Muito
se escreveu sobre Ser e Ter, tanto do filme em
si como de seus efeitos, mas sem passar do caráter
descritivo. Sabe-se que o professor, George Lopes, "protagonista"
da narrativa centrada em uma sala de aula no interior
da França, processou os produtores. Diante do
sucesso inesperado de bilheteria, cobrou um cachê
gigantesco (de 250 mil euros) reivindicando co-autoria
por, em seu entender, ser tema e ator do relato documental.
Perdeu na Justiça. Essa batalha legal poderia
motivar artigos pertinentes sobre a questão do
lucro com a imagem em filmes não ficionais já
que pouco se discutiu a esse respeito. Já quem
se dispôs a discutir as próprias imagens,
indo além das costumeiras resenhas cheias de
adjetivos empregados para definir a poesia das situações
mostradas, tendeu a acusar o diretor por não
ter feito, em última instância, o documentário
que gostariam de ver na tela. Ser e Ter é
uma reunião de fragmentos da relação
entre um professor e seus alunos, esses em idades e
estágios diferentes de escolaridade, que nos
mostra um pouco do método de ensino e de quem
são as crianças. Nada mais que isso está
lá. Nada mais que isso é pretendido, se
nos basearmos apenas em evidências.
A maior pretensão do filme, pode-se dizer pelo
que se pode ver, é cumprir um desafio proposto:
buscar a intimidade e a autenticidade daqueles personagens
em frente à câmera, tentando transformar
o invasivo aparato cinematográfico em um olho
que, mesmo inteferindo no ambiente e na atitude das
pessoas, consegue captar alguns instantes de verdade
como se nem estivesse ali, e não porque está
ali, como são os casos dos filmes de Eduardo
Coutinho e Jean Rouch, para ficarmos em dois exemplos
conhecidos. Pouco se escreveu sobre esse aspecto para,
em vez de analisar as imagens pelo que elas nos permitem
ver, cobrar do resultado um painel sobre o sistema educacional
francês, acusando o diretor Nicholas Philibert
de ter, ao optar por aquela escola específica,
maquiado imperfeições da realidade com
uma realidade postiça - como se a escola e as
situações filmadas não existissem,
ao menos durante a filmagem. Houve até quem atribuísse
ao filme um saudosismo de uma França às
antigas que foi associado ao dos eleitores do símbolo
da direita contemporânea Jean Marie Le Pen.
Nada nas imagens oferece indício de que a escola
filmada seja um sintoma de estrutura, ou um exemplo
de um sistema a ser seguido, limitando-se a ser um cenário
com rico potencial em particularidades (gente de cidade
pequena, um professor exigente com método rigoroso
de formação cívica-moral, relações
familiares que, de alguma forma, são refletidas
na sala de aula). Particularidades que, filmadas e editadas,
dão cinema - e impõem dificuldades para
se fazer o caminho do real para sua narração
audio-visual. É nesse processo de buscar o íntimo
de um lugar público que reside as facetas mais
interessantes de Ser e Ter, e também na
forma com que o diretor expõe as crianças
(exposição gerada pelo professor) e as
mostra ocasionalmente em suas fragilidades, e constrangidas.
Uma é exibida às lágrimas, outra
não abre a boca e ganha o rótulo de problemática,
há ainda um pequeno encrenqueiro, também
reduzido a esse estigma.
Percebemos em alguns momentos como a câmera pode
coagir e inibir reações. Também
vemos como o professor pode ser excessivo em sua missão
de mediador da comunidade mirim. Ele assume o papel
de autoridade que deve criar limites, dar o exemplo
e expor as regras da vida em sociedade, com as obrigações
e proibições decorrentes, mas limita o
espaço de construção de relações
das crianças. Na função de Estado
em micro-esfera, ele media uma briga entre dois alunos
- interroga-os, tenta extrair deles confissões,
como se estivesse em uma dupla instância, a do
banco dos réus e do divã, sem lhes permitir
resolver o caso entre eles. No fim do interrogatíorio
psicanalítico, é impossível não
colar na imagem dos dois uma tarja de reprovação,
uma condenação de atitudes, sempre pelo
viés do professor-Estado: a moral é dele,
ele é a verdade, sem relativizações.
Sua onipresença parece criar uma fragilidade
nos alunos, pois, às vésperas de os estudantes
fazerem o exame para o 2º grau, o mestre alerta para
o fato de não poder mais protegê-los. Ou
seja: ele não necessariamente os preparou para
caminhar com as próprias pernas, pelo contrário.
Tudo isso impõe um questionamento ético
sobre como veicular imagens autorizadas sem criar fissuras
nas imagens das pessoas. Não há mandamentos
definitivos a esse respeito, até porque a ética
da imagem, como toda ética, muda de acordo com
as circunstâncias históricas. E justamente
por isso Ser e Ter oferece um bom material para
reflexão.
Mas onde está a câmera em Ser e Ter?
Qual o acordo da equipe com as crianças e com
o professor? Eles teriam sido orientados a não
olhar para a câmera, a ignorar sua presença,
de modo a encenarem uma espontaneidade? Ou teriam naturalizado
a interferência da equipe e conseguido colocar-se
em cena sem interpretar? Essas questões são
inevitáveis quando se vê os primeiros momentos.
Temos cortes e decupagem adequados à uma ficção,
e nada nos informa, nos letreiros ou nas imagens, que
não seja. Apenas em um dado momento, quando um
menino olha para a câmera, e em um outra passagem,
quando o professor é entrevistado, percebemos
um ruído no ficcional. Nas demais sequências,
apenas vemos professor e alunos, em sua convivência
cotidiana, filmados por uma câmera que, na maior
parte do tempo, busca se omitir, ou, quando se faz notar,
procura manter-se discreta. Se mantivermos o olhar rigoroso
na procura do ponto onde se situa o operador, perceberemos
a imobilidade dessa câmera em um espaço
determinado, provavelmente para não interferir
demais na sala de aula onde está. As alterações
limitam-se a aproximações das pessoas
(via mudanças na lente), no máximo mudanças
de enquadramentos, mas sem tirar o tripé do lugar.
Cada sequência tem a câmera situada em único
ponto. Essa opção privilegia uma busca
pela transparência, por uma verdade de uns tantos
instantes registrados, pela busca de momentos nos quais
a câmera não seja um personagem, um agente
de ações, mas apenas um olhar observador.
É inevitável a filiação
ao cinema direto americano. No entanto, em pelo menos
três ou quatro momentos, o olhar observador, por
incapacidade de assim se manter como tal, torna-se olhar
provocador. Isso acontece quando se filma os pais ajudando
os filhos com as lições, situações
essas artificiais e certamente pouco corriqueiras. A
entrada na intimidade resulta menos íntima que
as imagens registradas em um espaço público.
Vemos também essa percepção da
câmera quando um garoto explicita sua construção
de postura, justamente por estar consciente de sua condição
de objeto observado e por se exibir para ser visto como
deseja.
Ser e Ter desenvolve-se nessa via dupla da omissão
e da percepção da câmera. Mas faz
de tudo para criar um universo cinematográfico,
que não necessariamente corresponde aos eventos
fora da tela, procurando estabeceler-se sobretudo como
narrativa. Vemos como algumas reações
dos alunos foram filmadas em um momento diferente daquele
em que estão sendo exibidos e com outra sincronia
em relação aos sons das cenas. Tomemos
um exemplo: há trechos em que, enquanto ouvimos
o professor ditando um texto, vemos a imagem dele, logo
depois o olhar de alguns alunos, mas as cenas dificilmente
foram filmados em sequência, ou simultaneamente,
sendo fruto de uma continuidade temporal obtida na montagem,
não na captação. Ser e Ter,
mais que documento, é um filme. E só assim
pode ser visto, dentro de suas articulações,
não de suas ausências, muito menos de metas
não traçadas.
Cléber Eduardo
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