Mais
que um simples filme ou mini-série para TV a
cabo, Angels in America configurou-se como uma
espécie de evento na programação
da televisão paga nos EUA, assim como a peça
teatral que lhe deu orígem esteve para a Broadway
dez anos antes. Desde que o mercado da produção
para cinema de Hollywood passou a praticamente exigir
que todo filme se torne um sucesso imediato, direcionado
para um público majoritariamente adolescente,
as produções originais para os canais
de filmes a cabo (em especial a HBO) se tornaram um
porto seguro para diretores veteranos que desejam tratar
de temas mais "adultos" ou que simplesmente
buscam novas opções para trabalhar.
É o caso de Mike Nichols, assim como antes dele
Norman Jewison ou o já falecido John Frankenheimer,
todos artesãos distantes da genialidade, mas
de reconhecida competência e que, com um bom material
às mãos, conseguiam quase sempre realizar
filmes eficientes, e por vezes mesmo brilhantes. Nichols,
em especial, retornara às orígens teatrais
em seu primeiro filme para a HBO, Uma Lição
de Vida (Wit), onde transpusera para TV outro texto
teatral de prestígio. Sendo assim, foi mais que
acertada a sua escolha para comandar a adaptação
às telas que o dramaturgo Tony Kuschner escreveu
de sua longa (originalmente mais de 7 horas) peça
teatral Angels in America, assim como o filme,
dividida em duas partes, Millenium Approaches
e Perestroika, com uma fidelidade que, em cinema,
se caractrizaria inviável.
Tal fidelidade, no entanto, acaba por se materializar
como um calcanhar de Aquiles para o Angels in America
da TV, pois suas maiores limitações
aparentam ser advindas do próprio texto a que
lhe deu orígem. Seu tema é a repercussão
da epidemia de AIDS num grupo de personagens homossexuais,
na Nova York de meados da década de 80, época
em que ser vitimado por tal doença era garantia
de morte certa num curto período de tempo. São
dois os acometidos: o advogado de direita Harry Cohn,
figura verídica que até a morte negara
não somente a doença, como também
sua própria homossexualidade, e o jovem Prior
que ao manifestar os primeiros sintomas é abandonado
pelo namorado Joe. Este, por sua vez, virá a
ter um caso com Louis, um advogado enrustido e casado
ligado a Cohn. Kuschner tece de forma razoavelmente
competente a teia de relacionamentos que envolve as
personagens, mais seu texto assume contornos bastante
pretensiosos por desejar abranger questões de
transcendência mítica e religiosa ao apresentar
Prior como tendo visões (os anjos do título)
que o situam num patamar de profeta, ou até mesmo
de mártir e colocando Hester, a esposa drogada
de Louis como uma espécie de par em seu martírio,
enquanto Cohn é visto como um quase demônio.
Angels in America pode até desejar ser
uma obra de abrangência universal, mas na verdade
reflete de forma bem clara e parcial a mentalidade e
visão de mundo do grupo ao qual pertence seu
autor, novaiorquino, assumidamente gay e de formação
política de esquerda. Isso fica bem claro quando
o texto apresenta a América governada por Reagan
e infectada pelo HIV como "um tempo em que o mundo
foi abandonado por Deus". Por certo tal abordagem
fez de Angels in America, peça ou minissérie,
uma espécie de "queridinha" para
os intelectuais americanos liberais, mas a uma visão
mais atenta e distanciada (pelo menos do que se apreende
pela versão televisiva), deixa bastante claras
suas limitações, entre elas uma conclusão,
apesar de otimista, excessivamente discursiva e dramaturgicamente
capenga, além, evidentemente, do já referido
excesso de pretensão, ao trabalhar a mitologia
religiosa, principalmente das crenças mórmon
e judaica, explorando em especial com o tema da redenção.
Se ressente também da falta de um pouco mais
de humor ou ironia, pois os momentos nos quais estes
se se fazem presentes, como as falas do rabino logo
no início ou a primeira visita do anjo, são
aqueles em que o texto se mostra mais rico.
O que não impede que a minissérie se configure
como um trabalho quase sempre atraente durante a maior
parte da cerca de seis horas que somam suas duas partes,
divididas cada uma em três capítulos. É
aí que entra a tarimba e o talento de Mike Nichols,
superando o texto de Kuschner com uma encenação
muito bem amarrada, que não busca esconder a
orígem teatral, mas sim enquadrá-la de
forma coerente em outro veículo, conseguindo
muitas vezes fazer com que Angels in America funcione
como um eficiente novelão, o que acontece nas
seqüências mais realistas. Já as visões
de Prior se revelam de difícil transposição,
acabando por transparecer às vezes pouco convincentes,
puxando o espetáculo um pouco para baixo, talvez
pelo fato do meio televisivo não ser o mais favorável
para que se crie uma ambiência onírica,
que certamente causaria um melhor efeito no palco ou
mesmo em tela de cinema. Mas Nichols faz o que pode.
E como em quase toda obra de Mike Nichols, o trabalho
com o elenco, no qual a maioria interpreta mais de um
papel, se faz um destaque a parte. Pode-se dirigir atores
tão bem como Nichols, mas melhor é difícil.
Nem tanto pelos medalhões: Al Pacino cria seu
Harry Cohn comu uma mistura do Michael Corleone idoso
de O Poderoso Chefão 3 com o RP do recente
O Articulador, mas impressiona nas cenas de doença;
Meryl Streep tira de letra a mãe de Louis ou
mesmo um velho rabino, se destacando como o fantasma
de Ethel Rosenberg; Emma Thompson, exceto pelas breves
aparições do anjo, tem pouco o que fazer.
Já os experientes mas menos conhecidos Jeffrey
Wright (Belize, o sagaz e espirituoso enfermeiro negro
que cuida de Cohn), o único que participara da
montagem teatral, e Mary Louise Parker (Hester) estão
brilhantes, fazendo valer os prêmios que já
receberam pelo filme. Quanto aos desconhecidos, também
brilhante está Ben Shenkenman (Joe), mas Justin
Kirk (Prior) consegue a façanha de superar a
todos. Apenas Patrick Wilson (Louis) se ressente de
um personagem que é o mais fragilmente desenvolvido
pelo roteiro e que fica meio abandonado nos momentos
finais deste Angels in America que, mesmo sendo
um trabalho que não corresponda a toda a relevância
ou brilhantismo apregoados pela mídia norte-americana,
certamente vem à tona como uma atração
digna de atenção e interesse.
Gilberto Silva Jr.
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