Há menos de cinco anos,
poderia-se rir sem culpas de uma sequência final
de um filme onde um autêntico "Homo Americanus",
após vencer uma corrida de cavalo pelo deserto
batendo todos os seus concorrentes árabes (e
seus cavalos criados neste mesmo deserto), termina cavalgando
rumo ao mar iraquiano com um pôr-do-sol ao fundo
(ah, os milagres da contra-luz no pôr-do-sol),
enquanto uma enorme quantidade de nativos correm em
sua direção (em especial as crianças)
gritando efusivamente para seu novo herói: "Cowboy!
Cowboy!" Ora, diabos (que posso fazer, o espírito
do dublador de TV encarnou em mim!), até mesmo
menos de um mês atrás poderíamos
rir de uma cena onde o poderoso sheik local, incapaz
de arrancar informações de um traidor
de sua corte, prepara-se para matá-lo - no que
é interrompido pelo americano, que se dispõe
a tirar dele "a verdade", e na sequência passa
a torturá-lo com grande técnica, de fato
arrancando as informações buscadas, para
admiração dos árabes em volta.
Pois é, até dava para rir há algum
tempo do tipo de diversão quase insanamente arrogante
que Mar de Fogo insinua nas relações
americanas com o resto do mundo - especialmente o árabe.
Hoje fica mais difícil achar muita graça
deste filme, quando ele chega a público junto
com determinadas fotos e vídeos que nos têm
assolado as TVs e jornais. E não é uma
questão de "inocência tardiamente quebrada",
e sim de mal estar puro e simples. A piada não
tem mais graça, por assim dizer. Não tem
mais graça ver uma defesa de valores culturais
específicos disfarçados de "expansão
da democracia" (basta ver o que o cowboy vai fazer com
relação a costumes "atrasados" como os
lenços que cobrem os rostos de mulheres ou as
relações com as classes mais baixas),
e não tem graça porque não soa
mais como algo engraçado na sua mistura de ignorância
com cara-de-pau, e sim soa orquestrado, pensado, mal-intencionado.
A gente chega a ficar com medo de soar como um "ex-querdista",
tentando ver a presença da CIA em tudo ou demonizando
a tal da "indústria cultural" ou o "sistema",
mas é difícil evitar o engulho, o asco,
a olhada para o lado.
E como cinema mesmo Mar de Fogo não tem
nada que o redima disso tudo, que nos faça fechar
os olhos um pouquinho. Johnston, que havia feito o melhor
episódio da série Jurassic Park,
disparado (o terceiro), parece voltar aqui aos seus
dias, bem mais insossos, de Rocketeer, de Jumanji.
E, quando todo interesse cinematográfico se esvai,
nos resta olhar para a política da dramaturgia
proposta. Dramaturgia esta que não deixa de se
inserir na recente onda (Último Samurai,
Cold Mountain, etc) da reafirmação
dos valores conservadores - mesmo que seja após
a admissão de uma crise do conservadorismo clássico.
Não por acaso todo o fecho do filme lida com
o fato do protagonista ser "filho de índios",
da importância do massacre de seus antepassados
na sua formação, etc. No entanto, se faz
isso com uma intenção inequívoca:
de certa forma ao igualar este homem ao seu cavalo (um
Mustang - um cavalo livre, selvagem, de raça
mista) se afirma o valor mais "natural" da América
sonhada. Ou seja: por este novo conservadorismo, admite-se
culpa passada, mas não uma crise da imagem americana,
jamais.
Com isso, ao mesmo tempo em que se resolve uma questão
interna (não por acaso, do passado), não
se problematiza a questão externa - do presente.
Frank Hopkins (o caubói) vai ao Oriente, mas
não aprende nada lá - só ensina.
O sheik, representando o "árabe sábio",
não por acaso é fã de "comic books"
e Buffalo Bill - e termina um profundo admirador do
simplório caubói (como de resto todos
os que sobrevivem), e em suma aprende muito com ele
("western justice, partner"). Mas não o caubói:
para ele, nada há que se possa retirar, apreender
dos costumes ou da cultura oriental - no máximo
se admira a filha do sheik, mas claro que não
ao ponto de se desejá-la como interesse romântico
viável, e sim apenas para libertá-la do
bárbaro costume de usar o véu. De romântico,
aliás, só a relação do homem
com seu cavalo (talvez um título mais adequado
ao filme). Os inacreditáveis (e constantes) contraplanos
antropomórficos das reações do
cavalo indicam a razão da assexualidade do nosso
herói: ele só pode amar um legítimo
filho da América - ou "do paraíso" como
coloca "ipsis literis" o filme em determinado momento,
contrapondo o longínquo Éden do Missouri
com o inferno do deserto árabe. Dá para
achar graça?
Eduardo Valente
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