Nossos leitores já
sabem, pelos trechos do comentário que publicamos
no número 90, que com Eu, um Negro (ex-Treichville),
Jean Rouch junta um terceiro elemento ao seu imenso
tríptico nigeriano. Os outros dois são
Jaguar (na verdade, o primeiro longa-metragem
de Rouch, ainda não lançado até
hoje) e Les Fils d’Eau, composto por uma série
de curtas-metragens etnológicos, compreendendo
de La Circoncision até Os Mestres Loucos.
Assim como Os Primos é o contrário
de Nas Garras do Vício, em Eu, um Negro,
Jean Rouch conta-se uma história inversa a de
Jaguar. Tal qual uma reportagem da atualidade
ao filmar Jayne Mansfield na descida do [vôo]
Los Angeles-Paris, ou François Mitterand saindo
do [palácio] Elysée, Rouch filma
os infortúnios de um pequeno bando de nigerianos
vindos ingenuamente procurar fortuna na bela cidade
de Abidjan. Ó, Abidjan das lagoas!, diz ternamente
a canção. Todos esses novilhos, contra
suas vontades, moram em Treichville, um bairro indígena
saído do chão em alguns meses, à
imagem das cidades de westerns, e que com desprezo,
ele chamam de, piada, "Chicago da África".
Nada de impressionante, uma vez que os personagens se
nomeias de Edward G. Robinson, Eddie Constantine, Lemy-Caution
ou Tarzã. Sem esquecer Elite, Pequeno Jules e
Dorothy Lamour.
Toda a originalidade de Rouch é ter feito de
seus atores personagens. Atores no sentido mais simples
do termo, aliás, do simples fato de terem sido
filmados em ação, e Rouch se contenta
de filmar essa ação depois de a ter, à
semelhança de Rosselini, organizado logicamente
na medida do possível. Mas, dirão os desagradáveis,
esta possibilidade é possível? Nós
a veremos bem.
Assim, um dos atores, Edward G. Robinson, é filho
de um notável de Niamey. É um letrado
que passou duas vezes no vestibular e que poderia seguir
os passos de Houphouet Boigny. Mas acontece que, um
belo dia, mandaram-no para a Indochina. Na sua volta,
foi expulso da família, porque em outros tempos,
disse-lhe seu pai, voltava-se morto se se tivesse perdido
a guerra. E é aí que começam os
créditos de Eu, um Negro. Rouch põe-se
a seguir seu antigo pára-quedista, fazendo um
travelling na direção dos dias de esperança,
e para longe daqueles de amargura, à procura
das meninas, à procura de grana, à procura:
a palavra foi afrouxada. Balthazar Claes moderno, Jean
Rouch não trapaceou no seu título no cartão
de visita: encarregado de pesquisa do Museu do Homem.
Há mais bela definição de cineasta?
Sem meias-medidas
Peguemos Malraux, à época em que
ele vadiava nos meios do Kuomitang. Na saída,
um romance admirável: Os Conquistadores.
Mas os olhos azuis da Rússia de Garine durante
suas longas conversas com Borodine, se não estiveram
sobre os papéis da Gallimard, não seriam
mais bonitos se fossem filmados em KodaChrome 16mm,
depois ampliados em Eastman? Malraux sabe isso de longe,
tanto que filmou A Esperança antes de
escrevê-lo.
Porque enfim, não há meias-medidas. É
ou a realidade ou a ficção. Ou se interpreta
ou se faz uma reportagem. Opta-se no fundo ou pela arte
ou pela sorte. Ou pela construção, ou
pela tomada ao vivo. E por que então? Porque
ao se escolher do fundo do coração ou
um ou outro, recai-se automaticamente sobre um ou outro.
Dou precisão: Faz-se Alexandre Newsky
ou Índia 58. Tem-se o dever estético
de se filmar um ou o moral de filmar o outro. Mas não
se pode filmar o Nanuk como quem faz o Aurora.
A Esperança é um belo filme, mas
não seria mais bonito se alguém como Haroun
Tazieff ou Arthur Penn fosse seu conselheiro técnico
no lugar de Denis Marion. O que quero dizer é
isso. O erro de Malraux foi o de não se envolver
a fundo em uma direção ou em outra. Exemplo:
a Mercedes escurecida nas ruas de Valladolid por se
esmagar sob um canhão antitanque. A montagem
dessa cena choca esteticamente, se comparada com as
metralhadoras de Outubro, cuspindo uma bala por
plano. E mesmo, por uma razão inversa, os planos
da Paisà chocam moralmente em relação
à travessia de Florença num filme de Rosselini
ou a execução de uma bala na nuca dos
franco-atiradores de Mao-Tsé-Tung numa Pequim
de Éclair Journal. Dito de outra forma,
sua mise en scène sacrifica a priori a apreensão
ao natural e sua apreensão ao natural sacrifica
sua mise en scène. E destaco bem o "a priori",
ainda que nele haja algo de incômodo, que nunca
se encontrou em Flaherty, por exemplo, ou que se encontre
em Continente Perdido.
Coloquemos então os pingos em alguns "is".
Todos os grandes filmes de ficção tendem
ao documentário, assim como todo grande documentário
tende à ficção. Ivã,
o terrível tende a Que Viva México!
e vice-versa, assim como Arkadin a It’s all
True e assim reciprocamente. Entre a ética
e a estética, é preciso escolher. Está
bem entendido. Mas não menos entendido é
que cada palavra comporta uma parte de outra. E quem
opta completamente por uma encontra necessariamente
a outra no fim do caminho. Lola Montes é
o contrário de Jaguar, mas eles se justificam
e se apoiam mutuamente uma vez que são filmes
puros, filmes de homens livres. Poderíamos dizer
da mesma maneira que não há filme mais
moral que O Nascimento de uma Nação
e filme mais espetacular que Eu, um Negro. Tudo
se dará doravante assim como na frase famosa
de Nietzsche: temos a arte para não morrer da
verdade. Tudo se dá como se esta fosse a frase
mais falsa do mundo.
Arte ou acaso
Pelo menos no que diz respeito ao cinema, Eu,
um negro prova tudo. Pois está lá
a resposta, a resposta à grande questão:
a arte pode se alimentar do acaso? Sim, mostra Jean
Rouch cada vez melhor, ou seja, em constantes progressos.
Exemplo: Edward tornado Edgar Robinson se transporta
em sonho para o campeonato mundial de boxe. O ginásio
é escuro como um túnel. Rouch roda sua
cena sem iluminação, sem nem mesmo um
flood. Tanto pior se nós não vemos
nada, sobretudo as cores. Efetivamente, dentro de alguns
minutos, não se verá nada. E, então,
eis o milagre: um rosto negro se destaca pouco a pouco
e, este é o milagre, em um fundo escuro. Revela-se,
deveria dizer, pois o plano é tão misterioso
e belo quanto as seções de retratos de
Audrey Hepburn em Cinderela em Paris. Jean Rouch,
o etnólogo, junta-se aqui a Richard Avedon, o
fotógrafo mais esteta do mundo. Arte ou acaso?
Eis que se prova em todo caso que todos os caminhos
levam a Roma, Cidade Aberta. Se os caminhos da
arte são imprevisíveis, é porque
as do acaso não são. Talvez "porque
tudo é Deus", ensina-nos a última
imagem desse filme impressionante.
Cinema novo
Tudo está claro agora. Fiar-se ao acaso
é ouvir vozes. Como a Jeanne [D’arc]
de outros tempos, nosso amigo Jean é conduzido,
com uma câmera, para salvar, se não a França,
ao menos o cinema francês. Uma porta aberta sobre
um cinema novo, diz o cartaz de Eu, um Negro.
Como está correto. Rouch é tão
importante quanto Stanislawsky, pois do simples fato
de que o cinema existe, ele tem já como ponto
de partida aquilo que o diretor russo buscava como ponto
de chegada. E mais importante que Pirandello, porque
espontaneamente ambicioso, e não calculadamente
espontâneo, como o Visconti de A Terra Treme.
Certamente, Eu, um Negro é ainda longe
de valer tanto quanto Índia 58. Há
um lado piadista em Jean Rouch que prejudica um pouco
seus objetivos. Não que o os treichvilianos não
tenham o direito de zombar de tudo, mas há uma
certa facilidade de se acomodarem. Um farsante pode
tanto quanto outros ir ao fundo das coisas, mas isso
não deve impedi-lo de ser severo consigo mesmo.
São ressalvas desse gênero que devem ser
feitas a Jean Rouch. Mas nenhuma outra. E ele sabe bem,
aliás. Ele sabe que esses grandes filmes começam
a não ter mais nenhuma medida comum com as pequenas
reportagens puramente etnológicas. Ele sabe que
está saindo da crisálida do artesão,
que está se tornando um artista.
Quando, em Anjo ou Demônio, para não
perder de vista Linda Darnell, que atravessa o restaurante,
a câmera investe de tal maneira rápida
contra os clientes que se vêem as mãos
do assistente a pegar dois ou três deles pelos
coletes e afastar do campo para deixa-la passar, adoro.
E quando Eddie Constantine, agente federal americano,
discute o golpe com Pequeno Jules em um atordoante onda
de palavras do estilo "Bagatela por um massacre",
e que Rouch, acocorado ao lado dele, a câmera
no ombro, se reergue lentamente e se eleva à
Anthony Mann, os joelhos como uma grua, para enquadrar
Abidjan, Ó, Abidjan das lagunas, do outro lado
do lago, eu adoro. Adoro o movimento aquático
do equipamento de Preminger, porque ele dá uma
impressão de "direto", e que sinto
que, para ele, essa é a maneira de penetrar mais
profundamente nas coisas. E amo os efeitos de Rouch
porque eles defendem a mesma causa, ou melhor, eu defendo
sua causa porque ela consegue os mesmos efeitos.
Tudo que podemos dizer ainda sobre esse filme, Rouch,
aliás, despreza. Ele não escuta jamais.
Ele não veio buscar seu Prêmio Delluc em
Paris. Ele mergulha mais ao coração da
África que nunca e filma atualmente a odisséia
de alguns fanfarrões da savana que caçam
um leão.
Jean-Luc Godard
in Cahiers du Cinéma 94, abril de 1959
(tradução de Alexandre Werneck)
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