A ÁFRICA VOS FALA DOS FINS E DOS MEIOS
Moi, un noir, 1958, França

Nossos leitores já sabem, pelos trechos do comentário que publicamos no número 90, que com Eu, um Negro (ex-Treichville), Jean Rouch junta um terceiro elemento ao seu imenso tríptico nigeriano. Os outros dois são Jaguar (na verdade, o primeiro longa-metragem de Rouch, ainda não lançado até hoje) e Les Fils d’Eau, composto por uma série de curtas-metragens etnológicos, compreendendo de La Circoncision até Os Mestres Loucos.

Assim como Os Primos é o contrário de Nas Garras do Vício, em Eu, um Negro, Jean Rouch conta-se uma história inversa a de Jaguar. Tal qual uma reportagem da atualidade ao filmar Jayne Mansfield na descida do [vôo] Los Angeles-Paris, ou François Mitterand saindo do [palácio] Elysée, Rouch filma os infortúnios de um pequeno bando de nigerianos vindos ingenuamente procurar fortuna na bela cidade de Abidjan. Ó, Abidjan das lagoas!, diz ternamente a canção. Todos esses novilhos, contra suas vontades, moram em Treichville, um bairro indígena saído do chão em alguns meses, à imagem das cidades de westerns, e que com desprezo, ele chamam de, piada, "Chicago da África". Nada de impressionante, uma vez que os personagens se nomeias de Edward G. Robinson, Eddie Constantine, Lemy-Caution ou Tarzã. Sem esquecer Elite, Pequeno Jules e Dorothy Lamour.

Toda a originalidade de Rouch é ter feito de seus atores personagens. Atores no sentido mais simples do termo, aliás, do simples fato de terem sido filmados em ação, e Rouch se contenta de filmar essa ação depois de a ter, à semelhança de Rosselini, organizado logicamente na medida do possível. Mas, dirão os desagradáveis, esta possibilidade é possível? Nós a veremos bem.

Assim, um dos atores, Edward G. Robinson, é filho de um notável de Niamey. É um letrado que passou duas vezes no vestibular e que poderia seguir os passos de Houphouet Boigny. Mas acontece que, um belo dia, mandaram-no para a Indochina. Na sua volta, foi expulso da família, porque em outros tempos, disse-lhe seu pai, voltava-se morto se se tivesse perdido a guerra. E é aí que começam os créditos de Eu, um Negro. Rouch põe-se a seguir seu antigo pára-quedista, fazendo um travelling na direção dos dias de esperança, e para longe daqueles de amargura, à procura das meninas, à procura de grana, à procura: a palavra foi afrouxada. Balthazar Claes moderno, Jean Rouch não trapaceou no seu título no cartão de visita: encarregado de pesquisa do Museu do Homem. Há mais bela definição de cineasta?

Sem meias-medidas

Peguemos Malraux, à época em que ele vadiava nos meios do Kuomitang. Na saída, um romance admirável: Os Conquistadores. Mas os olhos azuis da Rússia de Garine durante suas longas conversas com Borodine, se não estiveram sobre os papéis da Gallimard, não seriam mais bonitos se fossem filmados em KodaChrome 16mm, depois ampliados em Eastman? Malraux sabe isso de longe, tanto que filmou A Esperança antes de escrevê-lo.

Porque enfim, não há meias-medidas. É ou a realidade ou a ficção. Ou se interpreta ou se faz uma reportagem. Opta-se no fundo ou pela arte ou pela sorte. Ou pela construção, ou pela tomada ao vivo. E por que então? Porque ao se escolher do fundo do coração ou um ou outro, recai-se automaticamente sobre um ou outro.

Dou precisão: Faz-se Alexandre Newsky ou Índia 58. Tem-se o dever estético de se filmar um ou o moral de filmar o outro. Mas não se pode filmar o Nanuk como quem faz o Aurora. A Esperança é um belo filme, mas não seria mais bonito se alguém como Haroun Tazieff ou Arthur Penn fosse seu conselheiro técnico no lugar de Denis Marion. O que quero dizer é isso. O erro de Malraux foi o de não se envolver a fundo em uma direção ou em outra. Exemplo: a Mercedes escurecida nas ruas de Valladolid por se esmagar sob um canhão antitanque. A montagem dessa cena choca esteticamente, se comparada com as metralhadoras de Outubro, cuspindo uma bala por plano. E mesmo, por uma razão inversa, os planos da Paisà chocam moralmente em relação à travessia de Florença num filme de Rosselini ou a execução de uma bala na nuca dos franco-atiradores de Mao-Tsé-Tung numa Pequim de Éclair Journal. Dito de outra forma, sua mise en scène sacrifica a priori a apreensão ao natural e sua apreensão ao natural sacrifica sua mise en scène. E destaco bem o "a priori", ainda que nele haja algo de incômodo, que nunca se encontrou em Flaherty, por exemplo, ou que se encontre em Continente Perdido.

Coloquemos então os pingos em alguns "is". Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, assim como todo grande documentário tende à ficção. Ivã, o terrível tende a Que Viva México! e vice-versa, assim como Arkadin a It’s all True e assim reciprocamente. Entre a ética e a estética, é preciso escolher. Está bem entendido. Mas não menos entendido é que cada palavra comporta uma parte de outra. E quem opta completamente por uma encontra necessariamente a outra no fim do caminho. Lola Montes é o contrário de Jaguar, mas eles se justificam e se apoiam mutuamente uma vez que são filmes puros, filmes de homens livres. Poderíamos dizer da mesma maneira que não há filme mais moral que O Nascimento de uma Nação e filme mais espetacular que Eu, um Negro. Tudo se dará doravante assim como na frase famosa de Nietzsche: temos a arte para não morrer da verdade. Tudo se dá como se esta fosse a frase mais falsa do mundo.

Arte ou acaso

Pelo menos no que diz respeito ao cinema, Eu, um negro prova tudo. Pois está lá a resposta, a resposta à grande questão: a arte pode se alimentar do acaso? Sim, mostra Jean Rouch cada vez melhor, ou seja, em constantes progressos. Exemplo: Edward tornado Edgar Robinson se transporta em sonho para o campeonato mundial de boxe. O ginásio é escuro como um túnel. Rouch roda sua cena sem iluminação, sem nem mesmo um flood. Tanto pior se nós não vemos nada, sobretudo as cores. Efetivamente, dentro de alguns minutos, não se verá nada. E, então, eis o milagre: um rosto negro se destaca pouco a pouco e, este é o milagre, em um fundo escuro. Revela-se, deveria dizer, pois o plano é tão misterioso e belo quanto as seções de retratos de Audrey Hepburn em Cinderela em Paris. Jean Rouch, o etnólogo, junta-se aqui a Richard Avedon, o fotógrafo mais esteta do mundo. Arte ou acaso? Eis que se prova em todo caso que todos os caminhos levam a Roma, Cidade Aberta. Se os caminhos da arte são imprevisíveis, é porque as do acaso não são. Talvez "porque tudo é Deus", ensina-nos a última imagem desse filme impressionante.

Cinema novo

Tudo está claro agora. Fiar-se ao acaso é ouvir vozes. Como a Jeanne [D’arc] de outros tempos, nosso amigo Jean é conduzido, com uma câmera, para salvar, se não a França, ao menos o cinema francês. Uma porta aberta sobre um cinema novo, diz o cartaz de Eu, um Negro. Como está correto. Rouch é tão importante quanto Stanislawsky, pois do simples fato de que o cinema existe, ele tem já como ponto de partida aquilo que o diretor russo buscava como ponto de chegada. E mais importante que Pirandello, porque espontaneamente ambicioso, e não calculadamente espontâneo, como o Visconti de A Terra Treme.

Certamente, Eu, um Negro é ainda longe de valer tanto quanto Índia 58. Há um lado piadista em Jean Rouch que prejudica um pouco seus objetivos. Não que o os treichvilianos não tenham o direito de zombar de tudo, mas há uma certa facilidade de se acomodarem. Um farsante pode tanto quanto outros ir ao fundo das coisas, mas isso não deve impedi-lo de ser severo consigo mesmo. São ressalvas desse gênero que devem ser feitas a Jean Rouch. Mas nenhuma outra. E ele sabe bem, aliás. Ele sabe que esses grandes filmes começam a não ter mais nenhuma medida comum com as pequenas reportagens puramente etnológicas. Ele sabe que está saindo da crisálida do artesão, que está se tornando um artista.

Quando, em Anjo ou Demônio, para não perder de vista Linda Darnell, que atravessa o restaurante, a câmera investe de tal maneira rápida contra os clientes que se vêem as mãos do assistente a pegar dois ou três deles pelos coletes e afastar do campo para deixa-la passar, adoro. E quando Eddie Constantine, agente federal americano, discute o golpe com Pequeno Jules em um atordoante onda de palavras do estilo "Bagatela por um massacre", e que Rouch, acocorado ao lado dele, a câmera no ombro, se reergue lentamente e se eleva à Anthony Mann, os joelhos como uma grua, para enquadrar Abidjan, Ó, Abidjan das lagunas, do outro lado do lago, eu adoro. Adoro o movimento aquático do equipamento de Preminger, porque ele dá uma impressão de "direto", e que sinto que, para ele, essa é a maneira de penetrar mais profundamente nas coisas. E amo os efeitos de Rouch porque eles defendem a mesma causa, ou melhor, eu defendo sua causa porque ela consegue os mesmos efeitos.

Tudo que podemos dizer ainda sobre esse filme, Rouch, aliás, despreza. Ele não escuta jamais. Ele não veio buscar seu Prêmio Delluc em Paris. Ele mergulha mais ao coração da África que nunca e filma atualmente a odisséia de alguns fanfarrões da savana que caçam um leão.

Jean-Luc Godard
in Cahiers du Cinéma 94, abril de 1959
(tradução de Alexandre Werneck)