PARALELAS E TRANSVERSAIS
Diários de Motocicleta, de Walter Salles
O Pântano, de Lucrecia Martel

Motorcycle diaries, EUA/Inglaterra/Alemanha/Argentina, 2004
La ciénega, Argentina, 2003


Dois cinemas na América Latina

A concentração financeira e a configuração mercadológica da indústria cultural em geral, e do cinema mundial em específico, talvez nos ajudem a entender a necessidade de se agrupar alguns filmes sob rótulos vinculados às suas origens. É uma forma de se criar identidades nacionais ou continentais em meio a um processo de estandartização de estilos e de uma quebra de identificação dos povos com suas produções menos contaminadas pelos elementos externos - conceito esse bastante relativo (ainda mais no caso do Brasil, país mediado por referências externas), mas muito em voga nos anos 60, em textos de Glauber Rocha e Julio Garcia Espinosa, por exemplo. Busca-se ainda um discurso destinado a afirmar o pertencimento de um conjunto de criações em uma determinada tradição e projeto, histórico e/ou estético, para assim responder e resistir a um estilhaçamento identitário gerado pela influência dos traços culturais exportados em escala mundial pelo país economicamente hegemônico (os EUA). No entanto, nessa tentativa de tornar homogêneo filmes distintos para enquadrá-los como produtos de seu tempo e de suas sociedades, surgem distorções - como quase sempre acontece quando a obra de um indivíduo é deixada de ser vista primeiramente em si, por suas singularidades artísticas, para ser tratada por questões mais políticas que propriamente estéticas, como obra de um país ou de continentes.

Não se está querendo aqui retomar o ideal romântico de um "eu artístico", desconectado de seu contexto (ambiente social e tempo histórico), mas repor os filmes no cinema para discursos não ofuscarem evidências. Porque certos agrupamentos ocasionalmente geram leituras centradas demais na aproximação grosseiramente sociológica com as imagens e pouco concentradas no específico das articulações audio-visuais. O cinema deixa de ser visto, nesses casos, sobretudo como linguagem e, embora isso não deixe de ser interessante em outro tipo de abordagem, passa a ser encarado como sintoma. Tentemos relativizar essa idéia uniformizante de cinema-origem. Abbas Kiarostami tem pouco a ver com Majid Majid, Bruno Dumont não tem sintonia com Cedric Klapisch, Tsai Ming-Liang nada dialoga com Zhang Yimou, Walter Salles faz um cinema muito distinto de Lucrécia Martel. Interessa-nos as transversais contidas nessa última paralela, motivada pelas estréias simultâneas de Diários de Motocicleta, de Salles, e La Ciénega (O Pântano), de Lucrécia Martel. Sabemos do esforço político e intelectual de Walter Salles, com a publicidade conseqüente ou motivadora desse esforço, para aumentar a visibilidade dos filmes da América Latina (brasileiros, argentinos e mexicanos basicamente). O cineasta brasileiro tornou-se, nos últimos anos, o porta-voz e diplomata desse segmento - algo positivo na guerra por lugares na vitrine audiovisual.

Essa postura ocasionou o lançamento no Brasil do filme de Lucrécia Martel, La Ciénega, comprado pela produtora de Salles para compensar o descaso das distribuidoras. Tal conexão, na tela, desconecta-se. Se para o diretor o termo chave da expressão "cinema latino-americano" tende a ser "latino-americano", para Lucrécia, na prática e em entrevistas, essa palavra chave é "cinema" - pois sua construção é de um universo autoral, não de um projeto para além de sua arte pessoal, na qual evidentemente está embutida sua identidade nacional, mas sempre a partir de sua identidade artística. O cinema no Brasil, Argentina e México, se tomado em sua totalidade e não apenas pelos filmes exibidos em festivais, é muito diversificado e difícil de ser condensado, tendo em vista nosso limitado conhecimento no Brasil (via Mostra de São Paulo e do Rio, Cinesul, lançamentos no circuito e em DVD). Se já é impossível termos uma visão unificadora dessa abstração mítica (a América Latina), cujos países só podem ser agrupados pelo processo histórico-econômico (mais ou menos em comum, de colonização e exploração), não por suas características culturais, mais rarefeito ainda seria falar em um cinema latino-americano uno. Apaixonados tem nada a ver com El Bonaerense (ambos argentinos). Japon não fala a mesma língua de Sexo, Pudor e Lágrimas (ambos mexicanos), e por aí vai. Também não é o caso de se considerar a transitoriedade estética da filmografia de Walter Salles um sinal esquizofrênico de uma ausência de marca nacional-continental bem delineada. Não há menos brasilidade ou latinidade em Terra Estrangeira e A Grande Arte do que em Central do Brasil e Diários de Motocicleta. Cada um deles são respostas a um contexto de cinema e de mundo, mediados por preocupações pessoais e projetos profissionais, uns buscando inserção em tradições locais, outros projetando-se para além delas, todos inevitavelmente brasileiros e latino-americanos

A identidade latino-americana


Unidade estética continental? Isso pode ser sugerido pelas sucessivas alusões à "Nueva Onda", marketing tão válido quanto frágil, ao menos em sua nomenclatura, pois reivindica uma "onda", fenômeno efêmero, e não projetos autorais duráveis. Essa Onda é conectada? Pode ser aqui e ali, em um título e outro, mas, se as características desses filmes forem colocadas em plano mundial, é possível novas conexões. Situações limites, câmera na mão, cortes abruptos, grão na imagem e personagens agonizantes, em crise ou em estado de transgressão (geral), convenhamos, não é exclusivo de latino-americanos - embora, por sua aceitação crítica, possa ser uma identidade cultural e de mercado buscada, sobretudo por ser artisticamente legitimada no exterior. Mas mesmo com essa legitimação é difícil encontrar um cinema continental. Daí o interesse por tomar dois filmes que, por serem dirigidos por dois dos maiores expoentes dessa onda (Walter Salles e Lucrécia Martel) são exemplares de como, na prática de dois profissionais de um mesmo continente, com projeção e poder de articulação internacional, as opções podem ser tão díspares - e não porque ele é brasileiro e ela argentina, mas porque cada um pensa e faz o cinema à sua maneira.

A começar pela relação com a própria "latinoamericanidade" de cada um deles. Em La Ciénega, esse é um dado da imagem, não do tema. Em Diários de Motocicleta, essa é a grande questão. O diretor segue o percurso de sua dupla de personagens para, por meio da descoberta por parte deles de um continente que só conheciam pelos livros, fazer um sintético inventário das mazelas contidas entre a Argentina e o Peru, assim como para propor uma intervenção solidária. Nos momentos finais, Ernesto Guevara, já consciente de sua condição latino-americana, imanado com outros povos (com os pobres e com os missionários de outros povos), fala de uma única raça mestiça para a qual não deveriam haver fronteiras. Pode-se ver o filme, em uma de suas chaves, como um movimento rumo a essa identificação e pertencimento, como a construção, em última instância, de identidade coletiva - um neo-bolivarismo, atualizado para o novo fluxo de dinheiro e de cultura. E um dos mais fortes componentes dessa identidade, não apenas "continental" como cinematográfica, é a resistência e a persistência diante das adversidades. Ernesto é asmático, mas faz esportes; a moto quebra e eles continuam; o dinheiro acaba e eles prosseguem. Não há como comer e onde dormir, mas eles inventam soluções de improviso. Estaríamos, por meio da significação desse trajeto da dupla, em diálogo com a estética da fome glauberiana - não por conta seu teor estético-agressivo, mas por sua retórica de superação da falta de condições materiais com criatividade e convicção. Diários de Motocicleta reafirma a América Latina, e o cinema latino-americano, nesse escaninho da reação contra os limites da ação.

Qualquer busca da identidade é gerada exatamente pela dificuldade de se ver como parte de algo. É o caso de Ernesto e, sendo ele o porta-voz da narrativa (mais que narrador), supõe-se que o filme adere à busca. Vemos a tentativa de se entrar para o time, mas para ser o capitão dele, pois há mais a dar que a receber. Isso reverbera no filme. Guevara e o filme olham o povo e o cenário que encontram sempre com proximidade distante, com um olhar de fora, de observador, da racionalização da experiência (ou da experiência vivida para ser racionalizada), como expressam as recorrentes cenas nas quais escreve em um caderno. Olhar etnográfico (na definição de Lenoi Gourham, "descrição de sociedades distantes de seus autores") e onisciente em sua voz subjetiva, de quem vê e entende. Esse distanciamento não é brechtiano, no sentido de nos colocar em frente à cena com uma câmera longe das ações, mas o de um observador que, apesar de interagir com o "outro", está sempre interagindo como observador, não como interlocutor.

Teologia da derrota e o voluntarismo

Há uma certa teologia distópica na caridade missionária do futuro Che. Por sabermos qual é o seu futuro como revolucionário ele é visto como a semente de um messianismo, estagiário de salvador dos oprimidos, mas, como também sabemos da interrupção de seu projeto, ou pelo menos do desgaste dele, não há como apagar o traço de fracasso desse programa guevarista. É algo visualizado no olhar pesado de Granado vendo a partida de Ernesto (partida do passado para o futuro e do futuro que virou passado, imagem de utopia em projeto arquivado em nossos dias). Também se faz notar na cena em que, empregando a voz do herói em off, o filme assina embaixo de seu lamento, movido pelo rumo do Peru, dos incas aos espanhóis, de Machu Pichu a Lima, em postura saudosista e impotente, sem a reatividade necessária ao devir histórico. O elogio do futuro utópico, portanto, carrega consigo a distopia. Ernesto entra com voz over, supomos pela articulação da narrativa, quando a jornada encerrou. Narra de um futuro em relação àquela viagem, finalizada com uma frase de alcance atemporal ("Quanta injustiça"), pois se refere a aquele tempo e também ecoa pelo nosso tempo (diálogo do filme com o mundo hoje). Já para a instância narradora do filme, instância muda, esse futuro já se tornou passado (como é evidenciado no letreiro final, quando informa-se sobre o destino de Guevara, inclusive a data de sua morte).

O filme existe por conta do quem se tornou Guevara, não pela viagem. A instância narradora sabe o fim da história desde o começo e, assim, inscreve-se na definição de Píer Paolo Pasolini, a do narrador-morto que extrai sentido do passado pois narra recapitulando e tirando lições das situações. Resulta desse olhar consciente do caminho histórico uma oscilação entre ingenuidade e demagogia com seu momento. Paradoxalmente, porém, se tomarmos apenas a construção do herói na tela, há sintonia histórica, pensada ou intuída, entre filme e mundo atual. Um filme sobre o Che dos anos 60, revolucionário, adepto das armas em favor da liberdade, estaria fora de pauta das questões emergenciais - luta armada, hoje, é fora de moda. Politicamente incorreto e moralmente condenável. Mas o jovem Che, com seu ímpeto de voluntarismo social, de missionário disposto a ser útil para atenuar a dor do terceiro mundo, de herói burguês entediado com sua vidinha programada e previsível, em busca de aventura e de imprevistos, é tema contemporâneo: Ernesto é o herói da era das ONGs. Não vive rupturas ou enfrentamentos, mas uma ação paliativa, cuja função é, pela sua frase a uma jovem no leprosário, sobretudo de conforto de sua consciência (sentir-se útil). A aproximação com os sofridos e com os pobres, segundo suas palavras, serve para torná-lo mais humano ("mais próximo da natureza humana").

O clímax dessa abertura de olho para se fazer contato com o "outro" é a metafórica travessia do rio. Confirma-se ali a transformação, iniciada no atendimento a uma doente no Chile, desenvolvida no aperto de mão ao senhor com hanseníase. Ernesto é PhD em fazer a coisa certa: corre para salvar o cão depois de quase quebrar o pescoço em uma queda de moto, não gasta os dólares dados pela namorada para satisfazer um capricho até encontrar quem necessite deles, é franco com um senhor doente, também com um médico sem vocação para sua ambição literária. As boas ações do herói têm como consequência a sedução do espectador para essa mesma sensação: sentir-se bem por estar do lado da causa certa, por se comover com a pobreza e com a injustiça, com a impotência de gente tão explorada (comoção essa cultivada por meio de música sensível, de palavras bonitas das cartas para a mãe, de fotos em preto-branco - inspiradas nos registros do peruano Martin Chambe, mas com ecos de Sebastião Salgado - a cor por convenção da miséria cult).

Temos nesse procedimento uma pedagogia dos sentimentos corretos, uma reciclagem açucarada do projeto do CPC, uma modernização ficcionalizada das posturas documentais de John Grierson e uma variação bem aparada do programa de Fernando Birri ("o cinema não serve para inventar a realidade, mas para reinventá-la, para interpretá-la e transformá-la"), com a provocação do sentimento no lugar da conscientização e do confronto político. Nos anos 60 e 70, como escreveu Antonio Candido em Literatura e Subdesenvolvimento, a constatação do subdesenvolvimento, na literatura e no cinema, era combustível transformador. Agora, assim como em Diários de Motocicleta, também há ação, mas atenuante. A escolha do material a ser convertido em discurso cinematográfico é apropriada e sem dúvida sintomática. Somos convidados menos a nos sentir latinos com necessidade de virar a mesa e mais a termos pena da condição dos latinos e assim fazermos algo para diminuir o sofrimento e nos sentirmos moralmente saudáveis por estender a mão.

Identidade do cinema

A latinidade é uma questão superada, ou nem é uma questão, no filme de Lucrécia Martel. A identidade latino-americana está em suas imagens sem precisar ser tematizada, como está na imagem de qualquer filme da América Latina, inclusive naqueles rompidos com a herança dos cânones da região (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Tomas Gutierrez Alea, Fernando Birri, Jorge Sanjinés, Garcia Epinosa, Fernando Solanas). Lucrécia não reverencia esses referenciais mas está em sintonia com eles, pois parte de algo já dado, de sua inserção no mundo das imagens como produto histórico-cultural, no entanto dispõe-se acima de tudo em propor um olhar e um estilo singular na relação com essa produção de sua obra pela conjuntura da qual faz parte. "Descontinuidade é talvez a marca principal da atividade cinematográfica da América Latina", escreve José Carlos Avellar em "A Ponte Clandestina", onde vê a fragmentação como fruto do enfrentamento inconcluso da realidade, do conflito entre razão e sentimento, do duelo entre um discurso organizado e outro mais próximo de uma fala automática, ainda sem sistematização. Walter Salles está mais vinculado a esse primeiro discurso, organizado, enquanto Lucrécia Martel herda essa segunda característica, automática, que se fragmenta no enfrentamento da realidade. Nessa organização quase didática, esquemática, Salles tromba com Ken Loach (em seus filmes de maior carga emocional, sempre já sabendo o que vai encontrar ao fim do processo); Lucrécia encontra com Abbas Kiarostami (o cineasta por excelência do processo e da busca). A cineasta argentina e cidadã do cinema herda, com ou sem consciência, a herança glauberiana, enquanto conceito pelo menos (em texto de 1958, publicado em A Revolução do Cinema), de fundir dois pólos dicotômicos até os anos 60, o cinema de montagem e manipulação de Serguei Eisenstein e o cinema de contato direto com a vida de Césare Zavattini, combinação essa praticada então por Luis Buñuel, conforme Glauber.

Seu mundo, porém, é micro (e enorme em abrangência). Ela está mais interessada nos climas íntimos e dicotômicos de relações familiares específicas, cheias de pulsão de vida e de sinais de decripitude - que pode até ser vista como reflexo de classe (a média) e da situação de um país (a Argentina), mas não propõe essa relação direta pela qual sua linguagem naturalista pediria uma leitura alegórica. Seu filme concentra-se em uma casa, e ela se faz notar, por extensão, mesmo nas cenas exteriores. Um mundo cabe entre quatro paredes e isso o vacina contra generalizações, ao contrário das visões panorâmicas por superfícies sociais. La Ciénega/O Pântano, ao contrário de Diários de Motocicleta, não busca diagnósticos, menos ainda soluções. Os sentidos propostos são rarefeitos e nebulosos, pantonosos até, e concentram-se apenas nas próprias situações, na matéria (corpos, paisagens), "em uma verdade só possível de ser encontrada nas coisas" (segundo o poeta conceitual William Carlos Williams). Sem, porém, partir delas para se chegar a algo para além delas; vendo-as tanto como parte do contexto como renovadas por associações elípticas com ele, de acordo com as arbitrárias exigências da subjetividade, não pelo suposto "objetivismo" da sociológica relação de causa e efeito. A significação está na própria imagem e não na leitura da imagem, significações variadas dentro da polifonia de vozes e situações, na qual cada um tem sua verdade e sua razão, sem se extrair disso uma conclusão sintética.

É uma de suas maiores diferenças, em termos estéticos, do projeto pedagógico de Diários. Em La Ciénega, a imagem é; em Diários, a imagem diz. Mas diz com as palavras, com a voz do narrador, mesmo quando já havia "sido". Dois momentos são exemplares. 1) A cena na qual o herói atende uma mulher doente e expressa no silêncio a impotência dele e dela. Grande momento de Gael Garcia Bernal e de Walter Salles. Mas logo entra uma narração explicativa e mata esse momento de cinema. 2) A sequência em que, perguntado por um casal de retirantes andinos se viaja com o amigo em busca de trabalho, Ernesto diz que não: viaja por viajar. Segue-se uma expressão constrangida diante da situação - cena resolvida. Mas logo segue uma explicação em off. O contraponto é o momento em que, após receber uma carta, Ernesto reage agressivamente. Nenhuma palavra. Sabemos do que se trata. Há cineasta nessa passagem.

Também ao contrário de Diários, que olha seu herói no mundo (a América Latina), La Ciénega olha olhares dos personagens para o mundo (uns para os outros). Isso coloca a câmera como parte de seu ambiente, não como observador descritivo e conclusivo dele. A câmera tem estatuto de personagem e, em função da polifonia, corta de um olhar para outro, a acompanhar o balé das visões. Temos uma intimidade sem distanciamento e, por conta dessa excessiva proximidade da câmera com os corpos (também próximos entre si, sempre roçando uns nos outros), não há como vê-los com legendas explicativas. Nem tudo, porém, é diferença. Diários de Motocicleta fala a mesma língua de La Ciénega, parcialmente pelo menos, ao detectar a alegria em um meio degradante (e degradado). Isso é mais visível em trechos no leprosário (no jogo de futebol e no batuque com os doentes). Na despedida de Ernesto, contudo, a alegria dá lugar à impotência (presente no olhar do herói e não no dos pacientes).

Imagem-tempo, imagem-espaço, imagem-ação

Pier Pasolini escreveu que uma narrativa, na assepção clássica do termo, começa quando o narrador está morto, quando os fatos já estão distantes e têm um sentido de conjunto, quando a vida não atrapalha a compreensão. Walter Salles faz essa operação com seu material. Cada ação será colocada dentro de um chave de entendimento mais ampla, que serve para mais tarde dar significação ao específico, sempre a partir de uma significação geral na qual o filme irá desembocar. O cinema de prosa, segundo Pasolini, e o cinema clássico, de forma geral, perseguem essa organização. Gilles Deleuze analisa essa compartimentação do tempo e do espaço na disposição de eventos em Imagem-Ação. Em Imagem-Tempo, debruça-se sobre o cinema moderno, no qual, acima de tudo, o tempo torna-se forma, quando não tema. Diários de Motocicleta inscreve-se em Imagem-Ação. Em trechos da viagem, poucos minutos dão conta de muitos quilômetros percorridos, pois havia poucos acontecimentos a mostrar. Em outros trechos, poucos quilômetros são mostrados em muitos minutos, em geral nas paradas, pois são ricos em eventos. Como em Caminho das Nuvens, de Vicente Amorim, o deslocamento é secundário. Não importa o tempo empregado nas ações, mas a capacidade dessas ações de revelar os personagens, assim como as motivações de suas transformações. Não importa o processo, mas a lição aprendida com ele, ou seja, o resultado alcançado. Viaja-se já sabendo o percurso e o destino final.

É outro o percurso em La Ciénega. Assim começa: imagens de pimenta, som de grilo, trilha extra-diegética agenciadora de tensão e sensação de risco, uma menina que chora, som de trovão, um quadro com a imagem da neve em um quarto, corpos suados na piscina e deitados na cama, corpos que se arrastam, que caem, que se machucam, que agem como zumbis. Somos situados em poucos planos no espaço e colocados entre os seres: vemos crise, degradação. Veremos adiante corpos que se tocam, que desejam, que se lançam à aventuras, que produzem ações, mas sem ter a consciência dos sentidos dessas ações. Nos primeiros momentos, o absurdo se instala, logo se naturaliza. Uma mulher cai bêbada, corta-se, sangra, mas seu marido a ignora: enche o copo e sai de cena. Reaparece secando o cabelo no banheiro enquanto a esposa é encaminhada a um pronto-socorro. Vemos o início de uma construção de seres e de um ambiente decrépito ("aquela casa é um desastre", diz alguém), com ocasionais quedas de luzes e de corpos, com a revelação de preconceitos étnicos, com acidentes que deixam cicatrizes (sinal de sobrevivência e resistência aos percalços), com sangramentos freqüentes (outro sinal de vida, e também de fluxo rumo à morte, ambivalência que rege o filme) - no entanto a contrapartida será exibida na seqüência, com cenas de harmonia e momentos de felicidade, com a relação cheia de imaginação de crianças com o mundo (imaginação fatal em um caso), com situações pelas quais vemos uma família problemática, sim, mas o tempo todo integrada em sua rede de afetos e desejos dissimulados. Uma adolescente lança olhares libidinosos para o irmão, o irmão vive estendido de cueca na cama da mãe, irmãos e irmãs dançam e cantam no quarto da mãe, uma outra adolescente assume sua paixão, embora com conotações de posse social, por uma criada de feições indígenas. Vemos vitalidade e degradação, vemos prazer e dor. Lucrécia filma em espaços apertados, às vezes cola a câmera nos corpos, deseja-os, corpos colam em outros corpos. Sua câmera integra-se nesses micro-espaços, mesmo com os cortes abruptos de um plano para outro. Suas cenas têm a incumbência de, em poucos gestos e segundos, insinuar um estado de coisas, sem criar legendas para elas.

Tomemos a cena do rapaz mestiço incumbido de experimentar a camisa pelas patroas da namorada. Toda uma relação de poder está resolvida nessas imagens. Mas nada é preto no branco. Essas patroazinhas também terão seu momento de integração com os mestiços quando vão brincar em um dique. Recusa-se não apenas a constatação reducionista de certas passagens como também a funcionalidade da encenação e do encadeamento dos planos, de modo a permitir que o mistério sobreviva às significações (e elas estão lá, só não berram, como em Diários). Sempre fica algo não dito e não mostrado; toca-se na vida sem explicá-la. Esbarra-se no sublime, o da arte (aquele impossível de encontrar tradução em palavras), sem persegui-lo (como nos clichês do cinema empenhado em ser cinema de arte). Ao final, uma das adolescentes, de volta de sua tentativa de ver a Virgem (sinal de esperança e de explicação para o mundo), diz que não viu nada. Não há como ver, apenas como viver. Não há como lançar-se para o futuro (como na teologia cristã). É preciso resistir no presente sem falsas esperanças, mas com a potência de quem está vivo. Isso não é latino-americano. É pessoal, filosófico, político.

Cléber Eduardo