Que ética e estética
andam juntos já se sabe há tempos. No
cinema, já nos tempos áureos da Cahiers
du Cinéma, debatia-se sobre a forma em relação
ao conteúdo. Jacques Rivette demonstrava, a partir
do filme Kapo, de Gillo Pontecorvo, que o uso
ou não do travelling era uma questão
moral. Não por acaso tratava-se de um filme sobre
os campos de concentração nazistas. Pela
gravidade do tema, a representação do
Holocausto vem alimentando um longo debate em torno
da questão da representação do
horror. Em 1955, Alain Resnais usa imagens do exército
americano e imagens filmadas depois da Guerra: os campos
vazios, os fornos de cremação, as montanhas
de cabelo, de roupas infantis. Seguindo os passos de
Hannah Arendt, que afirma que o horror é irrepresentável,
o documentarista Lanzmann, por exemplo, adota a postura
radical de não mostrar o extermínio dos
Judeus durante a Segunda Guerra. No documentário
Shoah, atém-se aos invisíveis rastros
que encerram os sítios onde se deram os massacres
e à terrível descrição feita
pelos sobreviventes. O mais recente exemplo talvez seja
S-21 de Rithy Panh. Para contar a máquina
de extermínio que foi o regime khmer vermelho,
o cineasta cambojano escolhe reunir vítimas e
algozes num antigo centro de detenção
e reconstituir com precisão o que se passava
aí.
Não raro, a ficção encontra dificuldades
em abordar este tipo de tema. Filmes como A Lista
de Schindler ou A Vida É Bela mostram-se
extremamente problemáticos nas suas escolhas
estéticas. Isso porque o que está em causa
ao se representar momentos dolorosos da história
da humanidade é a noção de espetáculo.
Uma postura ética dificilmente pode conciliar
o fascínio exercido pelo espetacular e a conseqüente
reificação do sofrimento. Em Salò
ou os 120 Dias de Sodoma, Pasolini resolve a questão
abordando frontalmente a representação
do horror, propondo uma mise-en-scène
distanciada, quase clínica, indo às raias
do insustentável. Ao propor uma reconstituição
do massacre no colégio de Columbine, Elefante
confronta-se à mesma questão: como representá-lo
sem transformá-lo num espetáculo. Questão
talvez ainda mais crucial quando se faz cinema na pátria
de Hollywood. "Vai querer tirar foto da gente nus?",
pergunta um adolescente logo no início do filme.
Ao que, Elias, o jovem fotógrafo, responde: "Não
é o meu gênero". A escolha de Gus
Van Sant é ética, e nesse sentido essencialmente
política. Todo o dispositivo de Elefante
foi cuidadosamente pensado para lutar contra qualquer
tentação de sucumbir ao espetáculo,
seja ele o da identificação do espectador
com o que vê por meio do patético ou o
do entretenimento por meio do fascínio pela violência.
Vejamos então.
A IMAGEM
Elefante é talvez o único, ou ao
menos um dos poucos filmes recentes a adotar um formato
de imagem quase quadrado, o 1:37. Em vias de extinção,
este formato contrapõe-se ao panorâmico
e hegemônico cinemascope, formato padrão
do cinema hollywoodiano. Uma escolha como essa é
obviamente tudo, menos casual. Coloca o espectador numa
relação com a imagem diferente da fruição
voyeurista, uma vez que não corresponde ao formato
associado a esta fruição. Mas apenas isso
não bastaria. Junto com o formato deve-se ressaltar
a escolha de uma objetiva que se aproxima do olhar humano.
O uso de uma grande angular, como em filmes de Orson
Welles, por exemplo, teria permitido um campo maior
de visão e uma profundidade de campo aumentada.
Uma teleobjetiva teria permitido buscar objetos distantes,
excluindo do foco o ambiente em torno. O cineasta não
atribui à câmera tais poderes. A escolha
de Van Sant nos coloca diante de um olhar que se quer
"natural", humano. A câmera na altura
da cabeça dos personagens nos coloca em posição
de igualdade com eles. O uso de uma luz discreta, também
natural, reforça o despojamento do dispositivo.
A imagem está aí não para seduzir
(o poder do espetáculo), mas para ser vista sem
artifícios.
O SOM
O papel do som é fundamental no cinema hollywoodiano.
Veículo privilegiado da emoção,
o som é trabalhado em função desta,
com destaque para o uso da música. Acessório
incontornável da construção dramática
tradicional, a música está presente nas
cenas de ação ou de emoção.
Com uma coloração típica, associa-se
inconscientemente a sentimentos de amor, medo etc. Em
Elefante, a trilha sonora passa ao largo desse
estereótipo. O filme é mergulhado num
trabalho plástico, de sons harmoniosos e ruídos,
próximo da música concreta e quase que
imperceptível. Muito mais presentes estão
os sons do quotidiano: ruídos de pássaros,
vozes, passos, aumentados pelo eco dos corredores da
escola. Os tiros soam secos, quase um pipocar de bomba
de festa junina (quando começa o massacre, muitos
pensam que alunos estão brincando com fogos),
bem longe do estampido exagerado e surreal que a ficção
hollywoodiana instaurou como convenção
para as armas de fogo.
O TEMPO
Com uma montagem minimalista, Elefante opta por
seguir cada personagem praticamente em tempo contínuo
pouco antes da tragédia. Acompanhamos vários
personagens durante os minutos que antecedem o massacre,
um após o outro. Seguimo-nos corredores adentro
em longos e sinuosos travellings de um ponto a outro
da escola. Os planos são longos, estirados ao
máximo, sua duração vai muito além
do limite da eficiência narrativa. Ao passarmos
de um personagem para outro, nos deparamos com situações
já apresentadas, vistas sob outro ponto de vista
(a chegada dos assassinos no colégio, a fotografia
no corredor, a chegada na biblioteca). A construção
narrativa não aponta para um ápice de
tensão e o seu desenlace, o massacre. Aponta
para um adensamento progressivo da sensação
de temporalidade, para um aqui e agora que parece o
correlato de uma imagem despojada a se querer quase
documental.
Esse correr do tempo, metaforizado nas nuvens atravessando
o céu, materializa-se nos percursos repetidos
nos longos corredores da escola.
OS PERSONAGENS
A maioria dos personagens apresenta sinais diversos
de mal-estar tipicamente adolescente. Um dos assassinos,
vítima de uma brincadeira de mau gosto, parece
servir de vítima privilegiada da turma. Três
patricinhas preocupadas com rapazes e shopping sofrem
de anorexia. Um garoto tem de ser o pai de seu próprio
pai alcoólatra. Uma menina feia e complexada
faz tudo para esconder seu corpo. A adolescência
é retratada como um momento difícil, porém
de maneira desdramatizada. Os conflitos vividos pelos
personagens são apenas sugeridos, inseridos dentro
de uma ação contínua, inscrita
numa rotina: ir ao refeitório, voltar da ginástica,
encontrar a namorada, participar de uma discussão
de grupo. Como num filme documentário, Van Sant
nos coloca diante de comportamentos cuja motivação
não é explicitamente nem dramaticamente
articulada. Não é porque se sente humilhado
que o rapaz decide massacrar seus colegas. De uma situação
para a outra (receber uma bola de papel molhada na cara
/ sair massacrando todo o colégio com um fuzil
de assalto) há um salto grande demais e o filme
não permite que seja feito. Ao nos colocar diante
de personagens comuns em meio a atividades banais, Elefante
recusa-se mais uma vez a encenar, a dispor a ficção
de um modo espetacular. Os sentimentos, matéria-prima
de um cinema da identificação, da manipulação
afetiva da platéia, supra-sumo do entertainment,
pouco afloram e quando o fazem não são
privilegiados nem pela mise-en-scène,
nem pelo enquadramento, nem pela montagem.
A DRAMATURGIA
Em meio ao massacre, surge um novo personagem. O jovem
negro avança calmamente corredor adentro, em
meio ao corre-corre e aos ruídos de tiros. Quando
dá de cara com a mancha de sangue no chão,
não parece se assustar. Entra na classe e ajuda
silenciosamente a colega a sair pela janela. Curiosamente,
não foge. Continua seu caminho em direção
ao pipocar que se aproxima de nós. Acaba por
encontrar-se atrás de um dos assassinos. Lentamente
aproxima-se, a atitude meio relaxada, quase com desleixo.
O jovem assassino vira-se, atira, o rapaz cai ao chão,
morto. No auge da intensidade dramática, surge
um herói potencial. Calmo, eficiente, silencioso.
No entanto, o filme opta por eliminar essa possibilidade.
Não há lugar para heróis em Elefante.
Não teremos um combate entre herói e vilão,
com desenlace incerto. Elimina também por tabela
e quase que completamente a figura espetacular por natureza
que é o suspense. Cai o pano. O que resta é
apenas uma tensão diante de comportamentos incompreensíveis
(tanto da parte dos assassinos como das vítimas
potenciais), diante de um desenlace conhecido e inelutável.
Numa seqüência na escola, nos encontramos
diante de um grupo de discussão. A conversa é
meio desordenada, indo em várias direções,
mas ordena-se em torno de saber se, sim ou não,
é possível identificar a sexualidade de
alguém ao avistá-lo na rua. Mais uma vez,
é colocada a questão do olhar. Mais especificamente,
a da imagem e do seu poder revelador. No filme, presenciaremos
uma série de fatos e |