MAIS QUE A VERDADE

Serão 10 tópicos e não todos. Transversais – um pouco sobre o filme, um pouco sobre o que está muito além dele. O Prisioneiro da Grade de Ferro aparece hoje como o segundo grande filme político da década (ao lado de Madame Satã e do impacto global da obra de Eduardo Coutinho) e não se resume a essas ou mais linhas de análise. Cinema físico e intelectual a um só tempo (o plano de abertura é, em si mesmo, uma obra-prima nesse sentido), dono de uma encenação que desafia as expectativas das viúvas do documentário-clássico-descritivo, e que reaviva o potencial cinematográfico do dispositivo digital já cambaleante na banalidade da "fácil produção". O Prisioneiro da Grade de Ferro é filme-marco, denso e poderoso – fruto da primeira experiência em longas de um dos principais nomes de uma novíssima geração de cineastas brasileiros: Paulo Sacramento.

Apontando para uma Verdade da imagem que está além da descrição de eventos, O Prisioneiro da Grade de Ferro é um filme de re-flexão da imagem, das formas de se constituir uma auto-imagem: é a natureza do que se mostra e do que se esconde, do que se quer encenar e do que se depreende da ausência. Num jogo de superfícies, cenários e vultos que põe em cena uma atmosfera, um pacto cinematográfico muito particular. O Prisioneiro da Grade de Ferro é o encontro de aspectos/ecos de muitas das mais ricas correntes do cinema dito não-ficcional dos últimos anos, praticando uma brilhante costura de dinâmicas e amalgamando aspectos que vão do cinema de instituições e vigília de Frederick Wiseman aos jogos ecoados do cinema-verdade de Jean Rouch (e Coutinho), através da "costura" gerada pelo dispositivo da câmera em primeira pessoa típica do gênio de Johan Van der Keuken. Esses três mestres do cinema não-ficcional, cada qual a seu modo, sobrevoam o filme de Sacramento e, mesmo que indiretamente, parecem se encontrar nas entrelinhas de uma obra-prima anunciadora de um possível novo ciclo do cinema não-ficcional brasileiro. Um ciclo (ou "movimentação") que possa ir além da quase padronização/canonização do instrumental da entrevista (decalcada de forma autômata/oportunista do estilo – genial – de Eduardo Coutinho).

Mais do que um "documentário", mais do que um filme de impacto temático, O Prisioneiro da Grade de Ferro aparece no panorama do cinema brasileiro como um exemplar raro de uma aproximação com o cinema de não-ficção e de temáticas de apelo social sem a tentativa de torná-la palatável, de fácil digestão, sem a tentativa de encontrar numa fórmula um dispositivo para a cômoda "descoberta" de objetos.

O Prisioneiro da Grade de Ferro seduz sim o espectador, mas não por trazer personagens "admiráveis" ou "figurinhas impagáveis" – nem mesmo por apostar em discorrer respostas para os dilemas do público – o filme de Sacramento seduz pela sua capacidade de construir, enquanto cinema, um gesto de amizade para com aquele espaço do presídio. Amizade no sentido daquilo que não toma o outro como objeto de compreensão nem de recusa – mas o transforma num exercício encenado de aproximação e recuo, de escuta e silêncio, que, mais do que "mostrar" a vida na cadeia, a insinua enquanto atmosfera, tom, nervura.

Vamos, brevemente, a cada ponto:

1. DOCUMENTÁRIO?

Quando Jean Rouch na década de 60 dirige Crônica de um Verão e pergunta pelas ruas a personagens avulsos "Você é feliz?", a idéia do documentário enquanto exercício do real começa a ruir de vez. Depois de Rouch e seu cinema-verdade (Coutinho é nosso mestre nessa área), o que se constitui é um cinema não ficcional renovado, reposto em seu lugar de construção, de fabulação, de gestos mais do que "eventos". Não, O Prisioneiro não é um filme sobre o presidido – é um filme através do presídio. E isso o torna tão mais profundo quanto mais consegue se deixar levar pelas superfícies de seus retratos. Documentário? Ora, está aí uma questão pouco importante. O que interessa em O Prisioneiro não é o que existe "de fato", mas o que se cria dentro dele, o "pacto":

2. PACTO E ENCENAÇÃO

Espectador, personagens e diretor se encontram na encenação do cotidiano. O Prisioneiro é sobre este pacto – sobre esse jogo de se narrar a si mesmo e da percepção do espectador de que há muito mais, muito mais para além do recorte daquela dezena de pequenas câmeras. Ao contrário de outros filmes que trabalham com múltiplas narrações, O Prisioneiro não utiliza tal recurso como forma subjetivista de querer contemplar várias versões de um mesmo objeto (ideal da imparcialidade) – não, no filme de Sacramento, essas várias versões é que são o objeto: fugidio, incompleto. Nesse sentido, a montagem, que ao mesmo tempo respeita o tempo dos personagens e os abandona em reticências, funciona como catapulta para que essa rede de afetos, afecções, corpos se coloque.

3. A CÂMERA-CORPO

Johan Van der Keuken (morto em 2001) era mestre desse cinema. "Filmar aquilo que me toca, que me apaixona" – esse era o postulado de Keuken. Dar peso, lugar, respiração, sentimento ao gesto-câmera. Ao entregar as câmeras para os prisioneiros, Sacramento faz muito mais do que alcançar lugares de difícil acesso, ou investigar a subjetividade de seus personagens. O Prisioneiro e suas pequenas câmeras são o exercício de um cinema físico, inscrito por dentro de uma afecção física do estar-ali e conjugada nos afetos e nas falas. O espaço do presídio é transformado em uma superfície rugosa, cheia de pequenas frestas, por onde se esgueiram as câmeras e seus corpos – fazendo de cada imagem um olhar direto e reverso daquilo que se vê e do que não se vê:

4. TENSÃO REFLEXIVA

Dessa forma, nada é propriamente visto no filme senão esse retrato encenado de um espaço marcado pelas limitações de paredes e muros, pela economia do tempo, pelas normas, pelos rituais. Essa defasagem entre a idéia insinuada de um labirinto de celas e a contenção dos planos médios e detalhes a que está "condenado" o filme (assim como o som ambiente é importantíssimo para indicar o que está além), faz com que toda imagem seja muito mais do que a presentificação do que se vê mas um exercício reflexivo daquilo que ela é capaz ou não de mostrar. Objeto-em-cinema: o limite do olhar como limite do gesto de observação.

5. O TEATRO INSTITUCIONAL

Essas rede de limitações, de falta, de vultos, é o que vai levar o filme a ser muito mais do que uma coleção de fragmentos. Frederick Wiseman é hoje o gênio mundial do cinema do "pôr-em-cena" as instituições norte-americanas, não porque ele seja sagaz em fazer flagrantes, mas pela forma com que sua montagem-roteiro consegue se inscrever e insinuar uma dinâmica de funcionamento das instituições como nenhum outro antes dele. O Prisioneiro da Grade de Ferro, por esse viés, parece até mesmo ultrapassar, em alguns momentos, o dispositivo de Wiseman ao conseguir não apenas delinear o teatro institucional como fazer com que seus principais atores indiquem suas deixas, falas, recortes no tempo (nesse sentido, o ranço de objetividade do cinema de Wiseman é, por fim, deixado de lado). A instituição se observa não totalizada (o filme se restringe ao olhar dos prisioneiros) mas como um lugar-cinema que vai além do olhar do indivíduo, e, dessa forma, O Prisioneiro não se entrega a uma mera celebração de individualidades, mas à reconstrução de suas tensões, uma reconstrução política-em-ato e não essencialista. O filme fala de muita coisa sem precisar querer a essência de nada – ele busca na mecânica do cotidiano (oficial e extra-oficial) o jogo da verdade que interessa: a memória e os rastros videográficos das afecções.

6. CENA E SUPERFÍCIE

Nesse sentido, o filme se dá como um jogo superficial. Ou seja: não se quer reconstituir o que estaria por trás, mas o que se coloca diante dos olhos – é importante a idéia de "cena" nesse sentido – não há um absoluto. Há um sentido posto em cena. Pois superficialidade nada tem a ver com "falsidade" – questão que para o filme é nula. Pelo contrário, não há "nada mais profundo que a máscara".

7. FICÇÃO?

Mas o que diferenciaria esse olhar de um olhar meramente ficcional? O que marcaria seu desajuste em relação a um resultado obtido por um possível (e tradicional) tratamento roteiro-atores-personagens? Repito: seu jogo cênico (sua cena-em-jogo). A forma com que o filme procura sua verossimilhança ("aparência de verdade") sem esconder as condições de sua erupção imprecisa. Onde os personagens sabem que estão falando para um público vindouro e não escondem seus olhares para as câmeras; onde um certo recorte impreciso está sempre em evidência; onde a percepção do filme como a ordenação de gestos desconexos é insinuada em seu formato avesso a um eixo. Ao contrário da grande ficção "bem-comportada", onde o tempo é afunilado em direção a um jogo de sucessões, a ficção-compartilhada de O Prisioneiro não é um oposto fantasista ao dito documentário, mas um gesto físico de imagem que não quer "iludir" o espectador levando-o pelas mãos; mas o afetar como um grande estampido (e aí, a rede do filme está curiosamente, me arrisco dizer, mais para a distensão de um Marienbad do que para a retidez de um bem-sucedido "documentário" como o Ônibus 174).

8. DAR A VOZ?...UMA FÓRMULA AFINAL?

Dar a voz ao povo para conseguir imagens mais "autênticas"? – pensam uns. Não. Não se trata desse assistencialismo barato ou de um desejo banal pela autenticidade das imagens: o que está em jogo está além do dever moral do realismo.O filme não dá a voz a quem já a tem – ele atualiza, isso sim, a voz em forma-filme. Não quer parecer estar criando um mero canal de comunicação – não: ele está criando um dispositivo positivo de criação das imagens. As câmeras geram as cenas, não o testemunham. Não são obstáculos com pretensões a espiãs. São potencializadoras de discursos e imagens. "A câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que irá motivar sua expressão". (Jean Rouch) Não há fórmula descoberta, não se trata de, agora em diante, sairmos espalhando câmeras nas mãos dos transeuntes. O Prisioneiro da Grade de Ferro não é um grande filme por essa ou aquela opção específica, mas pela forma com que todas se articulam em torno de seu objeto-premissa básico: o espaço da prisão como lugar de acúmulo de afetos, memórias e contenção do tempo através da figura de corpos isolados (cada qual com sua "câmera") mas em interação...(antológica a seqüência em que dois internos se comunicam com as vizinhas de um prédio ao lado, fora do presídio).

9. POLÍTICA

E aqui entra a política. Quando a fala dos presos é colocada não como gesto de assistência, mas como gesto de uma vertente única da verdade (e específica) que não pode ser substituída por qualquer fórmula de descrição. A fala, a imagem recortada por eles – o palco de suas vozes. Política é isso: promover o encontro de discursos e a possibilidde de trazer a publico, os fragmentos conjugados de Verdades comumente esmaecidas ou silenciadas. O Prisioneiro gera a Verdade que apresenta na medida que é, ele mesmo, instrumento de emergência discursiva para seus personagens – e aí o cinema político perde o ar de ditação de regras e soluções, descobrindo seu lugar de amplificador de questões, de fricções, de fissuras no silêncio bem comportado das instituições. (Os planos do governador de São Paulo inaugurando uma nova casa de detenção e do Carandiru sendo reerguido num rewind digital, são duas pérolas da ironia política, e marcas duras de um cinema consciente de seus atos ao conjugar, como poucos, a autoria discursiva direta com o inesperado/inusitado implícito de seu modo de produção fragmentado).

10. MAS QUEM AFINAL É DONO DO FILME? HÁ ROUBO DAS IMAGENS?

E chegamos, por fim, a um ponto de fissura: a idéia rasa de que O Prisioneiro "roubaria" a imagem de seus personagens. Fruto, antes de tudo, de uma observação maniqueísta que vê no personagem-prisioneiro um agente desprovido de capacidade de intervenção, essa leitura do filme ignorada diversos aspectos do que seja a criação de um filme e, nesse sentido, parece mais um desejo idealista de um cinema "salvador da pátria" do que uma crítica intra-linguagem. É claro que Sacramento e sua equipe dominam de forma mais ordenada que seus personagens, a construção fílmica e as formas de transformá-la em discurso. Por outro lado, eles não detém o que seus personagens detém de forma especial: a emergência do instante, um certo peso da câmera impossível de ser reproduzido. O tempo, portanto, é essencial, e algumas seqüências nos lembram obras-primas do cinema fluido de um Tsai Ming-liang ou Abbas Kiarostami (e o uso de não-atores para a construção dessa temporalidade corporal muito particular): o olhar dos prisioneiros; a noite que não passa; o limite indiscernível entre vida, teatro e desejo do por-vir; a idéia do ócio da imagem e de que, ao mesmo tempo, tudo se presentifica como um grande e negativo fora-dali – de não-ações. O tal "roubo" das imagens é idéia plena de um desejo descritivo ultrapassado, interessado em responsabilidades e crente numa autoria cinematográfica ilibada. O Prisioneiro rouba as imagens de seus personagens tanto quanto um filme ficcional roubaria os sentimentos de seus atores, a emoção de seu músico, a afecção luminosa de seu fotógrafo, a criatividade de seu roteirista, o senso de ritmo de seu montador. Se a questão é financeira – pergunto: não se fez sempre filmes em locais pobres e utilizando-se do imaginário de populações em condições pobres de sobrevivência para a criação especular/espetacular de imagens? Porque não enxergar no filme de Sacramento uma tentativa de dar uma guinada nesse jogo de representação unilateral, ao invés de querer acusá-lo de estar "invadindo" a imagem alheia? Entre os que vêem apenas o "roubo" e os que vêem um "dar-a-voz" há algo em comum: a idéia dos personagens-internos como marionetes indefesas. Fiquemos, pois, com uma terceira e mais propícia opção: o do pacto, da troca, da amizade – da tensão entre a equipe profissional de cinema e aquilo que somente os personagens-internos poderiam nos dar. Não há autoria ou sentido intocável, e, nesse sentido, O Prisioneiro da Grade de Ferro é ainda mais do que um documentário, do que um filme de autor, do que um cinema-oficina, do que um filme de individualidades, do que um filme sobre uma instituição, do que um filme-de-umbigo, do que um filme político...O Prisioneiro não se interessa pelo seu cabimento em qualquer ideal de Verdade (nem a daqueles que não acreditam nela...) – e está além disso
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Felipe Bragança

 

 




O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento