O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-retratos)
Paulo Sacramento, Brasil, 2003

Sem sua seqüência inicial e sua seqüência final, O Prisioneiro da Grade de Ferro seria um dos mais importantes documentários já feitos no Brasil e um dos filmes mais impressionantes sobre seu tema, em qualquer lugar ou época. Com estas duas seqüências que inauguram e fecham seu discurso, o filme passa desta categoria para a de obra-prima indiscutível.

No início, uma imagem aparentemente abstrata vai se revelando uma imensa nuvem de fumaça cor de terra e branca. Esta nuvem se movimenta de forma estranha, e demoramos a entender que a imagem está sendo projetada de trás para a frente. A cada segundo e movimento, aquilo que vemos se torna mais e mais claro: a implosão de um prédio é mostrada no sentido inverso. E aí, com a magia audiovisual que só o cinema poderia captar, ressurge em nossa frente o complexo penitenciário do Carandiru: das cinzas da sua recente implosão, ele volta à existência. Afora o fascínio visual verdadeiro deste momento, muito mais importante é seu significado: implodido (como se isso fosse solução de algum problema), o Carandiru ressurge como uma assombração. Há algo de sobrenatural naquele movimento às avessas, onde do nada surge um prédio que assombra não só a memória brasileira (pelos eventos lá acontecidos), mas cujo significado, como veremos no filme que se segue, é muito maior do que um simples massacre (se existe isso) ou do que um simples amontoado de cimento e tijolos. O Carandiru ter ido ao chão, nos diz a seqüência e o filme, nada faz para resolver ou acabar com os problemas que ele sempre representou. Pelo contrário, só serve para tentar esconder (numa nuvem de fumaça) a realidade que ainda está nos presídios e na organização social-política de todo o país. O movimento essencial deste filme será (e daí a importância desta seqüência inicial) trazer de volta este mundo que se pretende esconder, como o prédio ressurgindo das suas cinzas.

Voltaremos à seqüência final e sua ligação com este início, mas antes é preciso falar do tal filme impressionante que está no meio deste início e deste fim. O maior dos méritos do Paulo Sacramento documentarista, que este filme revela, é sua curiosidade e humildade imensas. Mais importante do que ele é o seu filme, e muito mais ainda, seus objetos de olhar. Tão importantes, mas tão importantes, que de objeto de olhar eles viram co-realizadores do filme. Quando Sacramento (e sua equipe) opta por um formato de realização onde, através de workshops com os detentos, estes aprendem a manejar o equipamento digital e a documentar eles mesmos a sua realidade, a importância deste procedimento não é "humanitária" nem muito menos oportunista. Há por trás deste movimento um reconhecimento do documentarista dos limites impostos ao seu conhecimento de um ambiente tão ao mesmo tempo particular, fechado e cheio de limites quanto é o de um presídio. A câmera "imparcial" do documentarista só poderia ir até um certo ponto, assim como sua capacidade de se relacionar com aquele ambiente, em parte por motivos práticos, e em grande parte pelo excesso de clichês já criados no jornalismo e na ficção sobre a representação deste espaço. Ao passar a câmera para os detentos, Sacramento assume suas impossibilidades. E, mais do que isso, a verdadeira importância da passagem de objetos a sujeitos daqueles homens retratados: eles devem escapar da imagem simplista de marginais tanto quanto da de coitadinhos. Eles são muito mais do que um ou do que o outro, por serem antes de tudo homens, indivíduos que dividem uma realidade comum sem que esta os torne apenas símbolos ou emblemas. Tratá-los como tal seria reproduzir os estigmas que os acompanham desde sempre, e faria muito pouco sentido para quem buscasse revelar algo de realmente nunca visto/ouvido/pensado sobre este espaço.

Mas, além deste movimento significar este reconhecimento de uma limitação, ele também possui outra característica essencial ao melhor documentarista: saber que seu tema, seu objeto, não deve estar previamente entendido ao ponto que se saiba que filme vai-se fazer ao sair de casa. A realidade é de tal modo fluida, inconstante e complexa que qualquer filme que a use como prova de tese pré-construída estará fadado ao fracasso completo ou a irrelevância. Ao entregar suas câmeras aos detentos, Sacramento faz o movimento mais difícil de um realizador contemporâneo: questiona sua própria autoria do material. Entrega a forças fora do seu controle não só a captação de imagens (que, afinal, sua montagem poderia reordenar depois), mas acima de tudo o próprio cerne de seu filme, que deixa de ser apenas seu e passa a ser muito mais do que isso. Esta idéia estaria completamente jogada no lixo se fosse Sacramento um realizador mais ingênuo (ou covarde mesmo) e resolvesse esta separação com créditos ou com uma montagem onde ficasse claro o que no filme foi filmado por quem: onde começa um trecho filmado por um detento, onde volta à documentação realizada pelo diretor e sua equipe. Mas, esta não foi a opção dele: em Prisioneiro da Grade de Ferro as imagens são parte de um mesmo todo, e quem as captou não faz a menor diferença porque todos (inclusive a equipe original, o que é impressionante) assumem a mesma voz, têm o mesmo peso, tornam-se um só. A um ponto em que o diretor de fotografia Aloísio Raulino declarou, em debate, que não consegue, ao ver o filme, saber mais o que ele filmou e o que foi filmado pelos detentos. Esta conclusão é dos fatos mais belos conseguidos pelo cinema em todos os tempos.

A quem duvidasse da validade do procedimento, como lógica e coerência de projeto, o filme responde com a simples força e ineditismo de suas imagens. O que assistimos na tela nunca antes foi mostrado por ser absolutamente impossível sem a voz e as imagens que os próprios detentos criam. Isso vai desde conversas ao pé do ouvido que só se pode ter com um colega de cela, até a revelação de momentos como a desde já antológica seqüência da noite passada numa cela, algo que de fato nunca se viu antes. O contato quase poético com vizinhas do presídio através de jogos de luz, o amanhecer através das grades, o vislumbre do distante mundo exterior, o tempo dilatado de uma rotina. Esta seqüência, já quase no fim do filme, justificaria por si só o procedimento formal adotado. Mas, está longe de ser a única imagem inédita ou assombrosa que veremos no filme: os ratos no pátio, as fotos do hospital, a revelação de armas e drogas, o abuso do guarda do muro com os detentos. Cada nova seqüência descortina aspectos de uma realidade que se mostra tão mais impossível de conter quanto se puder mostrar.

A montagem do filme tem a inteligência de escapar, por isso mesmo, tanto do denuncismo barato e fácil quanto de um esvaziamento do horror das penitenciárias. Assumindo na sua forma a multiplicidade de sensações e experiências que vemos, o filme toma para si o registro do quebra-cabeças formado por fragmentos que fazem pouco sentido em si, mas muito sentido quando vistos em conjunto (embora, neste caso, não haverá jamais uma imagem final única a ser formada). Por isso mesmo, o filme revela desde a alegria do jogo de futebol e das visitas, as realidades da prática do sexo ou religiosa, até as condições sub-humanas de celas super-lotadas e os horrores de um atendimento médico precário e insuficiente. O pagode, o rap, os facões e a pinga produzida ali dentro mesmo têm o mesmo peso, pois são todos partes de um imenso todo, e assim são tratados pela montagem: nenhum deles é privilegiado em detrimento do outro, nenhum deles é mais representativo do que seja "estar preso" do que o outro. Esconder um deles é ser faccioso, é ser desonesto com o espaço e aqueles que o habitam. Um outro trabalho que precisa ser muito destacado, aliás, é o da edição de som (além da captação deste em si, simplíssima, mas muitas vezes prodigiosa). Nas passagens entre cenas, ou quando cria pequenas montagens dentro de temas, o som do filme capta de tal forma a tapeçaria sonora que existe naquele espaço que nos sentimos ainda mais parte dele. Os sons da s TVs, dos rádios, das gritarias, da música, e mesmo o silêncio mortal. Som e montagem nos fazem transbordar pelo Carandiru, o tempo todo.

E, finalmente, voltamos ao já mencionado final do filme. Após reconstruir com tal ineditismo e respeito a experiência dos detentos deste fantasma de concreto, o filme passa a palavra às autoridades. Primeiro, com falas de vários ex-diretores do complexo, numa idéia realmente pouco óbvia e extremamente funcional, pois representam a voz das autoridades sim, mas de autoridades que, em primeiro lugar já não estão mais no poder; e, em segundo lugar, viveram também aquela experiência por dentro. Os depoimentos mesclam desesperança, sensação de inutilidade, e um desespero mais quieto, mas tão pungente quanto o dos detentos. O sentimento onipresente de que há algo de completamente errado num modelo que prega a correção ou a solução quando é, obviamente, muito mais causa e distorção. E, finalmente, a palavra das autoridades atuais, encarnadas no governador de São Paulo que, ao contrário da implosão inicial, discursa na abertura de uma nova cadeia, de uma nova penitenciária. Seu orgulho ao falar dos números de vagas para detentos criados em seu governo, como se falasse de construção de estradas ou escolas, é da natureza mais abjeta do jogo das autoridades, em completo desacordo e habitante um universo distinto de todo da realidade, que acabamos de presenciar. Ali importa menos que seja Alckmin ou qualquer outro nome: o que vemos é a completa distância que separa quem decide de quem sofre as conseqüências. Aquele sorriso grotesco, aquelas palmas submissas, todos contraditos pelas palavras do padre que abençoa a inauguração e lamenta o motivo de estar ali. Como o plano inicial, voltamos a ver nas palavras do governador a certeza de que o horror continua e continuará por um bom tempo. Derrubar paredes de um presídio como se o concreto fosse a causa do que ali dentro aconteceu (e acontece) é parte da mesma lógica segundo a qual número de vagas em cadeias é orgulho para governantes. Esta lógica que circunda e oprime a realidade que vimos aprisionada no filme entre estes dois momentos, e que torna O Prisioneiro da Grade de Ferro um dos mais contundentes e coerentes exemplos do discurso cinematográfico unindo forma a conteúdo e unindo cinema a realidade.


Eduardo Valente