentes
(outro sinal de vida, e também de fluxo rumo
à morte, ambivalência que rege o filme)
- no entanto a contrapartida será exibida na
seqüência, com cenas de harmonia e momentos
de felicidade, com a relação cheia de
imaginação de crianças com o mundo
(imaginação fatal em um caso), com situações
pelas quais vemos uma família problemática,
sim, mas o tempo todo integrada em sua rede de afetos
e desejos dissimulados. Uma adolescente lança
olhares libidinosos para o irmão, o irmão
vive estendido de cueca na cama da mãe, irmãos
e irmãs dançam e cantam no quarto da mãe,
uma outra adolescente assume sua paixão, embora
com conotações de posse social, por uma
criada de feições indígenas. Vemos
vitalidade e degradação, vemos prazer
e dor. Lucrécia filma em espaços apertados,
às vezes cola a câmera nos corpos, deseja-os,
corpos colam em outros corpos. Sua câmera integra-se
nesses micro-espaços, mesmo com os cortes abruptos
de um plano para outro. Suas cenas têm a incumbência
de, em poucos gestos e segundos, insinuar um estado
de coisas, sem criar legendas para elas.
Tomemos a cena do rapaz mestiço incumbido de
experimentar a camisa pelas patroas da namorada. Toda
uma relação de poder está resolvida
nessas imagens. Mas nada é preto no branco. Essas
patroazinhas também terão seu momento
de integração com os mestiços quando
vão brincar em um dique. Recusa-se não
apenas a constatação reducionista de certas
passagens como também a funcionalidade da encenação
e do encadeamento dos planos, de modo a permitir que
o mistério sobreviva às significações
(e elas estão lá, só não
berram, como em Diários). Sempre fica
algo não dito e não mostrado; toca-se
na vida sem explicá-la. Esbarra-se no sublime,
o da arte (aquele impossível de encontrar tradução
em palavras), sem persegui-lo (como nos clichês
do cinema empenhado em ser cinema de arte). Ao final,
uma das adolescentes, de volta de sua tentativa de ver
a Virgem (sinal de esperança e de explicação
para o mundo), diz que não viu nada. Não
há como ver, apenas como viver. Não há
como lançar-se para o futuro (como na teologia
cristã). É preciso resistir no presente
sem falsas esperanças, mas com a potência
de quem está vivo. Isso não é latino-americano.
É pessoal, filosófico, político.
Cléber Eduardo
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