Texto de Apresentação
Séverine,
a Belle de Jour, sonha com os olhos abertos.
No entanto, caminha pelas ruas com óculos escuros,
como a persistir nos sonhos e em uma noite interior.
Quando fixa o olhar em algum ponto, o que vê não
é necessariamente o que está diante de
seus olhos. Há, neste modo particular de ver,
uma espécie de cegueira iluminada que nasce da
maneira como a personagem vivida por Catherine Deneuve
se deixa penetrar pelas imagens. Conscientemente ou
não, Séverine descansa o olhar naquilo
que está oculto, ou excessivamente aparente:
os objetos, as pessoas, as ruas, os parques e o quarto
no qual se prostitui falam de outro modo para ela. E
para nós, espectadores, é quase mesmo
impossível delimitar, sem reduzir, o que são
as "imagens reais" e o que são as "imagens criadas"
pela imaginação fértil (ou super-receptiva?)
de Séverine. Já não há fronteiras,
nem mesmo universos paralelos: o cinema é o espaço
da desarticulação total do que é
"subjetividade" e "realidade concreta". Em Bela da
Tarde tudo é movimento, e o que interessa
- como num bom filme de ação - é
acompanhar os deslocamentos dos personagens (e da câmera
que os segue).
Bela da
Tarde (1967) é possivelmente o filme mais
conhecido de Luis Buñuel. Pertence à fase
madura de sua obra, que compreende títulos como
Viridiana (1961), O Anjo Exterminador
(1962), Diário de Uma Camareira (1964),
Simão do Deserto (1965), Tristana
(1970), O Discreto Charme da Burguesia (1972),
O Fantasma da Liberdade (1974) e Esse Obscuro
Objeto do Desejo (1977). Pertence, portanto, a uma
fase na qual se cristalizou um certo "estilo buñueliano",
bastante diverso da primeira fase surrealista (Um
Cão Andaluz, L'Age D'Or) e dos filmes
realizados no México, durante a década
de 1950. E poderíamos falar aqui em "estilo buñueliano"
como se fala em um estilo "hitchcockiano", ou seja,
como uma "marca registrada", o que inclui certo apelo
à cumplicidade do espectador, que já sabe
o que esperar - ou melhor, no caso de Buñuel,
o que não esperar - do filme que irá
assistir. A Bela da Tarde, aliás, não
deixa de ser um "filme de mistério" (já
que mencionamos Hitchcock). O suspense, porém,
é de outra ordem: o que nos inquieta não
é a fatalidade trágica, mas o acaso. O
fio narrativo, de ressonância melodramática,
é inteiramente subvertido pela forma como Buñuel
sublinha o gesto concreto quando tudo é fantástico;
abrir e fechar uma porta ou andar pela rua são
atos igualmente carregados de absurdo.
Com a fluidez
de um filme de gênero (mistério? melodrama?)
e a ambigüidade característica de Buñuel,
Bela da Tarde é sobretudo ritmo. Eliminando
por completo a música de fundo, o filme se torna
ainda mais musical, numa perspectiva próxima
a de Robert Bresson, por exemplo. O som, os ruídos,
realistas ou não, são sempre elementos
que sublinham musicalmente as ações: passos
que ecoam em um corredor ou sussurram em tapetes; os
sinos de uma igreja ao longe; os cincerros das vacas,
os guizos de uma carruagem, os cascos dos cavalos, o
miar de um gato, os sons de uma buzina e o ruído
dos automóveis. Buñuel se atém
ao universo aparente do sensível: a mise-en-scène
requer apenas a eficiência do gesto e do enquadramento.
O corte não apenas nos faz sair de um lugar (espaço
físico) para outro, mas nos transporta para percepções
diferentes. Acompanhando a trajetória de Séverine,
experimentamos o que é viver com a sensação
permanente de uma suspensão temporal.
Filmando
desta forma, Buñuel evita o que poderia fazer
de A Bela da Tarde um péssimo filme: a
construção moralista de personagens psicologizados.
De fato, as motivações que levam Séverine
a se prostituir (imaginariamente ou não) importam
tanto quanto o conteúdo da misteriosa caixinha
que o "cliente asiático" leva ao bordel de Anais.
Buñuel não se interessa pelo "drama burguês".
Prefere filmar os burgueses debatendo-se em seus dramas,
da forma mais exterior possível (mesmo
que o que vemos represente a subjetividade da
protagonista). E é por isto que há tanto
humor nos filmes de Buñuel (nem tanto em Bela
da Tarde, mas principalmente em trabalhos como Simão
do Deserto e O Fantasma da Liberdade). Mais
uma vez, o gesto mais comum é tão perverso
quanto os mais obscuros fetiches dos clientes do bordel.
Pierre (Jean Sorel), o marido de Séverine, e
seu sorriso empastelado; Husson (Michel Picolli) e sua
polidez sarcástica; todos os tipos que passam
pela Belle de Jour - pervertidos ou não
- são tão ou mais monstruosos quando aparentam
uma pretensa normalidade. O jovem Marcel (Pierre Clementi),
o bandido que se apaixona por Séverine, é
talvez o único personagem que escapa da galeria
dos hipócritas - mas a ele é conferido
um destino apropriado aos "personagens de exceção"...
Resolvendo
trabalhar pela primeira vez na vida, Séverine
decide optar pela mais antiga das profissões.
Seu nome de guerra, Bela da Tarde, não
somente indica a sua beleza, mas seu horário
de trabalho, e a este horário Séverine
agarra-se como a única bóia de salvação.
Com um nome de guerra, ela termina por nomear seu próprio
cotidiano. Mas não é a intenção
de Buñuel nos guiar através do "dia-a-dia"
de uma "mulher em busca de si mesma". Em A Bela da
Tarde nenhum personagem merece o "privilégio
da identificação" com o espectador, já
que todos são filmados com absoluto rigor por
uma câmera que os torna fantasmas de realidades
múltiplas. Se Séverine se apresenta como
um veículo para nos abandonarmos e nos entregarmos
ao devaneio, tanto pior para ela: das duas às
cinco da tarde, nós também somos donos
da Belle de Jour e dela nos afastamos assim que
soam as seis horas e ela se torna Séverine, a
mulher frígida de Pierre. Ou melhor: é
então que voltamos a observá-la enquanto
ela vive seus sonhos ou pesadelos. De olhos bem abertos,
que é, de resto, a maneira de se sonhar no cinema.
Luís Alberto
Rocha Melo
31 de maio de 2004
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