Há pelo menos uma
sequência problemática em Elefante.
Não pela ação exibida nos planos,
tampouco pela localização deles na estrutrura
narrativa, mas por sugerir interpretações
equivocadas. E ali há potencial para isso. Nesta
passagem específica do filme, um dos dois jovens
assassinos, único personagem mostrado em seu
ambiente familiar, prapara-se para tomar banho. É
um ritual que antecede o massacre. Só assim poder
ser entendida a decisão de se banhar antes de
ir para o matar e morrer. Segundos após entrar
no box, seu comparsa o acompanha. Segue-se um diálogo
em que, conscientes da morte iminente, revelam nunca
terem beijado. Beijam-se. Esse trecho curto suscita
desconfianças, rapidamente tomadas como certezas
e diagnósticos, sobre a relação
entre o crime e o homossexualismo. Pura fumaça.
Não se pode acusar Gus Van Sant de homofobia,
como os mais apressados saíram a dizer e a escrever,
nem se ver na suposta homossexualidade uma explicação
para, seguindo o clichê, entender a reação
da dupla pela violência a partir da, como também
já se escreveu, sensiblidade mais aguçada
a um sistema tirânico no qual não são
aceitos. Sensibilidade aguçada, seguindo esse
pensamento, pela homossexualidade, e não aceitação
por conta da mesma razão. Tudo isso só
pode ser encontrado fora do filme, mas não na
sequência em questão.
Primeiro porque a própria cena deixa claro que
o beijo só acontece por se tratar de uma iniciação
na despedida. Beijam porque vão morrer logo adiante
e querem experimentar uma sensação desconhecida.
Segundo porque, na estrutura do filme, a relação
de causa-efeito, à qual muitos têm insistido
em se apegar, é invertida de modo que, pela montagem,
torna-se uma relação de efeito-causa.
A imagem imediatamente anterior à sequência
do banho é aquela em que uma das alunas, trabalhando
na biblioteca da escola, olha para a frente e vê
um ou os dois assassinos. Embora não tenhamos
seu ponto de vista subjetivo, portanto não os
vejamos como ela, sabemos da sua visão pelo barulho
da arma destravada. É a primeira informação
na organização do filme sobre o massacre:
o ruído da arma. Logo se conclui que, na cena
seguinte, a do banho, veremos o efeito dessa causa.
Não é a homossexualidade que está
vinculada ao massacre, mas o massacre que determina
o instante homossexual. Em suma: a consciência
da morte determina uma última revelação
e descoberta de vida.
As freqüentes citações dessa passagem
talvez sejam fruto de uma necessidade de buscar sinais
capazes de explicar a atitude da dupla. O próprio
filme alimenta essas pistas, mas também as esvazia
a seguir. Vemos uns tantos alunos perambulando na escola
com um traço em comum: a solidão, o deslocamento,
a falta de comunicação. Cada um dos jovens
mostrados conversa quase nada com outros. Os grupos
de integração resumem-se a um casal e
três patricinhas consumistas e anoréxicas,
mas mesmo esses só dão ouvidos e palavras
entre si. Os demais estão quase sempre sozinhos,
nada sabemos deles. Só vemos suas ações,
sua locomoção por corredores. Pelo menos
dois deles são fragilizados pelo meio onde vivem
- um rapaz pelo pai bêbado e pelo diretor intransigente,
uma moça pelas colegas que desaprovam sua aparência
fora do padrão. Um dos assassinos também
é vítima da opressão de colegas
de classe, alvo de bolinhas de papel. A escola não
é o lugar mais saudável do mundo, ok,
mas só isso não produz assassinos. Caso
contrário, outros atirariam. Encarar o crime
como resultado do ambiente escolar, por sua vez símbolo
da sociedade americana, é encontrar explicações
que as imagens não dão. Pode-se alegar
que, nas frases do outro rapaz a uma autoridade da escola,
antes de matá-lo, esteja a razão de tudo:
reação à bala a um sistema repressor.
Há sim um ranço sociológico na
boca do personagem: "Há outros de nós
por aí", diz. "Isso é para você
aprender a não tratar mais ninguém como
nos tratou". Mas essa é a conclusão
do rapaz naquele momento. Não a do filme. E não
sabemos que tratamento foi esse, não dá
para culpabilizar ninguém a partir do trecho.
Se há um diferencial de tratamento em relação
à violência e à degradação
dos adolescentes americanos, questão frequente
nos últimos anos, está na relação
deles com os adultos. Nada vemos de desabonador na ação
do diretor, a não ser sua expressão autoritária,
de quem pega no pé de aluno por chegar atrasado
na escola. Isso não faz dele um monstro ou um
tirano, mas uma autoridade disciplinadora dentro de
convenções dadas. Seriam as convenções
as culpadas? Mas essas são necessárias
para qualquer organização social e não
vemos nada de exagerado nas imagens de Elefante.
Outros funcionários da escola também não
ganham representações desabonadoras em
suas rápidas aparições. E os pais
de um dos assassinos, em uma sequência passada
na cozinha, durante um lanche, nem têm seus rostos
mostrados pela câmera, caracterizam-se apenas
por ações e palavras sobre as quais nenhum
julgamento é possível. Essa postura de
distanciamento e imparcialidade na relalção
entre adultos e adolescentes é radicalmente oposta
à de Larry Clark em Bully e Ken Park,
assim como da adotada por Catherine Hardwick em Aos
13. Nesses filmes, adultos são responsabilizados,
em maior ou menor grau, pelas enfermidades juvenis.
Ou têm presença excessiva na vida dos filhos,
via repressão, ou são completamente ausentes
e liberais. Em Elefante, o pai bêbado tem
um filho que, apesar de cansado, das lágrimas,
é caricatura de responsabilidade. A relação
pai problemático-filho degenerado é desfeita.
Há quem veja a falta de imagem dos rostos dos
pais em Elefante como símbolo dessa ausência
da família. Não há nada no filme
que possa levar a essa conclusão. O procedimento
talvez seja mais fácil de ser entendido como
um recurso do diretor para não incorrer em uma
visão estereotipada dos pais. Porque sendo um
filme que se aproxima dos personagens, em especial dos
assassinos, mas ao mesmo tempo nada revela sobre eles,
limitando-se a mostrá-los, qualquer informação
sobre a dupla tende a, para quem vê, ser encarada
como sintoma de uma doença. Van Sant nega, portanto,
qualquer manipulação. Não só
em relação aos pais. Todas as situações
nas quais se encontram os dois rapazes pouco dizem sobre
eles. Um deles tanto toca piano, Beethoven, como joga
massacres eletrônicos. O outro fica fascinado
por imagens de manifestações nazistas
na tevê, mas, pelo que diz, mal sabe quem é
Hitler e em qual contexto se deu o nazismo. Apenas vê
aquilo porque está sendo exibido naquele momento.
Há um livro que um deles lê, mas não
sabemos qual, pois, seja qual for, seria encarado como
diagnóstico. Então não se mostra.
Isso não significa que, na construção
do filme, evidente na insistência em se mostrar
nuvens negras encobrindo o céu, Van Sant não
nos mostre, sem nada concluir, que há algo de
errado ali. Um desajuste. Essa impressão é
salientada por outra evidência, a do carro em
ziguezague pelas ruas, conduzido pelo pai bêbado
de um aluno, que dá início ao filme. Ou
pelos rúidos tradutores de instabilidade naquela
comunidade. Ou ainda na câmera aparentemente sem
sentido e intenção clara, mas que, no
entanto, cria uma atmosfera de mistério, pertinente
para a preparação de um acontecimento
indecifrável, ou só decifrável
por caminhos redutores, que fazem da sociologia um lazer
e não um método. A estranheza captada
por Van Sant também está no andar duro
dos rapazes, como se os gestos estivessem reprimidos
por algo exterior a eles. Mas são só imagens.
A impossibilidade de enxergar para além do que
se vê na superfície está expressa
em uma discussão, sobre homossexuais, quando
alguém pergunta se é possível ver
a alma dos gays apenas de bater o olho neles.
Gus Van Sant até cerca seu ambiente, com sua
multiplicação de pontos de vistas e com
a utilização dos planos seqüências
– captadores da alma da realidade, segundo alguns teóricos
realistas –, mas emprega esses artíficios apenas
para não revelar nada. Detalha o espaço
e os personagens sem nada nos dar além de imagens.
Gira a câmera, mostrando tudo ao redor dela, e
nada. Seu filme nos induz a só ver formas, não
razões, como o jovem fotógrafo na sala
de revelação. Ficamos no escuro para nos
relacionar com a luz e com os sons. Tentar enxergar
além disso é fazer outros filmes a partir
desse. Filmes bem menos complexos, por sinal, pois insistem
em explicar o inexplicável. E a busca de explicações
para os eventos da vida, tentando encaixá-las
em sistemas fechados, tem mais a ver com teologia, ou
com filosofia pré-moderna, mas não com
especulação artística e intelectual.
A essas interessam, sobretudo, as dúvidas e questionamentos.
Cléber Eduardo
|