As memórias pessoais
dos khmers, as quais formam a História do Camboja,
sob ameaça das transformações econômicas
que afetam o país após o término
do sanguinário regime de Pol Pot: nas ruínas
de Angkor, símbolo máximo da nação
(pois armazena e cristaliza as narrativas milenares
que alimentam a coletividade), Rithy Panh se preocupa
com os efeitos nocivos que a introdução
da lei de mercado tem sobre os cambojanos, à
margem do processo hegemônico que apaga o passado
das lembranças individuais para instaurar o presente
fictício de um novo espaço desmemoriado.
Capital do Império Khmer entre os séculos
IX e XV, Angkor é um conjunto de templos no qual
se verifica a fusão da cultura local tanto com
o hinduísmo, já que a arte khmer se inspira
nos deuses Xiva e Vixnu, quanto com o budismo, presente
nas numerosas estátuas de Buda existentes no
complexo. De profunda tensão teológica,
centrada no culto aos reis divinos, Angkor alcançou
seu apogeu com o rei-deus Suriavarman II, o qual construiu
para si o templo-montanha de Angkor Wat, cujas cúspides
das cinco torres se encontram representadas na bandeira
do Camboja. Esquecida por trezentos anos, as ruínas
da antiga cidade foram descobertas, no século
XIX, pelo naturalista Henri Monhot, durante a ocupação
francesa na Indochina.
A imagem das cúspides na bandeira cambojana,
contudo, não significa duplicação
inocente da realidade, uma vez que Angkor Wat, símbolo
nacional, apresenta número diferente de torres
conforme o regime que governa o país. Na impressionante
seqüência em que os trabalhadores que restauram
o complexo e o garoto que vende bugigangas para os turistas
discutem sobre as diversas configurações
da bandeira do Camboja nos últimos trinta anos,
Panh mostra como a violenta instabilidade política
da nação inflige projeto sistemático,
mesmo que com métodos variáveis, de aniquilação
das raízes culturais e afetivas da população,
cada vez mais pauperizada. Desse modo, enquanto a bandeira
monárquica era azul e possuía apenas três
cúspides (o rei, a pátria e a religião),
a republicana, sob a ditadura comunista de Pol Pot,
tornou-se vermelha, com as cinco torres que permanecem
na atual, democrática, a qual, por sua vez, reintroduziu
a cor característica da monarquia. Por que a
volta do azul, se o Camboja contemporâneo é
uma república? Segundo um dos restauradores,
para lembrar que agora há liberdade, ao que outro
complementa: e que a miséria continua.
É a consciência dos operários de
Angkor de que, para eles, tudo ficará igual,
apesar das mudanças. Da mesma forma que os trabalhadores
apontam para a maioria pobre e marginalizada do país,
a restauração das ruínas também
é trabalhada simbolicamente pelo cineasta: mais
do que apenas esforço físico, ela implica
a preservação da cultura popular, das
narrativas criadas pelo povo, as quais forjaram e legitimaram
a identidade nacional ao longo dos séculos. O
toque de mestre de Panh, em aparência banal, é
dizer que monumentos não nascem sozinhos, que
cada pedra de Angkor guarda em si as lembranças,
os sonhos e o sangue das pessoas que já passaram
e das que ainda estão por lá, vivendo
mal e porcamente nos escombros dos grandes templos.
Porém, se em S-21, A Máquina de Morte
do Khmer Vermelho, a eliminação das
memórias individuais se dá pela política
estatal comunista de assassinatos em massa, através
do aterrador aparato burocrático montado pelo
governo de Pol Pot para este fim, em As Pessoas de
Angkor ela se adapta à nova realidade democrática
do país. A ameaça, agora, vem da crescente
inserção do Camboja na economia global,
que transforma o sítio arqueológico onde
se originou a nação em mero ponto turístico,
em cartão-postal despossuído de História.
Numa aula de cinema crítico, o diretor contrapõe
imagens, em primeiro plano, nas quais os trabalhadores
contam ao garoto as histórias e lendas dos antepassados
gravadas em Angkor à dos turistas japoneses que,
ao fundo, passeiam com suas máquinas fotográficas:
trata-se de profanar o passado de luta e de afirmação
dos khmers a fim de substituí-lo pela civilização
da aparência, do consumo e da ficção
generalizados, cuja presença destrói as
tradições locais por ela dominadas. Neste
sentido, é exemplar a seqüência na
qual o guia turístico, a partir do relevo no
templo, inventa uma narrativa fantástica qualquer,
enquanto o trabalhador, do mesmo relevo, conta uma saga
de guerras, fome, morte e escravidão.
Assim, Rithy Panh registra, de um lado, a sujeição
da memória coletiva ao presente ficcional alienante,
e de outro, a resistência dos cambojanos aos desmandos
mercadológicos. Indivíduos que resistem
porque teimam em sobreviver, a despeito da miséria
e da injustiça que sofrem – seja o garoto, que
engana os turistas com mercadorias a preços maiores
do que valem, seja o pai que se martiriza por ter tirado
o filho da escola para trabalhar e ajudar a família,
seja o homem cujo galo, ferido na rinha, está
para morrer (e a morte do animal significa o fim de
sua única fonte de renda) –, pois, como indica
o último plano de As Pessoas de Angkor,
em que o menino confidencia outra narrativa ao deus,
é a vida dos que sempre estiveram à margem
que torna possível não só a preservação
das velhas histórias, como também o surgimento
de novas.
Paulo Ricardo de Almeida
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