Mais
do que ter dado ao mundo seus belos filmes, Quentin
Tarantino não virou referência somente
por seu trabalho como cineasta, mas também viria
a estar presente em diversas produções
sobretudo na primeira metade da década de 90,
fosse enquanto produtor, ator, roteirista, ou pura mente
mentor estilístico distante. Essa relação
viria a reforçar o quanto Tarantino é
um autor único, observando que todos estes filmes,
em maior destaque os escritos pelo cineasta, podem até
possuir seu lado mais tarantinesco que veio a se popularizar,
seja no estilo das tramas ou dos diálogos, mas
a parte disto, nenhum destes filmes poderiam passar
como um filme de Quentin Tarantino em uma olhada
mais próxima – e isso tem pouco a ver com qualidade,
e sim com noções de cinema.
De todos os filmes escritos por Tarantino, talvez o
que traga mais à mente o trabalho do cineasta
seja Amor à Queima Roupa, de Tony Scott,
que mostra um encantamento mais forte pelo mundo que
Tarantino constrói em seu texto. Mas é
essencialmente um filme formalmente pensado numa linha
que difere muito a de Tarantino, pois trata-se de um
autêntico filme de Tony Scott. Não será
coincidência que cenas semelhantes e principalmente
construções de relações
entre personagens irão surgir em outros filmes
de Scott, com o caso mais explicito sendo a cena do
clímax com o tiroteio, praticamente refilmado
em Inimigo do Estado por Scott. É inegável
a presença ali de toques de Tarantino, como o
interesse do personagem de Christian Slater com o cinema
chinês e os quadrinhos, seqüências
centradas na força dos atores (ver cena com Dennis
Hopper e Christopher Walken), entre outras referências
que são extremamente caras a Tarantino; talvez
o que venha a deixar o mais claro possível as
divergências de interesses dos cineastas será
a montagem do filme, quase caótica, feita de
tal maneira que jamais seria visto num filme de Tarantino.
É o filme que irá mais se aproximar mas
será chave para notar as diferenças entre
o que tem o toque do autor, e o que realmente pertence
ao cineasta.
É preciso no entanto para olhar estes filmes
enquanto trabalhos que reafirmem a postura de Tarantino
enquanto cineasta essencial, notar que nem sempre a
proximidade destes trabalhos são as mesmas. Pegando
o exemplo mais radical, Assassinos por Natureza
filme cometido por Oliver Stone, foi no papel escrito
por Tarantino – mas o que está na tela é
de uma diferença tão grosseira para o
trabalho realizado antes, que o próprio Tarantino
renega o crédito de ter escrito tal filme. Não
é de se surpreender no entanto que qualquer pessoa
sã saia com má impressão ao ver
seu antigo rebento filmado por Stone. Mas haverá
relações muito diferentes. Roger Avary
é um grande amigo e colaborador de Tarantino,
para quem não pensou duas vezes em emprestar
o estilo e a produção para sua estréia,
Parceiros do Crime. Embora não se trate
de um filme escrito por Tarantino, é fácil
notar que a influência é maior do que meramente
o dinheiro e o nome do cineasta. Avary é assim
como Tarantino um grande cinéfilo, com o qual
partilha de muitos gostos em comum. Ele trabalha seu
cinema num processo maneirista que lembra muito o de
Tarantino – mas a diferença é ainda mais
grotesca aqui. Será na maneira como Avary faz
constrói seu filme na imagem que o discurso escandaloso
e boboca de Avary acabará se tornando mais próximo
do próprio Oliver Stone do que para o de seu
amigo Tarantino, isto sem entrar no fato de que Avary
não tem nem 1% das noções de como
trabalhar a referência na forma de um filme.
Talvez a tendência mais comum neste período
era o de se tentar soar como um fragmento solto de Pulp
Fiction; assim se seguiram filmes onde Tarantino
de fato trabalhou (Eles Matam e Nós Limpamos),
ou onde servia como mentor para se criar submundos particulares,
gerando as obras mais inacreditáveis tanto em
cara-de-pau (Coisas Para Fazer em Denver Quando Você
Está Morto, de Gary Fleder) quanto em ser
puramente ofensivo (Últimas Conseqüências,
de Kiefer Sutherland). Fica perdido em meio a esse hype
sem fim do nome de Tarantino não só seus
belos filmes, mas também um exemplo forte do
que viria a ser hoje um dos cineastas contemporâneos
americanos mais interessantes, Um Drink no Inferno
de Robert Rodriguez, onde já mostrava diversas
de suas idéias aflorando, mas também onde
Tarantino empresta produção, roteiro e
talvez seu papel como ator de maior destaque. Não
há então como ser tão duro com
a mídia por em plena febre Tarantino ter ligado
tão fortemente o nome do cineasta ao trabalho
de Rodriguez, mas já é mais do que hora
para se notar que trata-se de mais uma brincadeira de
Rodriguez. E das boas.
Um dos pontos mais interessantes em notar a amizade
de Rodriguez e Tarantino é ver a proximidade
que os cineastas possuem sem influir diretamente no
estilo direto um do outro. Rodriguez tal qual Tarantino
é um habilidoso arquiteto do cinema; grande parte
de seu cinema se dá enquanto uma amostra de como
se mexer com signos e formas. Embora de uma forma mais
pessoal e própria, Tarantino faz trabalho muito
semelhante em seus filmes. Também são
cineastas essencialmente cinéfilos que não
temem se expor como tal, daí notar em Um Drink
no Inferno uma união tão forte entre
a dupla. Temos lá uma família com o sobrenome
Fuller, um jovem com uma camiseta com os dizeres "Precinct
13", e ainda a presença em cena de Fred
Williamson (um dos grandes astros da blaxploitation)
e Tom Savini (mago do efeito de maquiagem, mais famoso
pelo trabalho na trilogia dos mortos de George Romero).
Assalto à 13ª DP de Carpenter vai ainda
emprestar também diálogos inteiros ao
filme, assim como Onde Começa o Inferno
de Hawks, Meu Ódio Sera Sua Herança
de Peckinpah, entre outros filmes transformados em referências
pela obra. É importante não resumir o
filme em um mero caldeirão cinematográfico,
mas a proximidade de dois cineastas autenticamente cinéfilos
decididos a criar um filme que irá brincar com
o cinema, não deixa de ser algo a ser sempre
notado. É importante ver também que de
todos estes projetos envolvendo o nome de Quentin Tarantino,
este foi talvez de longe o em qual mais se aproximou
pessoalmente, muito mais do que apenas profissionalmente.
Nos agradecimentos dos créditos finais de sua
última obra-prima, Kill Bill Vol. 1, Tarantino
encabeça a lista com o nome de Rodriguez e ainda
adiciona um "Meu Irmão". Impossível
não compreender.
Outro momento que Tarantino divide com Rodriguez é
o longa em episódios O Grande Hotel. Partindo
da idéia de unir quatro cineastas premiados no
festival de Sundance, é um filme de resultado
bastante equivocado, onde teremos o curioso único
tiro em falso de Tarantino enquanto cineasta. De Rodriguez
virá o único episódio realmente
interessante do longa, mas não deixará
de ser interessante ver como os outros episódios
querem de certa forma ser "pulp" como Tarantino
muito mais do que o próprio cineasta. Um efeito
particular que os filmes do cineasta causam é
o de apropriar atores a sua obra. Diversos nomes a trabalharem
com Tarantino independente do que vieram a ter feito
antes passam a ser vistos como atores tarantinescos,
tendo sua presença ligada ao cineasta – será
então comum ver vários destes atores desfilando
nos filmes que se apropriavam do suposto estilo Tarantino.
Chris Penn, Christopher Walken, Michael Madsen, Samuel
L. Jackson, Harvey Keitel, Steve Buscemi, Tim Roth,
Eric Stoltz, seriam só alguns nomes a serem ligados
de tal forma ao trabalho do diretor. Até mesmo
os atores que não haviam trabalhado com Tarantino
acabavam sendo instruídos a terem atuações
ao estilo Tarantino de ser, acreditando ser uma forma
de se aproximar do cineasta.
É curioso ver que todos estes trabalhos citados
com qualidades muito distintas surgiram em um período
bastante específico, quando talvez houvesse um
espaço um tanto aberto no cinema americano, e
hoje são vistos sempre em menor escala e espaço
(talvez o último filme a de fato lembrar com
maior impacto a obra do cineasta seja Vamos Nessa,
que utilizava narrativa semelhante – com proposta diferente,
deve-se dizer – a de Pulp Fiction, lançado
em 1999). Boa parte destes filmes parecem ter surgido
antes de Jackie Brown, filme onde Tarantino iria
mostrar que seu cinema é muito maior do que uma
mera seqüência de regras a serem seguidas.
Não custa lembrar que os filmes escritos por
Tarantino que cessaram com Eles Matam e Nós
Limpamos surgiram todos naquele período apenas
por terem sido feitos de forma geral enquanto ele ainda
era atendente de locadora, e foram sendo filmados num
espaço curto de tempo – se há mais, Tarantino
sabe bem reservar para ele as suas idéias mais
pessoais. Se torna importante hoje, dez anos após
o fenômeno Pulp Fiction, ver o quanto o
cinema de Tarantino segue tão vivo, e quanto
as cópias baratas ou roteiros mal filmados não
parecem demonstrar mais qualquer força. Se existiram
filmes interessantes ou até mais do que isto
neste período, é inevitável notar
também que houveram diversos filmes que não
conseguem ser mais do que meras provas do quão
genial é Quentin Tarantino.
Guilherme Martins
|