ser e ter
Nicholas Philibert, Être et avoir, França, 2002

Muito se escreveu sobre Ser e Ter, tanto do filme em si como de seus efeitos, mas sem passar do caráter descritivo. Sabe-se que o professor, George Lopes, "protagonista" da narrativa centrada em uma sala de aula no interior da França, processou os produtores. Diante do sucesso inesperado de bilheteria, cobrou um cachê gigantesco (de 250 mil euros) reivindicando co-autoria por, em seu entender, ser tema e ator do relato documental. Perdeu na Justiça. Essa batalha legal poderia motivar artigos pertinentes sobre a questão do lucro com a imagem em filmes não ficionais já que pouco se discutiu a esse respeito. Já quem se dispôs a discutir as próprias imagens, indo além das costumeiras resenhas cheias de adjetivos empregados para definir a poesia das situações mostradas, tendeu a acusar o diretor por não ter feito, em última instância, o documentário que gostariam de ver na tela. Ser e Ter é uma reunião de fragmentos da relação entre um professor e seus alunos, esses em idades e estágios diferentes de escolaridade, que nos mostra um pouco do método de ensino e de quem são as crianças. Nada mais que isso está lá. Nada mais que isso é pretendido, se nos basearmos apenas em evidências.

A maior pretensão do filme, pode-se dizer pelo que se pode ver, é cumprir um desafio proposto: buscar a intimidade e a autenticidade daqueles personagens em frente à câmera, tentando transformar o invasivo aparato cinematográfico em um olho que, mesmo inteferindo no ambiente e na atitude das pessoas, consegue captar alguns instantes de verdade como se nem estivesse ali, e não porque está ali, como são os casos dos filmes de Eduardo Coutinho e Jean Rouch, para ficarmos em dois exemplos conhecidos. Pouco se escreveu sobre esse aspecto para, em vez de analisar as imagens pelo que elas nos permitem ver, cobrar do resultado um painel sobre o sistema educacional francês, acusando o diretor Nicholas Philibert de ter, ao optar por aquela escola específica, maquiado imperfeições da realidade com uma realidade postiça - como se a escola e as situações filmadas não existissem, ao menos durante a filmagem. Houve até quem atribuísse ao filme um saudosismo de uma França às antigas que foi associado ao dos eleitores do símbolo da direita contemporânea Jean Marie Le Pen.

Nada nas imagens oferece indício de que a escola filmada seja um sintoma de estrutura, ou um exemplo de um sistema a ser seguido, limitando-se a ser um cenário com rico potencial em particularidades (gente de cidade pequena, um professor exigente com método rigoroso de formação cívica-moral, relações familiares que, de alguma forma, são refletidas na sala de aula). Particularidades que, filmadas e editadas, dão cinema - e impõem dificuldades para se fazer o caminho do real para sua narração audio-visual. É nesse processo de buscar o íntimo de um lugar público que reside as facetas mais interessantes de Ser e Ter, e também na forma com que o diretor expõe as crianças (exposição gerada pelo professor) e as mostra ocasionalmente em suas fragilidades, e constrangidas. Uma é exibida às lágrimas, outra não abre a boca e ganha o rótulo de problemática, há ainda um pequeno encrenqueiro, também reduzido a esse estigma.

Percebemos em alguns momentos como a câmera pode coagir e inibir reações. Também vemos como o professor pode ser excessivo em sua missão de mediador da comunidade mirim. Ele assume o papel de autoridade que deve criar limites, dar o exemplo e expor as regras da vida em sociedade, com as obrigações e proibições decorrentes, mas limita o espaço de construção de relações das crianças. Na função de Estado em micro-esfera, ele media uma briga entre dois alunos - interroga-os, tenta extrair deles confissões, como se estivesse em uma dupla instância, a do banco dos réus e do divã, sem lhes permitir resolver o caso entre eles. No fim do interrogatíorio psicanalítico, é impossível não colar na imagem dos dois uma tarja de reprovação, uma condenação de atitudes, sempre pelo viés do professor-Estado: a moral é dele, ele é a verdade, sem relativizações. Sua onipresença parece criar uma fragilidade nos alunos, pois, às vésperas de os estudantes fazerem o exame para o 2º grau, o mestre alerta para o fato de não poder mais protegê-los. Ou seja: ele não necessariamente os preparou para caminhar com as próprias pernas, pelo contrário. Tudo isso impõe um questionamento ético sobre como veicular imagens autorizadas sem criar fissuras nas imagens das pessoas. Não há mandamentos definitivos a esse respeito, até porque a ética da imagem, como toda ética, muda de acordo com as circunstâncias históricas. E justamente por isso Ser e Ter oferece um bom material para reflexão.

Mas onde está a câmera em Ser e Ter? Qual o acordo da equipe com as crianças e com o professor? Eles teriam sido orientados a não olhar para a câmera, a ignorar sua presença, de modo a encenarem uma espontaneidade? Ou teriam naturalizado a interferência da equipe e conseguido colocar-se em cena sem interpretar? Essas questões são inevitáveis quando se vê os primeiros momentos. Temos cortes e decupagem adequados à uma ficção, e nada nos informa, nos letreiros ou nas imagens, que não seja. Apenas em um dado momento, quando um menino olha para a câmera, e em um outra passagem, quando o professor é entrevistado, percebemos um ruído no ficcional. Nas demais sequências, apenas vemos professor e alunos, em sua convivência cotidiana, filmados por uma câmera que, na maior parte do tempo, busca se omitir, ou, quando se faz notar, procura manter-se discreta. Se mantivermos o olhar rigoroso na procura do ponto onde se situa o operador, perceberemos a imobilidade dessa câmera em um espaço determinado, provavelmente para não interferir demais na sala de aula onde está. As alterações limitam-se a aproximações das pessoas (via mudanças na lente), no máximo mudanças de enquadramentos, mas sem tirar o tripé do lugar. Cada sequência tem a câmera situada em único ponto. Essa opção privilegia uma busca pela transparência, por uma verdade de uns tantos instantes registrados, pela busca de momentos nos quais a câmera não seja um personagem, um agente de ações, mas apenas um olhar observador. É inevitável a filiação ao cinema direto americano. No entanto, em pelo menos três ou quatro momentos, o olhar observador, por incapacidade de assim se manter como tal, torna-se olhar provocador. Isso acontece quando se filma os pais ajudando os filhos com as lições, situações essas artificiais e certamente pouco corriqueiras. A entrada na intimidade resulta menos íntima que as imagens registradas em um espaço público. Vemos também essa percepção da câmera quando um garoto explicita sua construção de postura, justamente por estar consciente de sua condição de objeto observado e por se exibir para ser visto como deseja.

Ser e Ter desenvolve-se nessa via dupla da omissão e da percepção da câmera. Mas faz de tudo para criar um universo cinematográfico, que não necessariamente corresponde aos eventos fora da tela, procurando estabeceler-se sobretudo como narrativa. Vemos como algumas reações dos alunos foram filmadas em um momento diferente daquele em que estão sendo exibidos e com outra sincronia em relação aos sons das cenas. Tomemos um exemplo: há trechos em que, enquanto ouvimos o professor ditando um texto, vemos a imagem dele, logo depois o olhar de alguns alunos, mas as cenas dificilmente foram filmados em sequência, ou simultaneamente, sendo fruto de uma continuidade temporal obtida na montagem, não na captação. Ser e Ter, mais que documento, é um filme. E só assim pode ser visto, dentro de suas articulações, não de suas ausências, muito menos de metas não traçadas.


Cléber Eduardo