No
fim dos últimos dois filmes de Quentin Tarantino
(Jackie Brown e Kill Bill: Vol. 1), Peter
Bogdanovich é mencionado na lista de agradecimentos
dos créditos finais. Imagino que isto se dê
porque os dois são amigos que têm muito
em comum no gosto por autores americanos da velha guarda
(em especial Howard Hawks). Mas isto me fez pensar como,
e de que maneiras idiossincráticas, Jackie
Brown e Kill Bill têm em comum com
o cinema de Bogdanovich.
Enquanto o estilo dos dois diretores é raramente
compatível (ainda que Jackie Brown tenha
sido, diria eu, bastante influenciado pelos planos subjetivos
de Bogdanovich em Muito Riso e Muita Alegria
e, além disso, que alguns dos momentos mais rapsódicos
de Jackie sejam aquele em que Max, o personagem
interpretado por Robert Forster, observa e lentamente
se apaixona pela Jackie de Pam Grier), ambos são
propensos a fazer de suas musas o centro de seus respectivos
filmes, independentes e cheias de recursos, tratadas
por seus diretores como quase sagradas. Essa tendência
aparece de forma mais clara na obra de Tarantino em
Jackie Brown – filme que não deixa de
ser uma proposição de mais de duas horas
acerca da graça e força de Pam Grier (nos
convencer disso não é lá muito
difícil) – e em Kill Bill, que constrói
um universo em torno da necessidade de vingança
de Uma Thurman contra aqueles que lhe fizeram muito,
muito mal – um universo que praticamente lhe garante
a vitória quando o assunto é vingança.
(O número de lutas de espadas a vencer nunca
é suficiente até que começarmos
a esperar cheios de alegria por seu triunfo.)
Assim como em As Panteras Detonando, de McG,
pede-se para que o público deixe a plausibilidade
de lado. Quando Kent Jones escreveu sobre a intoxicação
virtual de Tarantino com Pam Grier no filme anterior
a forma intoxicada com que sua câmera gravava
cada uma das suas falas e movimentos na tela
ele menciona algo muito importante para o trabalho de
Tarantino; algo que, por sinal, corre o risco de se
perder no meio da ornamentação mais delirante
de Kill Bill. A personagem sem nome de Uma Thurman
não faz nada de errado sob os olhos de Tarantino;
a criação conjunta por Tarantino e Thurman
da personagem principal denominada "A Noiva"
porque foi espancada e dada como morta pelo onipresente
Bill (David Carradine) e por seus capangas no dia do
seu casamento confirma, ao menos para aquele
que escreve estas linhas, a posição decisivamente
feminista deste filme.
Este ângulo de interpretação também
pode ser útil se consideramos a profunda força
das conseqüências no filme. Não há
simplesmente nenhuma ação em Kill Bill
que fica sem resposta (ou que não será
respondida no Vol. 2); cada escolha tem uma repercussão,
um custo. Uma síntese de todo o filme pode ser
encontrada no momento em que A Noiva mata uma de suas
inimigas, Vernita Green (Vivica A. Fox), na frente da
pequena filha de Vernita, e lhe promete que elas poderão
acertar as contas algum dia no futuro; A Noiva sabe
que este dia chegará. Mais importante ainda,
praticamente cada personagem feminina importante tem
direito a um passado, uma explicação de
Tarantino de por que cada uma delas escolheu uma vida
de violência; as razões nunca são
arbitrárias. Neste sentido, Tarantino é
um artista intensamente moral que percebe a violência
não como algo dado, mas sim como parte de um
ciclo em outras palavras, ele enxerga a violência
como conseqüência da violência.
E ainda, assim como no Caçado de William
Friedkin (ou em Dragões da Violência,
de Samuel Fuller), creio que existe um momento em que
um critico depara-se com respostas insuficientes ao
tratar os temas de Kill Bill com um excesso de
seriedade (para reviver o admiravelmente escritivo termo
de Andrew Sarris). Este o autoproclamado "quarto
filme de Quentin Tarantino" é antes de
tudo um exercício de estilos e formas cinematográficas
que excitam e interessam a seu diretor. Se Kill Bill
terminou dividindo as opiniões da crítica,
creio que é porque o filme não apresenta
algumas das satisfações não-visuais
dos filmes anteriores de Tarantino. Refiro-me a seus
notórios diálogos: eles estão presentes,
certamente, mas não se pode dizer que eles sobrepujam
ou obscurecem a mise-en-scène
como às vezes parecem fazer em filmes como Cães
de Aluguel ou Pulp Fiction. Este é
um filme sedutoramente e desvergonhadamente cinematográfico,
apresentado não apenas com floreios evidentemente
expressionistas (como uma impressionante seqüência
em split screen), mas também com a inteligência
visual de um cineasta preocupado com o lado mais artesanal
de seu ofício. Tarantino trabalha ao máximo
para assegurar que o movimento e a ação
através do espaço sejam claramente vistos.
Seu estilo de montagem nas cenas de ação
– apesar de indiscutivelmente cinético e efetivo
– nunca é surpreendente a ponto de fazer com
que o espectador fique confuso a respeito de onde ele
está numa determinada locação.
De fato, a habilidade de Tarantino em dispor os atores
em cena (já evidenciada na seqüência
final soberbamente encenada de Jackie Brown entre
Jackie e Max em seu escritório; a notar-se a
forma como Tarantino faz Jackie aproximar-se de Max,
e depois afasta-a, até por fim deixá-lo
como uma presença embaçada, literalmente
fora de foco) nunca esteve tão presente quanto
no confronto final entre A Noiva e sua arqui-inimiga
O-ren (Lucy Liu) num jardim chinês cheio de neve.
As mudanças de posição dos personagens
e o posicionamento de câmera de Tarantino são
de tirar o fôlego, como também a sua contenção
e cuidado com o desenho de som e a trilha sonora nesta
seqüência. Quentin Tarantino tenta ao máximo
ser um extravagante cineasta de gênero, mas sua
elegância e bom gosto (estilístico) invariavelmente
retiram do gênero o melhor que há nele.
Em certo momento durante a batalha épica da Noiva
na Casa das Folhas Azuis, Tarantino apaga as luzes e
de repente os participantes estão lutando em
silhueta contra um fundo azul escuro. No momento em
que muitos filmes de Hollywood mal podem ser considerados
"dirigidos" – se por direção entende-se
uma abordagem visual bem pensadae bonita de sua linguagem
visual –, a verve gráfica de Kill Bill
faz qualquer cinéfilo sentar e tomar nota.
Peter Tonguette
(matéria publicada originalmente no nº7
da revista eletrônica The Film Journal [www.thefilmjournal.com].
Tradução de Filipe Furtado)
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