Mar de Fogo
Joe Johnston, Hidalgo, EUA, 2004

Há menos de cinco anos, poderia-se rir sem culpas de uma sequência final de um filme onde um autêntico "Homo Americanus", após vencer uma corrida de cavalo pelo deserto batendo todos os seus concorrentes árabes (e seus cavalos criados neste mesmo deserto), termina cavalgando rumo ao mar iraquiano com um pôr-do-sol ao fundo (ah, os milagres da contra-luz no pôr-do-sol), enquanto uma enorme quantidade de nativos correm em sua direção (em especial as crianças) gritando efusivamente para seu novo herói: "Cowboy! Cowboy!" Ora, diabos (que posso fazer, o espírito do dublador de TV encarnou em mim!), até mesmo menos de um mês atrás poderíamos rir de uma cena onde o poderoso sheik local, incapaz de arrancar informações de um traidor de sua corte, prepara-se para matá-lo - no que é interrompido pelo americano, que se dispõe a tirar dele "a verdade", e na sequência passa a torturá-lo com grande técnica, de fato arrancando as informações buscadas, para admiração dos árabes em volta.

Pois é, até dava para rir há algum tempo do tipo de diversão quase insanamente arrogante que Mar de Fogo insinua nas relações americanas com o resto do mundo - especialmente o árabe. Hoje fica mais difícil achar muita graça deste filme, quando ele chega a público junto com determinadas fotos e vídeos que nos têm assolado as TVs e jornais. E não é uma questão de "inocência tardiamente quebrada", e sim de mal estar puro e simples. A piada não tem mais graça, por assim dizer. Não tem mais graça ver uma defesa de valores culturais específicos disfarçados de "expansão da democracia" (basta ver o que o cowboy vai fazer com relação a costumes "atrasados" como os lenços que cobrem os rostos de mulheres ou as relações com as classes mais baixas), e não tem graça porque não soa mais como algo engraçado na sua mistura de ignorância com cara-de-pau, e sim soa orquestrado, pensado, mal-intencionado. A gente chega a ficar com medo de soar como um "ex-querdista", tentando ver a presença da CIA em tudo ou demonizando a tal da "indústria cultural" ou o "sistema", mas é difícil evitar o engulho, o asco, a olhada para o lado.

E como cinema mesmo Mar de Fogo não tem nada que o redima disso tudo, que nos faça fechar os olhos um pouquinho. Johnston, que havia feito o melhor episódio da série Jurassic Park, disparado (o terceiro), parece voltar aqui aos seus dias, bem mais insossos, de Rocketeer, de Jumanji. E, quando todo interesse cinematográfico se esvai, nos resta olhar para a política da dramaturgia proposta. Dramaturgia esta que não deixa de se inserir na recente onda (Último Samurai, Cold Mountain, etc) da reafirmação dos valores conservadores - mesmo que seja após a admissão de uma crise do conservadorismo clássico. Não por acaso todo o fecho do filme lida com o fato do protagonista ser "filho de índios", da importância do massacre de seus antepassados na sua formação, etc. No entanto, se faz isso com uma intenção inequívoca: de certa forma ao igualar este homem ao seu cavalo (um Mustang - um cavalo livre, selvagem, de raça mista) se afirma o valor mais "natural" da América sonhada. Ou seja: por este novo conservadorismo, admite-se culpa passada, mas não uma crise da imagem americana, jamais.

Com isso, ao mesmo tempo em que se resolve uma questão interna (não por acaso, do passado), não se problematiza a questão externa - do presente. Frank Hopkins (o caubói) vai ao Oriente, mas não aprende nada lá - só ensina. O sheik, representando o "árabe sábio", não por acaso é fã de "comic books" e Buffalo Bill - e termina um profundo admirador do simplório caubói (como de resto todos os que sobrevivem), e em suma aprende muito com ele ("western justice, partner"). Mas não o caubói: para ele, nada há que se possa retirar, apreender dos costumes ou da cultura oriental - no máximo se admira a filha do sheik, mas claro que não ao ponto de se desejá-la como interesse romântico viável, e sim apenas para libertá-la do bárbaro costume de usar o véu. De romântico, aliás, só a relação do homem com seu cavalo (talvez um título mais adequado ao filme). Os inacreditáveis (e constantes) contraplanos antropomórficos das reações do cavalo indicam a razão da assexualidade do nosso herói: ele só pode amar um legítimo filho da América - ou "do paraíso" como coloca "ipsis literis" o filme em determinado momento, contrapondo o longínquo Éden do Missouri com o inferno do deserto árabe. Dá para achar graça?


Eduardo Valente