Noites de Terror
Tobe Hooper, The toolbox murders, EUA, 2003

Até onde pode sobreviver um cineasta por sua pura referência enquanto mito? Ou a questão deveria ser: ele se pensar um cineasta através de sua mitologia? Dono de um estilo único – nos mais minuciosos detalhes – Tobe Hooper acabou se tornando reflexo da própria obra. Nada comercial, Hooper sempre foi um cineasta de mão eximiamente pesada, sem um mínimo de controle de si. Assim se fez, fosse nas farsas como Pague Para Entrar, Reze Para Sair, fosse no clássico dos absurdos políticos Força Sinistra ou em seu clássico-mor O Massacre da Serra Elétrica. Um autor do caos cinematográfico, Hooper se tornou tão irregular quanto difícil. Seu mito permanece ativo, especialmente na polêmica sem fim (pois nula e sem resposta) sobre sua autoria em Poltergeist. Mas poucas luzes se jogaram sobre o trabalho recente do cineasta, que aos poucos foi se acostumando por demais com as sombras. Seu antecessor à Noites de Terror, Crocodilo, um filme-clichê sobre um jacaré gigante que come adolescentes que esconderam seus ovos parecia o fim do poço, tanto da falta de criatividade, quanto da incapacidade de se tirar com algum talento (salve uma seqüência ou outra) algo do filme - um filme preguiçoso, acima de tudo. Talvez more aí a grande questão que assombra este seu novo rebento: teria Hooper demorado a deixar a preguiça de lado para notar as nuances perfeitas a sua volta?

Em alguns aspectos Noites de Terror lembra um bocado o último filme de Dario Argento a chegar no Brasil, Sleepless. Embora um cineasta bem menor que Argento, Hooper também é um cineasta de uma geração bem diferente da atual safra de cineastas do gênero, e há um tanto hostilidade quanto ao trabalho destes. O filme não por coincidência é passado em Hollywood, num hotel onde supostamente estrelas em ascensão se hospedariam (e que está caindo aos pedaços). No entanto se vai aos poucos adentrando um universo bastante particular, de uma atmosfera pesada e fotografia com tons nebulosos. O assassino de máscara, e que tem requintes de matar das formas mais variadas, será aqui um fantasma do passado. Longe de um filme derrotista sobre uma geração que não volta, Hooper vai aos poucos, através de um roteiro limitado mas eficiente, construindo um olhar otimista sobre o que ainda pode ser feito - a desconstrução daquela fortaleza.

Um casal que nada quer com cinema se muda para Hollywood, e vai morar num prédio que está atualmente caindo aos pedaços, onde estrelas em ascensão deveriam se hospedar. Ali tudo parece à um triz de se quebrar – sejam as pessoas, sejam as luzes, sejam os elevadores e máquinas. As paredes parecem feitas de papelão de tão artificiais – se escuta o que se diz em alto e bom som em toda vizinhança. Nossa protagonista, uma professora desempregada e geralmente sofrendo com a ausência de seu jovem marido, sempre em plantão médico, sofre um rápido choque com a desumanidade local. Restará a ela entender as rédeas daquele prédio que parece querer ruir e ir levando todas as pessoas que ali estão. Aos poucos, enquanto investiga as fontes originais que levaram o prédio até ali, que envolviam estranha arquitetura e o desaparecimento de apartamentos, tudo à sua volta passa a ganhar mais vida, tal qual a intensidade de seu temor.

Hooper demonstra ainda saber manipular o gênero, transformando os maiores clichês em seus grandes trunfos. A subversão não será desprovida de algum respeito pelo pré-estabelecido. Mas, se este não chega a se tornar um grande filme, permanece um mistério: teria Hooper se acostumado a preguiça? Afastado de projetos com um material mais interessante há mais de uma década, Hooper parece sempre acomodado demais. Parece estar sempre oscilando durante o filme em notar o valor forte do que realiza com momentos em que parece tocar o filme com a barriga. Alguém poderia dizer que seria uma volta de Hooper as raízes (uma protagonista feminina forte como Marilyn Burns no Massacre e Mathilda May em Força Sinistra), mas um olhar cuidadoso pode notar que estes instintos mais pessoais nunca foram abandonados pelo cineasta. Ele só se acomodou com a idéia de ser mais mito que cinema.

Não se pode passar por cima dos problemas do filme, onipresentes em muitos momentos. A fotografia que parece exagerada em mostrar-se bem trabalhada – possivelmente rebento do tradicional peso de Hooper na forma – e que, embora funcione em alguns momentos, permanece como presença incômoda em quase todo o filme. Alguns esquematismos aos quais Hooper se rende em alguns momentos – seja por limitações do roteiro, seja pela mencionada preguiça do cineasta – acabam por fazer escorregar belos momentos. Noites de Terror não deixa de ser um filme-problema. Sua mise-en-scène parece torta, se auto-questionando, buscando encontrar os problemas presentes em sua própria presença enquanto mediadora de um espaço. Sua problematização daquela dramaturgia específica, ao ir transformando seus personagens em seres humanos enquanto cresce o medo, parece em alguns momentos oscilar em ir contra o próprio autor. A idéia, no entanto, é de uma grande força.

Em um último ponto de extremo interesse, o retorno ao prédio em ruínas, a fortaleza-hollywood que não mais se sustenta. Os clichês que não mais conseguem se reciclar sem caírem no ridículo. Hooper parece cansado (ele mesmo fez alguns destes filmes na década de 90, e reconhece isso). O personagem de um velho que mora há mais de sessenta anos no prédio e parece conhecer mais dali do que qualquer outra pessoa, reflete em um belo momento: o problema não é o que vem de fora, mas o que já está lá dentro. Aquele fantasma que atravessou gerações sobrevivendo das mortes alheias entre as paredes do hotel, pode enfim ser confrontado (mesmo que isso acabe custando a vida de muita gente). Ao fim fica uma dúvida tenebrosa e pertinente, numa clara referência (relembrando o que com certeza foi um dos grandes pontos altos do cinema de horror americano em sua história) à Halloween, ao observarem a janela onde deveriam avistar o corpo estatelado do ‘fantasma’, vêem apenas o nada. O futuro permanece assombrado e duvidoso. Hooper não têm resposta para ele.


Guilherme Martins