Nos seus dois filmes anteriores (Pequeno
Dicionário Amoroso e Amores Possíveis),
Sandra Werneck deixou clara a proposta de inventariar
tipos e costumes de um imaginário caro à
Zona Sul carioca. Pequeno Dicionário Amoroso
é um título que revela essa proposta abertamente:
sua atração pelos hábitos e pelos
cartões postais do Rio brinca com a condição
de guia turístico-afetivo da cidade. Em Cazuza
– O Tempo Não Pára, ela leva mais
a fundo a parceria com Walter Carvalho - grande nome
da fotografia do cinema brasileiro atual que retorna
agora a um trabalho de direção depois
de assinar, em 2002, a co-autoria do (insosso) documentário
ensaístico Janela da Alma. Mesmo se a
contribuição dele em Cazuza – O Tempo
Não Pára tivesse sido "somente"
a fotografia, a sua inclusão como co-diretor
já seria plenamente justificável: a aproximação
que o filme constrói em relação
às cores e às texturas que acompanharam
a iconografia do cantor é primorosa. Mas é
perceptível como a contribuição
de Carvalho vai além disso, repercutindo fortemente
na mise en scène. Difícil imaginar,
por exemplo, aquelas longas seqüências com
câmera na mão e enquadramento fechado num
filme só de Sandra Werneck, para quem a expansão
dessa parceria já rendeu, no mínimo, alguns
belos efeitos-cinema para além da encenação
de frases de roteiro, num filme em que os bons momentos
brigam por oxigênio em meio a muitos despropósitos.
Pelo lado da proximidade da diretora com o imaginário
da Zona Sul carioca, faz sentido que ela se envolva
com a cinebiografia de um de seus ícones maiores.
A tirar pelo recorte e pelo tom com que tratara essa
cultura nos outros filmes, contudo, era de se recear
como poderia o Cazuza ser inserido nesse meio asséptico
e comodista, de amores tão possíveis quanto
programáticos. Em outro nível de indagação,
o filme "censura livre" de Cazuza soava estranho
desde os primeiros rumores de sua feitura. Basta a primeira
imagem, no entanto, para percebermos que o filme não
busca apenas uma adequação, não
é a chegada de um novo personagem ao mesmo projeto
de cinema: é algo em grande parte novo para Werneck.
A grua (símbolo de suntuosidade e opulência
no cinema, e aqui usada em sentido oposto) que desce
do letreiro e invade o Circo Voador, para mostrar Cazuza
apresentando um número musical, muito antes do
Barão Vermelho e de todo o frenesi em torno de
sua imagem, oferece desde o início a granulação
e o despojamento que a câmera registrará
em muitas passagens ao longo do filme - rodado em super-16
e ampliado para 35 mm justamente com esse fim (além
do grão, há as cores saturadas que remetem
a filmes como o próprio Bete Balanço).
Os méritos de Cazuza – O Tempo Não
Pára estão quase que invariavelmente
relacionados aos momentos em que ele é só
presenciação, algo próximo do que
os músicos chamam de "presença de
palco", e que o Cazuza tinha de sobra. São
os momentos em que tudo que interessa ao filme está
no ator Daniel de Oliveira – cuja entrega é realmente
admirável –, na ambiência (figura sumida
no cinema nacional, e que reaparece em belas cenas desse
filme) e na câmera, o encontro dos três
elementos resultando num processo simples e pulsante.
Longe de querer aqui afirmar um discurso, datado e superado
dentro do próprio seio dos cinemas modernos dos
anos 60, da possibilidade de uma presenciação
que sobrepuje a encenação – mas as passagens
mais assumidamente encenadas do filme, em que o roteiro
praticamente aparece escrito na tela (de tão
visíveis que são suas resoluções),
ficam como indiscutíveis pontos fracos. Walter
Carvalho levou alguma coisa de seu trabalho em Madame
Satã, filmaço de Karim Ainouz, para
Cazuza – O Tempo Não Pára, o que
pode explicar o sucesso da construção
de atmosferas locais (independentemente do Posto 9,
dos bares ou do próprio Circo Voador estarem
parecidos ou não com seus "originais",
o que importa é que possuem regimes particulares
de espacialidade e luminosidade dentro do filme).
O que Madame Satã fez com a Lapa dos anos
30, Cazuza – O Tempo Não Pára buscou
fazer parecido com a Zona Sul do Rio da década
de 80. A cena do namorado do Cazuza procurando por ele
numa boate gay, em plano-seqüência com a
câmera o acompanhando fechada na sua nuca, dando
uma visibilidade confusa, é bastante sintomática:
ao partir de uma concepção abstrata do
espaço, a cena adquiriu uma atmosfera densa e
ambígua, além de uma tensão dramática
que nenhuma das outras cenas repletas de diálogos
consegue atingir.
Cazuza – O Tempo Não Pára é
um filme construído em plano fechado nas externas
muito menos por demandas práticas de produção
(se abrir o enquadramento, mostra um espaço repleto
de signos contemporâneos que não condiz
com a diegese) do que por ter como proposta estética/temática
partir do personagem-título em direção
ao resto do mundo, elaborar o entorno utilizando o artista
retratado como pivô – e esse filme e o de Ainouz
falam de pessoas que, cada uma a seu modo e em suas
circunstâncias distintas, escolheram um local
de auto-enunciação (seja como hedonismo,
irreverência, resistência ou performance)
e fizeram desse local o princípio e o fim de
toda forma de vida que lhes era própria. Como
é mostrado numa cena em que Cazuza acende e apaga
um fósforo apanhado a esmo, aquela chama trêmula,
aquela intensidade fugaz é dele e de mais ninguém.
Mas lá onde Ainouz preferiu um recorte singular
e concentrou seu filme numa passagem breve, aparentemente
tomada ao acaso na vida de seu personagem, Werneck/Carvalho
optaram pelo contrário, ou seja, um período
longo na vida de Cazuza, acompanhando-o desde o começo
do Barão Vermelho até perto da morte.
Nisso recai uma indecisão do filme entre resolver
os diversos percalços de seu personagem (comprimido
demais num roteiro relativamente pequeno) ou se concentrar
nele em dados momentos, naquela atitude daquele dia
qualquer, naquela imagem em particular que poderia oferecer
tudo de que o filme necessitava. É um recorte
ambíguo, que não se resolve entre a aparência/momentaneidade
ou o biográfico/panorâmico, clássica
e psicologicamente composto. Tudo se acavala ao longo
do filme: o sucesso, a cisão com o Barão
Vermelho, a relação com os pais e com
os amigos, a doença. A passagem de tempo e a
"mensagem" do filme se confundem: apesar do
tempo passar rapidamente e impedir que se meça
a distância exata entre a fase saudável
e a doença, a descoberta do HIV é o middle-point
do filme e o divide claramente entre uma parte de transborde
de vida e outra de degeneração progressiva.
Embora ele continue saindo para beber e curtir após
voltar do hospital de Boston (ou seja, embora haja vida
continuando) não deixa de ter um quê de
necrofilia nessa história, como se o intuito
fosse resgatar o morto tanto para um último abraço
dos amigos, parentes e fãs quanto para torná-lo
objeto de admiração de uma geração
(a juventude/adolescência atual) que não
teve tempo de conhecê-lo. O elogio da vida, sublinhado
pela narração em off que acompanha
a última cena do filme, às vezes se perde
entre os arbustos sombrios plantados pela sua segunda
metade.
O filme, de um modo geral, é prejudicado por
seu foco paradoxalmente múltiplo; "desperdiça
seu mel" em situações mil quando,
no fundo, tudo que parece desejar é dizer qual
a impressão que tem sobre uma pessoa ímpar
e sua filosofia de vida, que volta e meia é tomada
como emblema de uma geração. Talvez fruto
de uma má-configuração generalizada
– que não abraça nem o impulso voyeurista
de acompanhar Cazuza na libertinagem das festas e dos
porres nem o desejo crítico de mostrar a formação
do músico –, o filme traz também um sentimentalismo
que funciona algumas vezes (o beijo de Cazuza no rosto
de Frejat, no meio de um show, aceitando o pedido de
desculpas pela agressão no camarim; o abraço
no pai, já na doença), mas desaba em tantas
outras (a relação com a mãe, ponto
nodal da narrativa, oscila entre o melodrama e a sinceridade
do relato materno, mas parece emperrada, encabulada
com algo). Um aspecto evidente em Cazuza – O Tempo
Não Pára é a incapacidade de,
à proximidade extrema com um indivíduo,
conciliar o atravessamento da situação
exterior a ele, e que de certa forma é também
o que o constitui (no que a "entrada da política"
no filme através do rádio, da televisão
e do jornal, sempre acompanhados de comentários
óbvios, se mostram soluções muito
pobres). Como atesta a obra-prima Dez, de Kiarostami,
fazer um filme que seja fechado na cara de um personagem,
e que ainda assim seja um filme sobre o mundo, é
mais do que possível – operação
que envolve um grande risco, sem dúvida, mas
talvez seja esse risco o que separa os cineastas relevantes
dos demais.
Sobre o possível retrato de geração
e todos os comentários a respeito do momento
político por que atravessava o Brasil, o filme
não ultrapassa em muito o clichê, a visão
estereotipada dos anos 80 (década perdida, "alienação
consciente", euforia que dribla o tédio
e o imobilismo). Se o filme acredita nessa visão
mas ainda assim não se furta à nostalgia
(no que a letra de "Ideologia" fornece a melhor
chave de entendimento), o grande problema é o
distanciamento excessivo: ao ver um filme do início
dos anos 80, ou mesmo final dos 70 (como os de Antônio
Calmon que passam de madrugada no Canal Brasil) estão
lá todas aquelas coisas (o ritual da maconha,
a comunicação por gírias, o estereótipo
do vagabundo-Zona Sul, a mulher doidinha), mas nada
é forçado, reiterado: tudo acontece porque
estava acontecendo. Vale acrescentar que foi justamente
a partir de negligenciar boa parte do que se fez no
cinema anos 80 que mais recentemente se criaram jargões
críticos como "estética publicitária",
"linguagem MTV" e afins, rótulos que
ignoram até que ponto não foi o cinema
quem determinou os padrões visuais da publicidade
e do videoclipe ou vice-versa.
Esses receios de uma parte da crítica são
pruridos de um antigo discurso que tende a enxergar
na televisão e em outros formatos (jogos eletrônicos,
por exemplo) meios de expressão menos importantes,
menos nobres, ou também um discurso que (ainda!)
resvala no assunto pureza/impureza do cinema. É
bem possível, portanto, que alguém veja
aquela cena final, antes dos arquivos em super-8, como
típica imagem de propaganda de banco: Cazuza
na cadeira de rodas, rodeado pelo mar e tendo o céu
crepuscular ao fundo, seu corpo parcialmente imerso
na escuridão, a outra metade apenas silhuetada
por uma luz lateral, com a pieguice incrementada pela
música de fundo e pela voz em off. Mas
essa é antes uma típica composição
do cinema anos 80, que pode ser vista em diversos filmes
(a exemplo até de Top Gun, bastando substituir
a cena por Tom Cruise encostado à sua motocicleta
assistindo aos aviões aterrissarem – a composição
é a mesma, o conteúdo e, conseqüentemente,
o significado é que são outros).
Formatado para o grande público (no que, a princípio,
não reside problema algum - seja lá qual
for a versão da história), porém
mal-resolvido na sua caretice (pois quer falar de promiscuidade
mas não sabe que palavras articular), Cazuza
– O Tempo Não Pára faz coexistirem
cenas de total controle sobre o material (a filmagem
do show do Rock in Rio à exata maneira que a
televisão fazia na época) com outras de
absoluta ingenuidade e desacerto (como na cena do Cazuza
se apresentando à banda, ainda no início
do filme). Entre a dramaturgia que convence pouco e
a visão de um personagem divertido (o lado cômico
de Cazuza rende boas tiradas), existe um filme de brilho
inconstante e, por vezes, escasso. E já que o
tempo não pára, é sem temer o esquecimento
que deixamos a sala após ver esse filme, mesmo
que o sentimento também não seja o de
insatisfação completa.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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