As primeiras coisas que
se costuma mencionar quando se vai falar de O Leopardo
são: a) a frase "As coisas precisam mudar para continuar
as mesmas"; e b) o deleite visual da cena do baile,
que dura um terço do filme (45min). Não que sejam pouco
importantes: elas constituem, respectivamente, o centro
temático - a moral da história - e a cena mais plástica
que Visconti jamais fez. No entanto, nos parece que
toda a densidade do filme se esvazia se nos ativermos
apenas a esses dois aspectos fundamentais da obra. Por
alguns motivos. O primeiro é que essa famosa frase,
por mais que sintetize à perfeição o sentimento que
se depreende do desenrolar da História no filme, jamais
consegue dar conta da ambigüidade com que o príncipe
Salina observa seu próprio mundo aristocrático em decomposição
e o nascimento de um outro mundo, um mundo que ele repudia
mas que ele entende ser o único capaz de algum vigor
no futuro. Ou dos sentimentos conflitantes que logo
se tornam mudança de posição para o jovem Tancredi,
sobrinho de Salina, revolucionário aristocrata que deverá
vestir a capa do conservadorismo para instituir um novo
regime (mas que ele sabe que de novo não tem nada).
Ou então da beleza resplandecente de Claudia Cardinale,
uma beleza que não assume apenas um aspecto decorativo
mas impregna o filme de um olhar completamente diferente
sobre a burguesia nascente. Voltaremos a isso.
O Leopardo é menos um filme "sobre a História"
do que sobre a posição em que se está dentro da História.
A diferença entre os dois termos parece a princípio
pequena, mas ela ganha uma dimensão profunda se imaginamos
que o protagonista do filme não é propriamente um agente
da História, mas apenas um espectador, como nós, do
desenrolar de um processo que é maior do que qualquer
indivíduo sozinho (e que no entanto é desempenhado por
indivíduos, de parte a parte). É a primeira vez num
filme de Visconti em que o protagonista é um herói passivo,
e não um agente da história, sabedor de seu lugar ultrapassado
dentro de um jogo de forças numa dada sociedade.
Daí o fato de O Leopardo ocupar um lugar muito
especial dentro da carreira de Luchino Visconti. Pela
primeira vez, o realizador de La Terra Trema
e Sedução da Carne põe a nu seu decadentismo,
tanto através da admiração por uma época que já não
existe mais quanto por reconhecer que já não entende
mais os tempos que estão por vir. O decadentismo de
Visconti, no entanto, não funciona para instalar sua
obra numa torre de marfim de uma arte grandiosa que
se fecha sobre si mesma; a operação que faz de O
Leopardo um filme tão inacreditável é colocar em
questão essa relação decadente com o mundo, e perspectivá-la
através da História. Não à toa, o filme foi recebido
de forma bastante controversa pelos admiradores dos
filmes anteriores de Visconti. Guido Aristarco, pensador
lukacsiano de cinema que via nele seu grande herói crítico
(o tipo, o herói positivo de Rocco ou de Sedução
da Carne), "não escondeu seu embaraço", como
escreveu Jean-André Fieschi na crítica para os Cahiers
du Cinéma (nº146, agosto de 1963). O marxista aristocrata
que era Visconti pela primeira vez expunha à flor da
pele suas contradições mais íntimas, que infelizmente
(para alguns) não se prestavam a uma captura teórica
fácil pelos cantores da revolução. Ao contrário: mantendo
até o fim seu credo marxista, o autor de O Leopardo
revela a economia como fio lógico e a luta de classes
como motor da História, mas não pinta as cores das classes
sociais e da revolução de acordo com o receituário do
realismo socialista. Pior ainda: sendo um aristocrata,
Visconti coloca sua própria posição em cheque, e institui
a crise na ideologia, no código de valores do filme.
Protagonista, o príncipe Salina - que naturalmente espelha
o diretor do filme - é o filtro, a unidade de sentido
através do qual o espectador vê o mundo, mas não é possível
fazer isso sem antes se colocar a si mesmo em crise.
Pessimismo no reconhecimento de sua posição, pessimismo
acerca do resultado das revoluções, mas acima de tudo
pessimismo com o próprio motor da História, que só nos
entrega o mesmo disfarçado de outro ("As coisas precisam
mudar..."): pensamento que se cristaliza em Visconti
nessa época, mas que também está inscrito num momento
específico, o da primeira leva de intelectuais marxistas
a desligarem-se da ideologia dos partidos comunistas
europeus e do alinhamento automático a Moscou (e, logo,
de uma estética condizente com esta visão de mundo).
Filme reacionário, pois, O Leopardo? Aos olhos
dos militantes do Partido na época, sem dúvida. Mas
e hoje? Hoje, Hoje, e como regra geral, O Leopardo
é antes um filme que encontra sua revolução (pessoal
e coletiva) ao criar um ponto de vista sobre o reacionarismo.
Não que o decadentismo seja uma posição possivelmente
renovadora: mas a inserção desse decadentismo dentro
da História nos dá um novo ponto de vista sobre esse
sentimento, nos desobrigando de encará-lo como a única
solução possível (o que geralmente transforma o decadentismo
numa coisa bastante pestilenta), mesmo que seja para
o diretor (por falta de outra posição na qual se encaixar).
Quando dizíamos que a cena do baile, mais do que cumprir
apenas um gozo visual, é central para o conflito de
gerações e de classes que há no filme, isso diz respeito
acima de tudo na forma como o príncipe Salina observa
as novas gerações. As jovens aristocratas, sempre filtradas
para o espectador pelo olhar do príncipe, não passam
de crianças em pele de mulheres, fúteis, desengonçadas
e desinteressantes. Em compensação, Claudia Cardinale,
que representa a ascensão da burguesia sem decôro ao
poder, é a mais bela presença feminina a jamais aparecer
em tela de cinema. É a ela que Burt Lancaster concede
a dança da noite, a atitude mais nobre a tomar (e um
aristocrata é antes de tudo um elegante) sendo a de
reconhecer que o tempo passa e que é preciso dar lugar
ao novo, mesmo que isso signifique sua própria morte.
Talvez apenas em All That Jazz de Bob Fosse a
morte seja caracterizada de forma tão honrada, como
o reconhecimento de um estado ao qual, cedo ou tarde,
todos nós acedemos. Em O Leopardo, porém, essa
morte é tanto individual quanto coletiva. Nunca um caminhar
para longe do plano exalou tanto ar fúnebre. Morrer,
mas morrer cumprindo sua função revolucionária, que
é a de dar lugar ao novo. O show deve continuar.
Ruy Gardnier
Citações:
"Sempre me trataram como decadente. Tenho da decadência
uma opinião bastante favorável. Estou imbuído dessa
decadência."
"Não creio que se possam separar os elementos histórico-ideológicos
dos elementos humanos. O problema da sua unificação
na obra de arte é o problema maior do realismo, um problema
que me obceca. Várias vezes fui censurado por tê-lo
resolvido de uma forma puramente voluntarista e abertamente
didática. É possível que haja algo de verdade nesta
crítica, mas não é razão para eu abandonar a minha busca:
em O Leopardo julgo ter feito algum progresso.
Os elementos histórico-políticos não prevalecem sobre
os demais: correm nas veias dos personagens como uma
parte essencial da sua seiva vital; em algumas manifestam-se
claramente; em outras encontram-se apenas no estado
de sedimentos opacos, ou limitam-se a aparecer e desaparecer
muito rapidamente. É inútil procurar no meu filme essa
oposição cética e negativa entre sentimentos individuais
e paixões coletivas, entre impulsos irracionais do coração
e movimentos reais da História. Em suma, entre esperança
e desespero."
AMIGO VISCONTI (no dia de sua morte)
"Compreendeu a História
Contraditória da matéria
Mas não incendiou
A solidão da Ópera Cósmica"
Glauber Rocha
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