(A entrevista com Paulo Sacramento
e Aloysio Raulino, respectivamente diretor e diretor
de fotografia de O Prisioneiro da Grade de Ferro,
transcorreu no Cine Odeon BR no dia 14 de abril de 2004,
após exibição do filme em pré-estréia
no quadro da Sessão Cineclube, iniciativa conjunta
do Grupo Estação e da Contracampo. Respeitando
o formato dos debates, depois de falas e/ou perguntas
dos apresentadores, a conversa abre para perguntas do
público. RG)
Ruy Gardnier:
Para começar, acho que seria interessante falar
de como surgiu a idéia, de como foi lidar com
as autoridades do Carandiru, se houve coisas por baixo
do pano na questão do discurso, na questão
das câmeras, ou se era liberado. Elabore desde
o momento em que surgiu o projeto até os trâmites
burocráticos, pois, além de interessante,
isso pode explicar um pouco a forma que o filme vai
tomando. E fale também se a idéia que
está no filme já estava desde o começo,
quais as mudança por que ela foi passando ao
longo das filmagens, da concepção.
Paulo Sacramento: Diretor
de fotografia e co-autor desse filme, claramente. Falar
da origem do filme é complicado porque todo filme
brasileiro é assim, todo mundo diz que levou
anos e anos fazendo o filme e esse é mais um
filme que a gente levou anos e anos fazendo. A idéia
surgiu em 1996, quando eu estava saindo da ECA, tinha
feito dois curtas-metragens, estava trabalhando como
montador e achei que podia desenvolver um projeto de
longa-metragem, e tinha especialmente uma curiosidade
por essa questão carcerária que eu conhecia
tão mal. Eu achava que a gente fazia filme sobre
coisas que ou conhece muito bem ou de que não
conhece nada, e resolvi fazer um filme sobre uma coisa
de que eu não conhecia absolutamente nada. Fui
pesquisar, fui ver o que existia, comecei a me inteirar
um pouco do assunto, para saber o que exatamente me
interessaria em cima dele. As idéias começaram
a surgir meio tortas. Eu queria fazer um filme "realizável",
um filme que a gente podia filmar no sistema carcerário
brasileiro, com todos os estados, com vários
estados do Brasil, prisões masculinas e femininas,
semi-aberto, presídio agrícola, febem...
Imagina: eu tinha uma longa pesquisa sobre a febem municipal,
que é onde ficam os menores. Eu queria me aprofundar,
o recorte abriu, surgiram idéias em cima daquilo,
e só começando e fazendo a pesquisa que
a gente vai vendo que as idéias são erradas;
algumas coisas estão certas, alguns dos primeiros
ímpetos estavam certos, mas o desenho da coisa
estava bem errado. Foi muito bom porque eu fiz uma pesquisa
razoável, viajei um pouco, conheci alguns lugares,
conversei com alguns presos. E eu olhei em várias
unidades, menos na casa de detenção. Eu
tinha uma coisa do tipo "vou deixar a detenção
pro final". Talvez eu já soubesse que quando
entrasse na detenção talvez eu não
saísse mais de lá. O filme era bem diferente
do que está na tela hoje. A primeira idéia
não era fazer esse trabalho em parceria com os
presos, era fazer um documentário sobre aquilo.
Eu nunca tinha feito um documentário, e queria
meio que terminar minha formação na ECA
me exercitando com um documentário. Especialmente
as várias dificuldades de fazer um documentário
numa cadeia, que é um lugar que, além
dos problemas criativos que o realizador já tem
para fazer um filme e se posicionar, tinha problemas
práticos, muito concretos: dificuldade de autorização,
de locação, de entrar com o equipamento,
de entrar com essas coisas. Cheguei a fazer umas filmagens
totalmente equivocadas, gastei todo o dinheiro que eu
tinha, filmando em super-16. Fiz umas entrevistas com
o Bandido da Luz Vermelha, porque eu achava que alguns
personagens famosos da criminologia deviam fazer parte
do filme. O material era muito ruim, eu não sabia
por que eu tinha esse confronto com o material, mas
eu ia fazer um documentário muito ruim. Os clichês
se repetiam porque o procedimento se repetia. Eu chegava
para conversar com uma pessoa que nunca tinha visto
e com que eu não tinha a menor relação
viva com nada, sem a menor cancha de documentarista,
sem saber o que eu queria exatamente daquela pessoa
também, e os clichês aparem muito rápido.
Foi um pouco assustador, porque eu tinha ficado uns
três anos em cima de uma idéia errada,
e eu mesmo estava muito insatisfeito. Outros diziam
"nossa, o material está muito bonito!".
Mas não era isso que a gente estava procurando.
Isso foi antes do Aloysio entrar, no meio de 2000, até
a gente entrar mesmo para rodar, e aí tudo mudou
do avesso porque em 96, quando tive a primeira idéia
e o primeiro roteiro, não era uma coisa possível,
corrente, ideal, você fazer um filme em vídeo
e passar ele para película. Todo mundo falava
disso, existia uma possibilidade, a gente sabia que
era o Theo que fazia isso, mas a gente não sabia
muito bem qual era o resultado daquilo. Teve um filme
que foi feito de um momento bem pioneiro, que é
o filme da Bia Lessa, cujo resultado plástico
eu lembro que era uma fotografia que podia ser levada
para um lado muito estético, que ressaltava cores,
ressaltava luzes, a coisa era meio que um espetáculo,
era uma coisa meio de artista plástico, me incomodava
um pouco aquilo. Não era o que estava querendo.
O que aconteceu nesse meio-tempo é que surgiu,
coincidentemente, a história do dogma, por exemplo.
Apareceram filmes que você olhava e falava "bom,
ele tem uma fotografia ok, ele parece talvez um 16 mm
ampliado"; não era uma proposta de trabalhar
uma fotografia eletrônica, ou ressaltar as cores.
E era viável: de repente se tornou viável
e as empresas aqui no Brasil começaram a investir,
fazer propaganda, começaram a aparecer vários
lugares que podiam fazer isso a um preço caro,
caríssimo, mas talvez possível dependendo
de uma captação. Na hora em que a gente
falou que ia ser em vídeo, eu parei para pensar
no que a gente ganharia com isso, se seria ganhar dinheiro,
se era uma questão monetária... E aí
surgiu essa idéia de pensar, que não é
nenhuma novidade, de dar um curso e dar a câmera
para essas pessoas. Isso já aconteceu de várias
maneiras muito diferentes, as pessoas sempre lembram
do próprio filme do Aloysio Raulino, que fez
isso de uma maneira bastante particular. A gente não
estava tentando um procedimento novo, mas era um procedimento
que seria muito interessante de ser usado para aquele
projeto que ainda não tinha encontrado o seu
caminho. Então formatamos a idéia, unimos
a equipe e começamos a pensar como seria feito
isso. Nesse momento, antes de você entrar na cadeia,
a peça fundamental da equipe não era o
roteiro, não era a direção, não
era nada: era a produção, ou seja, como
fazer isso acontecer. E até então eu era
o produtor do filme, tinha passado quatro anos fazendo
o roteiro, querendo dirigir, produzindo o filme. E aí,
nesse momento, chamei um produtor, o Gustavo Steinberg,
que fez também a produção do Cronicamente
Inviável, e o roteiro do Cronicamente
Inviável, e agora o filme do Masagão,
que foi feito depois do nosso. Ele foi muito hábil
em estabelecer os passos para a gente conseguir entrar
na cadeia e fazer o filme como a gente estava imaginando.
A estratégia foi bastante clara e simples. A
gente não disse que queria fazer um filme de
longa-metragem e não fez promessas além
do que podia cumprir. A gente ofereceu um curso de vídeo
para o detento da casa de detenção, e
esse curso poderia, na nossa cabeça, vir a se
tornar, dependendo de como fossemos recebidos dentro
da cadeia também, havendo debate administrativo
e operacional disso, a gente chegaria onde chegou. Foi
possível fazer, mas foi totalmente passo a passo:
primeiro era um curso, depois a gente tinha uma autorização
para que cada um dos alunos do curso fizesse um trabalho
final, escolhesse um tema e trabalhasse. A autorização
era para ficar dois meses, mas a gente achou que dois
meses não daria um filme... acabamos ficando
sete meses. A gente pediu uma prorrogação
para conseguir fazer esse trabalho, e nesse meio-tempo
a gente ia conversando com os administradores, o que
foi muito interessante. Conversamos com vários
presos, existia um cronômetro muito favorável,
fomos avançando até que, sete meses depois,
era algo como "bom, agora é montar esse
filme". Sobre alguma coisa ter sido feita escondida
ou não, tudo era feito muito às claras
sempre. A gente foi gradualmente conquistando o espaço,
e esse espaço era sempre claro para todo mundo.
Eduardo Valente: Paulo,
você falou da liberdade do seu trabalho, na sua
cronologia você destacou justamente o início
como montador. E justamente por você vir de uma
carreira aonde se voltou, tecnicamente falando dentro
do cinema depois da sua formatura, para o lado da montagem,
eu queria saber como foi se aproximar desse material.
Na verdade, vamos começar com os números,
que são sempre interessantes: quantas horas você
tinha na sua mão e como se aproximar desse manancial
e tentar começar a pensar uma ordenação
para ele, pensar o que entra, o que sai?
PS: Antes de falar dos
números, vou falar da montagem, pois eu sabia
que ia montar o filme, apesar de todo mundo dizer que
um diretor não deve montar o seu próprio
filme. Era uma coisa longa, era documentário,
e eu sabia, sim, que eu ia montar, dividindo com alguém,
mas participando não só como diretor.
Eu sabia que o montador pode colaborar com o filme trazendo
uma visão de fora, mas eu queria repartir essa
divisão e fundir minha cabeça como diretor
e como montador. Na verdade o desenho desse filme era
bastante feliz para eu dar esse passo largo que estava
dando, talvez sem saber o tamanho dele, sua extensão,
o tempo que demoraria até terminar. Esse filme
permite englobar muitos de seus efeitos, muitas de suas
características, então eu não estava
muito preocupado com a questão da fotografia,
por exemplo; ele permite incorporar, e o Aloysio soube
usar isso, as dificuldades de iluminação
e de fotografia como elementos dramáticos do
filme. Por exemplo, a gente tinha pouco equipamento
de luz, ou nenhum. Nosso equipamento de luz eram duas
lâmpadas foto-flou e dois 250 Watts, que a gente
podia usar para aumentar um pouco a iluminação.
Mas a gente fez isso pouquíssimas vezes no filme,
três momentos eu me lembro bem, por exemplo: o
primeiro rap que é cantado no filme, ali tinha
uma luz que melhorava, a gente via melhor os desenhos
na parede, a cor, aquele resultado era bom no começo
do filme, para começar a sentir aquilo. E nos
outros lugares a gente até tentava às
vezes colocar, mas olhava e falava: "não
é para colocar, a gente precisa imprimir no nosso
material essa precariedade, esse grão".
Não teria o menor sentido a gente entrar no "setor
amarelo", na "isolada", e começar
a iluminar aquele lugar. Claro que é o exemplo
mais exagerado, mas isso era sempre pensado em todos
os casos, precisava de muita parcimônia. O filme
incorporava possíveis defeitos de produção,
a gente podia falhar com o plano de filmagem quantas
vezes quisesse, porque esses planos eram feitos de verdade
e tinha uma lista de coisas que eram possíveis
de serem feitas de alguma maneira. O ponto em que eu
queria chegar é justamente o da montagem. Eu
pensei um filme que era para ser dirigido por um montador,
em que talvez eu não precisasse sequer estar
no set de filmagem. A minha vontade, quando eu estava
concebendo o filme, era ir lá, dar o curso, ficar
um tempinho e depois ficar numa ilha de edição
recebendo o material todo dia, uma hora, duas horas
de material. É claro que não foi assim
que a coisa se deu. Em muitos dias eu não estava
presente, é verdade, às vezes em cenas
muito importantes, como aquela da "isolada".
Na do "amarelo" eu não estava presente,
na cena da faxina, da lavagem, eu não estava
presente, e em muitas outras. O filme permitia isso,
que eu não estivesse presente, que o Aloysio
não estivesse presente. Mas é claro que
no final, depois de ter ficado sete meses ali, eu me
deparei com o momento de pegar 170 horas de material
gravado e transformar num filme de duas horas, ou três
horas, ou cinco, ou uma hora e meia... A primeira coisa
era assistir àquele material, porque no primeiro
e no segundo mês a gente chegava em casa, tinha
passado sete horas numa cadeia, mas ainda tinha forças
e muita curiosidade para assistir ao nosso material.
A partir do segundo mês a gente não via
mais o material. Eu já sabia como aquilo estava
sendo feito, não precisava ver. Nenhum tema foi
filmado mais de uma vez, a gente não foi lá
e filmou como se faz a "maria louca" e daí
assistia em casa e falava "não, isso aqui
não está bom, esse personagem podia ser
mais expressivo, vamos procurar um outro, filmar de
novo...", não, tudo foi feito uma única
vez. Dia de visita, uma vez. O fotógrafo, a entrevista,
o cara da igreja, uma vez. Foram várias igrejas,
mas nem todas entraram no filme. A gente falava "olha,
não é só porque é vídeo
que a gente vai sair gravando, hein!", mas era
tanta coisa que a gente tinha sempre duas ou três
câmeras. Nessa época das sete hotas a gente
estava com três câmeras, cada uma delas
com duas horas, duas horas e pouco, era assustador.
Quando chegou a hora de montar o filme, só para
ver esse material que nunca tinha sido visto, a gente
levaria um mês de trabalho, só para assistir
sem parar para voltar nada, só assistindo aquilo
oito horas por dia a gente levaria um mês. E era
o que tinha de ser feito, então eu peguei meu
assistente, que já tinha sido meu assistente
de direção, e a gente assistiu, enquanto
eu já ia fazendo um back-up dessa fita para dar
uma segurança. Durante um mês assistimos
àquilo sem parar, terminava uma fita já
ia para outra, e ele anotava tudo o que tinha na fita
e se eu achava bom, mais ou menos, ótimo, coisas
do tipo. Todo dia a gente assistia umas cinco ou seis
horas e depois passava mais quatro horas no computador
passando aquilo a limpo e colocando em colunas, então
cada uma das coisas tinha uns campos bem simples, "quem,
como, aonde, o quê...", então depois,
durante a montagem, a gente se lembrava, por exemplo,
do Joel falando sobre a comida, aí bastava procurar
no campo "quem" por Joel, ou fazer uma busca
por "comida" e apareciam todas as pessoas
que tinham falado ou filmado alguma coisa relacionada
a isso. Quando a gente terminou de cadastrar tudo eu
falei: "bom, chama alguém... chama alguém
para mostrar o quê? Parar para a pessoa assistir
a 160, 170 horas de material de novo?". Não,
eu tinha que limpar esse material. Passei sete meses
sozinho tirando o que para mim era lixo, e deixando
alguma coisa em torno de 40 horas de material. Nesse
momento eu chamei a Idê, que foi quem dividiu
a montagem comigo. Eu continuei trabalhando sozinho
oito horas por dia, a Idê trabalhava oito horas
separada de mim, e a gente tinha uma outra assistente
que trabalhava mais oito horas carregando material,
ou, por exemplo, a gente estava sempre com duas câmeras
de vídeo e um dat gravando som, então
tinham coisas em que o som da câmera era muito
ruim. Eu sentava com a Idê na primeira e na última
hora de trabalho dela. Foram mais uns quatro meses assim,
daí a gente sentou junto e saiu um filme desse
embate. A Idê é uma super montadora, fez
filmes muito importantes, como A Hora da Estrela,
fez alguns dos filmes que me levaram a fazer cinema.
Ela fez o filme da Tata Amaral, Um Céu de
Estrelas, enfim, é uma super profissional,
que trabalha bastante, e é muito inteligente,
uma montadora que, assim como eu, se preocupa mais com
a montagem do todo do que com o corte. Uma coisa que
eu percebo muito, na pequena trajetória que eu
tenho, é a de tentar me aprimorar justamente
na questão que acho a mais sensível hoje
em dia da montagem, que é a questão global
mesmo. Hoje em dia as pessoas sabem cortar muito bem,
muito melhor do que eu, inclusive, mas falta montagem.
E eu perguntei para ela: "Algum problema em você
montar um filme de sete horas, se tiver que ter sete
horas?". Naquele momento eu sabia quantas horas
teria o filme, podia ter sete horas... E ela falou:
"Vamos lá. Se tiver que ter sete horas,
entraremos para a história como o maior filme
que já teve no cinema brasileiro".
EV: O Jean-Thomas (da Imovision,
distribuidora do filme, ndt.) agradece pela versão
de sete horas não ter sido lançada. Agora,
Paulo, saindo um pouco do lado técnico, porque
eu acho que as pessoas ficam mexidas com várias
coisas no filme e poucas delas são técnicas,
eu queria começar te perguntando uma coisa: você
disse que um dos motivos para fazer documentário
era falar de um tema sobre o qual não se sabe
nada, e esse era um tema sobre o qual você não
sabia nada. Então, uma primeira pergunta para
entrarmos nessa floresta: o que você sabe hoje
sobre o assunto?
PS: Com certeza eu sei
muito mais do que eu sabia antes, que era o que as tvs
passam para nós, e isso é muito fácil
de repetir. Você ouve diariamente que as cadeias
são lugares que confinam animais que não
fazem outra coisa a não ser se matar uns aos
outros e de vez em quando fugir, e matar os que estão
fora. Obviamente essa não é uma imagem
real; as cadeias são uma coisa muito complexa,
um mundo, um microcosmo. Todo tempo, quando a gente
perguntava qualquer coisa, ou se assustava com alguma
coisa, a resposta era sempre: aqui dentro da cadeia
tem tudo que tem do lado de fora. Exatamente tudo que
existe aqui fora existe lá dentro de outra maneira,
colocado de outro maneira, às vezes exacerbado,
às vezes contido. Fazer um filme abrangente sobre
as cadeias é como fazer um filme sobre o mundo.
Talvez eu até tenha feito. Não há
um documentário sobre o sistema carcerário,
há um documentário no sistema carcerário,
no Carandiru. Não é um documentário
sobre o prédio, sobre o sistema, e muito mais
sobre as pessoas, por isso o filme se chama O Prisioneiro
da Grade de Ferro, não se chama "O Prédio
das Grades de Ferro", ou "As Grades de Ferro".
Fazer um filme é um mistério tão
grande, entregar um filme depois que a gente passa um
tempo tão grande de conhecimento daquelas pessoas,
daquela realidade, da própria equipe, um mergulho
tão profundo que de repente a gente tem que resumir
em duas horas... É um trabalho, se a gente for
pensar, quase que idiota restringir aquilo. Na verdade
não existe síntese. Você tem que
tentar passar uma imagem daquilo tudo, que é
o que o cinema permite. No cinema a gente ainda vai
ter que inventar alguma coisa que possa transmitir exatamente
a experiência completa que uma pessoa tem na realização
de um filme. Nós transmitimos uma imagem daquela
nossa experiência. Muito do que está no
filme, que foi racionalizado, que foi pensado na montagem,
que foi elaborado em termos de linguagem, que é
passado, sim, como mensagem, ou como informação
que a gente quer que seja apreendida, ou como emoção
que a gente quer que seja sentida, além disso,
tem um processo que extrapola, é sempre maior.
A racionalização é um pedaço
pequeno de um processo.
Aloysio Raulino: O Paulo
falou uma coisa importantíssima, e que foi a
maior experiência que eu tive no Carandiru. O
pensamento sobre o presídio e uma imagem a ser
realizada. Para mim, e para todos os trabalhadores desse
projeto, o mais importante foi que a cada dia você
tinha uma surpresa. Por mais que se preparasse tudo,
que se pensasse o que fazer, para mim foi uma coisa
impressionante porque, ao longo de sete meses, você
não sabe o que é, você acorda e
diz "hoje eu vou conhecer um lugar novo, hoje eu
vou conhecer uma cela nova". O próprio ser
humano que estava na minha frente, esse ser humano que
é um carcerário, ele pode ser, como nós
aqui de fora, o que não era na véspera.
E, no entanto, o que mais me impressionou foi a vontade
deles de ser outra coisa junto ao fato, de se aprimorar
junto ao fato de ter sido o que lhes era apresentado.
Era evidente que o cara estava destruído um dia,
derroído, na véspera ele estava legal,
naquele dia você via que não. Essas mesmas
pessoas que poderiam se ver de uma maneira muito mais
aguda, rápida, inesperada, nos ensinavam, entretanto,
a ter a nossa incerteza, a nossa ida ao lugar, nosso
modus operandi. Tenho a impressão de que
nós aprendemos como equipe. Toda imagem é
em si densa, tencionada por um certo aspecto, não
é fácil. Então quem nos ensinou
foram esses "incluídos" aí,
esses que vieram para nós explicando. No processo
do filme vai se dar nossa disciplina, que é a
mesma disciplina do lugar lá; um lugar como aquele
exige isso, eles explicitam isso. Regras de comportamento,
regras de uma organização social primária,
ou secundária, ou peculiar. É um microcosmo
que é um macrocosmo. Isso é extraordinário.
Ao longo desse tempo, nós acabamos nos tornando
pessoas mais ou menos achando um sentido: fora dali
não há nada, eu tinha minha vida, é
claro, eu era "libertado" de noite, mas não
era vida nenhuma, eu estava mesmo era ali, dentro daquela
disciplina, daquele espírito. Isso reverteu em
você estar o tempo todo sendo solicitado e solicitando
de si. Nunca haveria nenhuma distração,
nenhum momento de relax, fuma um cigarrinho, aquele
momento de "bom, agora vamos ver como fica isso,
como fica aquilo...". Nunca. Éramos solicitados,
o mundo nos reinvindicava. Então, para mim, foi
a experiência mais linda, de nunca deixar parar,
cada segundo e cada passo a ser dado. Isso reverte no
filme, em cada plano.
RG: Uma coisa interessante
é que a frase que talvez seja a mais recorrente
no filme consiste neles falando "essa que é
a realidade". E, ao se falar aquilo que você
sabe de antemão que era o discurso da televisão,
certamente o que eles tinham em mente era "isso
aqui é a realidade, não aquilo que aparece
na televisão". Outra coisa é que
o começo do filme mostra poeira e, por um processo
inverso, acaba reconstruindo a implosão do Carandiru,
o filme o desimplode. Isso, acredito, é uma posição
política forte, uma certa maneira de dizer que
falou-se pouco ou não falou-se o que deveria
ser falado sobre o assunto. Toca em questões
de memória e de política que acho que
são muito fortes. E o desfecho do filme mostra
um certo discurso oficial muito sobre eficiência
política e menos sobre humanidade, sobre relação
com o humano. E, por último, uma pergunta muito
simples: por que a expressão "documentário"
tão forte lá no início, uns dez
segundos, coisa que até se repete no trailer
do filme, querendo deixar isso muito claro?
PS: A gente coloca sempre
pequenas coisinhas que vão deixando pequenos
rastros. Tudo que está num filme, para quem vê,
parece que nasceu pronto. Mas cada plano, cada corte
é uma escolha, ou são várias escolhas.
Vou começar respondendo pelo final, por essa
coisa do documentário, em que é claro
que há uma relação proposital.
Enquanto fazíamos o filme, muitas vezes perguntavam:
"como é o filme, é um documentário?",
e eu pensava "por que não fazer um documentário?";
não o mais tradicional possível, mas que
para mim fosse o mais documental possível. E
a palavra aparecer em fundo preto é uma homenagem
a um filme de que gosto muito, o Lavradora, da
Ana Carolina, que tem justamente isso, até mais
de uma vez. Eu coloquei no filme porque queria mesmo
marcar aquele começo, com toda carga que aquela
palavra na tela pode suscitar em cada uma das pessoas
olhando para aquela palavra que não sai da tela
e falando: "o que eu posso esperar dessa palavra,
desse termo, dessa vontade?". E eu quis repetir
isso deliberadamente no trailer. Quando a gente pensou
em bolar um trailer pro filme, o Jean Thomas virou e
falou que tinha de ser bom, para conseguirmos salas
etc., mas eu não podia o usar o mesmo ritmo do
filme no trailer. Enquanto montava, eu tinha várias
cenas que não entraram no filme e pretendia usar
no trailer, e o próprio Jean Thomas, que eu achei
que ia pedir para eu tirar aquilo, achou legal, achou
que funcionava, sem vergonha de ser um documentário,
pelo contrário: com muito orgulho. Sobre a questão
da realidade, essa é uma questão longa,
a gente pode ficar falando horas sobre ela, teorias
sobre o que é a realidade, o que é a verdade.
Para eles era muito claro que estavam fazendo um filme
mostrando a Realidade e a Verdade, as duas coisas com
letra maiúscula, como, aliás, acontece
com todos os grupos de rap, que se colocam como porta-vozes
de uma verdade. Quando a gente começou a dar
esse curso, ele não era só de operação
de microfones, ou de câmeras, a gente mostrava
filmes também e discutia a linguagem, a construção
dos personagens. Mostrávamos documentários
também, o que é mostrado, o que não
é mostrado. Eles foram pensando um pouco em cima
disso. E eu sempre falava para eles que a gente ia fazer
um documentário possível, que a gente
ia mostrar um recorte da realidade, mas isso nunca entrou
no nível de consciência deles. Esse tipo
de crítica sobre a linguagem não estava
em pauta, talvez estivesse em pauta comigo depois, com
minhas dúvidas de montagem. Para eles, e para
nós, enquanto estávamos junto com eles,
captávamos, sim, momentos da realidade, que depois
seriam manipulados, e que estavam sendo manipulados
ali de uma maneira muito objetiva, tanto por nós
quanto por eles. Conseguimos uma sintonia de pensamento
e uma sintonia estética que é o que está
no filme. O trabalho em conjunto não permitia
haver qualquer sentido em separar o que a gente filmou
do que eles filmaram, isso não traria nenhum
dado novo, muito pelo contrário, empobreceria
aquela relação que a gente teve com eles
e aquele trabalho que a gente propôs. Teve muito
essa autocrítica minha depois de montar aquele
filme como um recorte sabendo que aquilo era uma manipulação
de uma realidade, uma manipulação que
fosse a mais fiel que eu conseguisse fazer do ponto
de vista deles, mas para eles aquilo era mesmo a realidade,
ou a verdade.
AR: Quero só lembrar
também que esse andamento não foi imediato,
depois de mês. Eles foram cobrados, especialmente
da minha parte, mas também o Paulo cobrava muito.
Na verdade teve um intermediário interessantíssimo,
que no primeiro ou no terceiro mês, quando eles
foram listados, cobrados. Façam agora os seus
roteiros, escolham agora os seus espaços, a sua
geografia, a sua espiritualidade. O Paulo veio e disse:
"se sirva!", e alguns deles escapuliram. Alguns
que escapuliram, no final ‘as vezes aderiam ao trabalho
de um colega mais próximo, como foi o caso, que
eu acho lindo, do preso que passa a câmera para
o outro, para incorporar o que era da mente do outro,
e este já adere. Acho isso lindo e riquíssimo
para a expressão do documentário. Inclusive
com relação à parte formal de um
roteiro, houve o prisioneiro João Vicente que
foi fundo na questão de estudar roteiro, demonstrando
o quanto ele foi instruído para isso. Então
essas são recorrências que implodem finalmente
numa expressão geral.
PS: Duas coisas que são
legais de contar. O primeiro é aproveitando o
mesmo personagem, o Lagoa, ele aparece mostrando o pavilhão
9 junto com o colega Rodrigo, que é o que fala
que vai mostrar fatos reais com todo efeito. E esse
Rodrigo era um cara forte no pavilhão, que era
conhecido, que era do rap e tal, e que não era
um cara da nossa equipe, mas o cara da nossa equipe
não deu o passo de fazer independentemente, do
jeito dele, e de repente se juntou com aquela pessoa,
na hora. O cara era um dos grandes chefes das organizações
internas lá do presídio, e aquilo, que
aconteceu no dia, não foi combinado, foi um trabalho
feito de uma maneira totalmente impressionante, compacta
e precisa. Um outro caso saboroso de contar tem a ver
com essa coisa de roteiro que a gente estava falando.
Pedíamos para eles escreverem, cada um ia ter
pelo menos dois dias para poder trabalhar o seu tema,
mas depois é claro que tiveram muito mais tempo.
Mas falávamos que eles tinham que escrever, se
não iriam esquecer, não filmariam, alguma
ia se perder. Tinha um único caso de um cara
a quem a gente deu total liberdade e que queria fazer
uma representação, que não por
acaso era um pastor evangélico, o mesmo que fala
do PCC e tal, e que me lembrou muito as reconstituições
que existem nos programas evangélicos de televisão,
a que ele provavelmente assiste. Era uma reconstituição
de como a igreja dele salvava pessoas viciadas ali dentro,
colocando-as dentro da igreja etc. ele escreveu o roteiro
chamado "A Evangelização de Ivo na
Ducha". Trata-se de uma ducha que está desativada,
porque antigamente as duchas eram coletivas, atualmente
elas são nas celas individuais. Uma das duchas
é onde foi gravado o último rap, onde
tem primeiro o poeta recitando o poema dele e depois
o outro canta com muita gente em volta. Mas o roteiro
dele era assim: plano próximo: pés andam
no pavilhão; plano médio: a câmera
sobe e mostra que estamos num pavilhão mais ou
menos ocupado; plano próximo: traficante tira
uma pedra de crack de trás da orelha e segura
na mão... Então a gente foi filmar e eu
perguntei para ele: "por onde você quer começar
a filmar?". Ele disse que íamos começar
pelo começo e seguiríamos a ordem. Eu
disse que tudo bem, mas que ele não precisava
fazer na ordem, e ele pediu a câmera para fazer.
E, na verdade, ele queria fazer um plano-seqüência.
A gente nunca tinha falado o que era um plano-seqüência.
Ele tinha marcado pontos do que era um plano-seqüência,
quer dizer, começava nos pés, andava junto,
chegava perto do rosto do traficante, e ele marcou esses
pontos e os escreveu. Foi muito impressionante para
nós como ele estava pensando uma coisa que todas
as pessoas julgavam ser outra e estava feito o filme
dele, que foi gravado mas não foi incorporado
no filme como muitas outras coisas.
Cristina, socióloga:
O filme pega a incerteza que é o mundo, e portanto
a cadeia. Foi o primeiro filme que vi sobre a natureza
humana que tem espaço para furar o bloqueio,
furar os roteiros, e isso é perceptível
o tempo inteiro. Vocês aliaram o microcosmo ao
macrocosmo daquelas pessoas. Vocês não
tiveram preocupação em delatar o sistema,
em denunciar a condição de vida, mas nas
entrelinhas, nas fotografias... a cena para mim mais
marcante foi a da faca, que provavelmente não
foi filmada por vocês, não aparece o sujeito,
só o objeto que é a faca. Aquilo é
o cotidiano da cadeia. E tem a "maria louca".
Os presos políticos aqui na Frei Caneca usavam
da "maria louca", só que com abacaxi
que a gente levava. Então vocês conseguiram
uma antropologia da cadeia que não é a
antropologia da cadeia, mas a antropologia da sociedade.
Conseguiram pegar itens que existem em todo grupo, a
complexidade, a diversidade, a incerteza, o ir e vir,
o princípio que não é princípio,
que é fim. Aquela frase do começo, "vocês
aqui não são presos, vocês são
educandos", aquilo é a hipocrisia do sistema.
Eu achei muito legal esse jogo de não ter uma
cronologia, do rapaz sair e depois voltar... É
um filme muito bom, parabéns. E você deve
continuar fazendo documentário.
PS: Obrigado. Eu queria
aproveitar uma coisa que você suscitou. É
claro que eu gosto muito resultado, eu vejo o filme
muitas vezes como espectador, e uma das coisas que mais
me arrepiam quando eu vejo é aquela cena da noite
de um detento, e tanto gostávamos daquela cena
que ela é quase um filme dentro do filme, dura
quase vinte minutos, para a gente sentir a expressão
pura deles, que fizeram planos de vinte minutos de uma
pessoa parada tomando café e que me agrada muito.
A gente conseguiu nesse filme justamente falar de certos
assuntos sem estarmos predispostos a falar deles. Por
exemplo, um dos grandes problemas, que me incomodava
muito quando fui para a cadeia era a questão
da reincidência, por que é que as pessoas
voltam, não conseguem emprego depois... Eu queria
pensar um pouco sobre isso sem ter de parar, chegar
do lado do preso e perguntar como ele se sente sabendo
que quando sair vai encontrar uma realidade mais dura
do que quando ele chegou, pois agora ele tem quase um
carimbo escrito na testa "ex-presidiário",
vai ter uma dificuldade muito maior para conseguir as
coisas, enfim. Na verdade a gente vai atrás desses
assuntos e daqui a pouco a gente está fazendo
um filme mostrando a parte da droga, e de repente o
cara no meio da sua preparação, ele sozinho,
dentro do seu imaginário, sente a necessidade
de falar justamente da projeção da vida
que ele não tem e do porquê dele estar
fazendo aquilo, sem que a gente tenha que ir lá
e pedir. Como também o pastor que está
fazendo um trabalho evangélico sobre a sua igreja
e de repente desanda a falar do PCC sem ninguém
precisar pedir. Ele sentiu a necessidade de dizer, de
se colocar, de dizer que era importante sim para ele.
Acho que o documentário cresce muito quando acontece
essa mágica. Apesar de nós, a força
dos assuntos e das questões internas aparece.
O que eu gosto no filme é que ele não
é uma coisa focada: a gente está saindo
daqui para chegar ali. Ele vai se abrindo em diversos
caminhos e diversos planos.
EV: O debate que eu vi
com o Aloysio e o Paulo em Gramado, quando o filme passou
lá, o Aloysio falou uma das frases que eu achei
das mais impressionantes que eu ouvi sobre um filme,
principalmente vindo de um diretor de fotografia, quem
sabe alguma coisa de cinema sabe da relação
que o diretor de fotografia tem com as suas imagens,
com sua luz, e o Aloysio falou num certo momento que
ele não sabe mais quais são as imagens
que ele captou e quais são as imagens que os
presos captaram em alguns momentos. É claro que
algumas são marcadas, como a noite do detento,
mas quando tinham várias câmeras no local
ele já não sabe diferenciar o que é
dele e o que é dos outros, quer dizer, todas
as imagens são do filme. E isso passa muito forte
para as pessoas que assistem ao filme, mas foi especialmente
ouvir isso vindo do diretor de fotografia.
Miguel, epectador: Queria
fazer duas perguntas. A primeira é sobre o trabalho
que vocês realizaram durante a oficina, como é
que vocês trabalharam o olhar com eles. E a segunda
pergunta é saber se vocês acompanharam,
se vocês estavam sempre juntos nas filmagens,
ou se eles também iam embora, se os detentos
iam embora para os espaços deles sem vocês
estarem presente.
PS: O curso foi uma etapa
que tivemos que cumprir. Era uma etapa árdua
para nós como equipe. Tivemos que passar por
ele para chegar no filme. Foi mais ou menos um mês
de curso e depois mais ou menos seis meses de filmagem.
Eu nunca tinha dado uma aula na minha vida, nunca tinha
lecionado na frente de dez, vinte pessoas e tive que
preparar um assunto e falar durante uma hora, mostrar
coisas, preparar materiais, eu nunca tinha feito isso
antes e não me julgava absolutamente preparado.
Foi a primeira coisa que falei para eles, que estava
lá para fazer um trabalho para o qual talvez
não estivesse totalmente preparado, mas que esperava
que pudessem aproveitar da melhor maneira o pouco que
tínhamos para oferecer. Tinha a parte teórica,
de ensinar que há sempre alguém que recorta,
escolhe, monta, aperta o botão, alguém
por trás daquilo tudo, e tinha uma parte bem
prática de mostrar a câmera, seus vários
botões, dizer quais botões realmente se
usam, mostrar os microfones que existiam, dizer quando
usar um e quando usar outro. Era uma coisa muito complicada
para eles aprender a mexer com o DAT, captação
sonora era uma coisa muito subjetiva para eles. Depois
de um certo tempo a gente ficou com o nosso técnico
de som sempre operando o DAT e eles operando os microfones,
porque era muito complicado para eles ouvir o que estava
por trás do que está sendo dito, você
ficar se preocupando se tem um som de uma geladeira
ou algo assim. Eles não estavam ligados nisso,
e a gente percebeu que isso comprometeria o resultado
do filme. Por mais que a gente explicasse para eles
que podiam mixar o som depois, eles achavam que tinha
que gravar tudo. Acontecia, por exemplo, da música
ficar muito alta, aí falávamos para eles
que agora não conseguiríamos tirar a música,
e não dava para ouvir o que a pessoa dizia. Então
a gente achou melhor que o operador de som fosse sempre
o nosso técnico, para captar da melhor maneira
esse som que eles tinham dificuldade, mas eles estariam
ali sempre fazendo o microfone, escolhendo o melhor
lugar para posicioná-lo, escolhendo se era um
direcional, ou um lapela, esse tipo de coisa. Com a
câmera a mesma coisa: com tripé, sem tripé...
E exercícios práticos mesmo. O primeiro
deles foi muito simples: a gente comprou vinte camerazinhas
fotográficas dessas descartáveis e deu
para eles. Aliás não eram vinte, porque
cada um deles fez quatro fotos. Mas a gente deu e disse
"façam quatro fotos que vocês quiserem",
uma maneira de começar a trabalhar essa questão
do olhar. Eles fizeram as fotos e depois a gente olhava
e conversava sobre elas. É claro que tinham umas
melhores, outras piores. A gente colocava em termos
de melhores e piores não a estética a
que estava acostumada, mas o que a pessoa queria dizer
com aquela foto. Muitas vezes alguém dizia que
queria fotografar um vaso com flores, mas aí
tinha um corredor inteiro com um pequeno vaso de flores,
então eu dizia que a foto estava muito ruim,
porque não é o que você queria mostrar.
Seria melhor se estivesse de tal e tal forma. Então
a gente foi discutindo esse olhar sem dizer para eles
o que era certo e o que era errado. É claro que
a gente dizia que estava errado, por exemplo, se o cara
quisesse gravar uma entrevista e a câmera ficasse
tremendo tanto que criasse uma tensão que nos
impedia de ouvir o que a pessoa estava dizendo. Mas
eram muito poucas coisas, porque eles já estavam
muito educados áudio-visualmente, pela televisão...
Eles sabiam muito bem o que era um plano geral, um plano
próximo, uma câmera na mão ou uma
câmera no tripé.
AR: Só para acrescentar
um pouco, eles tinham uma pontaria muito boa. Um olho
sintético, poderíamos dizer. Havia objetividade
no olhar, a coisa não se dava ao acaso.
PS: A gente nunca voltou
para refilmar uma coisa que eles tinham filmado errado.
Eles estavam totalmente preparados, em pouquíssimo
tempo eles terminavam pequenos roteiros ou entrevistas.
Eu me lembro muito bem de uma entrevista que a gente
fez no começo, durante esse curso. Tinha um preso,
um senhor mais velho, que tinha chegado na cadeia havia
pouco mais de seis meses, e que tinha um linguajar que
não era de preso. Ele tinha um falso conhecimento
da cadeia, era um falsário, vamos dizer assim,
um estelionatário. E ele mentia sobre as coisas,
o que ele fazia fora ele voltava a fazer dentro da cadeia,
se impondo para os presos dessa maneira. A gente gravou
essa entrevista com ele e a exibiu sem ele na sala de
aula. Ninguém acreditou em nada do que ele falava;
tudo que eles achavam, conversando diretamente, ser
verdade, naquele momento eles olharam e falaram: "cara,
é muito falso tudo isso!". E aí entrou
toda uma discussão sobre se eles deveriam usar
gíria ou não. No começo eles ficavam
achando que deveriam ter uma linguagem correta na frente
das câmeras, e tinha toda uma questão sobre
autenticidade. Eu mostrava documentários para
eles e perguntava: "vocês acham que esse
documentário seria melhor se esses presos falassem
um português correto?". Eles respondiam que
seria pior, que seria pouco autêntico. E a gente
foi indo um pouco nessa direção. Quando
entrei na ECA e tive minha primeira aula de som, disseram:
"agora, presta atenção no som que
você está ouvindo aqui", e pela primeira
vez eu ouvi a rua, eu estava num prédio e ouvi
o carro passando. E talvez eles tenham tido algo parecido,
pensaram coisas que nunca tinham pensado. Isso foi incorporado
de uma maneira muito rápida por eles.
AR: Eu lembro muito bem
que o Paulo passou para eles um documentário
institucional sobre uma unidade qualquer de São
Paulo, e que dizia muito bem como as coisas aconteciam,
destacando uma série de acontecimentos favoráveis,
quer dizer, parecia um lugar bom.
PS: A partir dessas
imagens, desse tipo de material que a gente levou, eles
eram muito críticos em relação
a todos. A gente perguntava o que eles tinham achado
e eles começavam dizendo que era interessante,
bem-feito, mas dez minutos depois já era um cacete
geral. O que estava por trás de tudo aquilo era
que eles não se reconheciam naqueles filmes,
alguns falavam "vem cá, eu já passei
por essa cadeia e não é assim". E
a nossa proposta para eles foi essa: se a imagem que
está sendo gerada de vocês no filme está
errada, quem tem o conhecimento para gerar uma imagem
cativa? Vocês têm esse direito, a gente
está dando a chance de vocês fazerem isso.
O filme é um esforço de construir essa
imagem deles a partir deles próprios, para que
eles pudessem se reconhecer no filme. O filme tinha
um pouco essa proposta para eles mesmos.
Rodrigo Savastano: Eu queria
saber se, além desse material que foi mostrado,
a galera lá produziu outras coisas, se algo foi
integrado no cotidiano, ou o que mais se aproveitou.
E também se essa oficina teve outros desdobramentos
de alguma forma, a construção de um núcleo,
ou uma continuidade qualquer.
PS: Eram muitas idéias.
A primeira delas é que a câmera usada para
fazer o filme foi comprada especialmente para fazer
esse filme. Existia uma idéia de que a gente
poderia doar aquela câmera para eles, e que pudesse
ser feito um trabalho nesse sentido. Mas primeiro a
gente percebeu que não existia a possibilidade
concreta de criar um núcleo de produção
de imagens lá dentro. Eles não tinham
sequer um computador. A gente chegou a doar a televisão
que a gente usava. Seria, na verdade, um trabalho até
demagógico se a quiséssemos virar e dizer:
"fomos lá, deixamos uma câmera e agora
eles não fizeram nada com isso". Realmente
não existia uma possibilidade concreta disso
evoluir. Mas a gente queria, inclusive, dar mais de
um curso e a idéia era de que talvez os presos
pudessem ensinar uns aos outros. Na verdade a gente
fez um trabalho que demorou sete meses, uma coisa muito
extensiva, e não houve um interesse por parte
da própria administração em continuar.
E em relação aos presos que estavam trabalhando
conosco sempre tivemos uma postura muito clara de chegar
para eles e dizer que dávamos um curso que talvez
não fosse o curso que eles imaginavam (ou seja,
um curso profissionalizante). Dizíamos que aquilo
não era um curso profissionalizante, que não
íamos profissionalizar ninguém, que íamos,
se possível, realizar um filme ali dentro, e
se eles quisessem ficar junto de nós, faríamos
o filme. E eles tinham interesse mesmo que fosse só
um curso, que fosse só abrir a cabeça
e trabalhar, fazer outra coisa que não a rotina
da cadeia, criar uma sensação de movimento
lá dentro. Também tinha essa idéia,
na verdade, de que esses trabalhos finais de cada um
poderiam ser finalizados individualmente e depois, quando
fizesse o filme, lançá-los também,
talvez só em São Paulo, ou fazer uma sessão
dupla em vídeo. Mas sequer foram finalizados
isoladamente, e não participaram da montagem.
Uma idéia possível, mas que se tivesse
sido levada a cabo a gente estaria trabalhando no filme
até hoje, e foram quatorze ou quinze meses de
montagem, com pessoas tendo de jogar fora muito material,
e pensando numa maneira próxima ao espectador
que vai ver aquilo. Eles talvez tivessem uma dificuldade
muito grande de entender que aquele material não
era para eles, que aquele material estava sendo feito
para outras pessoas, e provavelmente teriam apego por
coisas que talvez não seriam tão interessantes
para um espectador de fora. Nunca tinha existido nenhum
curso parecido com esse. Quando fomos selecionar isso
imaginamos que queríamos pessoas representativas
nos sete pavilhões, pessoas de cada um deles,
que tivessem características particulares, os
reincidentes da cadeia, presos que já estão
há muito tempo e continuarão por muito
tempo... o pavilhão 9, que é o de entrada,
o pavilhão 5, que é o mais complicado
da cadeia, onde tem muito tráfico de droga, onde
tem a "rua das flores", onde tem um castigo...
o pavilhão 7, que é dominado pelo PCC...
a característica do 6 é que tem muitos
estrangeiros... Então a gente queria um pouco
de cada um desses pavilhões. Só que antes
de pregar os cartazes em cada um dos pavilhões,
a gente entrou pela diretoria de educação,
e a gente pregou o cartaz no pavilhão 6, onde
fica a diretoria de educação, e em cinqüenta
minutos a gente tinha cem pessoas inscritas. Se continuássemos
a divulgar, em pouco tempo teríamos mil e quinhentos
presos inscritos, ou algo assim. Então encerramos
as inscrições. Mas a nossa proposta de
diversidade não foi frustrada, porque no nosso
primeiro encontro na cadeia já percebemos que
nem todo mundo que estava inscrito era dali, mas era
sim dos pavilhões 8 e 9, que é o chamado
"fundão". Porque na verdade você
pegava o pavilhão 6 mas existiam anexos, as pessoas
podiam circular de um pavilhão para outro. A
gente viu que dessas cem pessoas, setenta eram ligadas
à educação, trabalhavam com educação,
mas a gente não fechou as vinte pessoas escolhidas
nessa primeira imagem, pois eu queria presos de outras
áreas também.
PS: Sobre aquele discurso
na chegada dos presos... o que mais que eu posso falar
a respeito daquilo? Eu acho que é aquilo que
está na tela... Ficamos tão chocados quanto
vocês, da mesma maneira que naquele exame de CPC
ficamos tão chocados quanto vocês. Todos
os presos reclamavam muito de que o grande problema
da cadeia era aquele exame de CPC, que eles tinham que
mostrar. E de repente a gente fez uma entrevista, conseguiu
gravar, e as perguntas eram tão significativas
que a gente não precisava das respostas.
Espectador não-identificado:
Duas coisas que chamaram a atenção. Primeiro,
aquela cena que abre o filme, que é uma reconstrução
tão forte, e as cenas dos livros. Eu queria saber
se foi indicação de alguém que
estava ajudando nas filmagens ou se foi idéia
deles mesmos de filmar os títulos da biblioteca.
Eu não estarei fazendo comparação,
mas é que eu vi um outro filme e há uma
cena muito parecida com a cena do Carandiru em
que aparece a lavagem. Não estou dizendo em significação,
mas é porque achei interessante. E outra pergunta,
de curiosidade, é se já foi feita alguma
exibição para as pessoas que participaram
do filme, e qual foi a reação, se elas
realmente se enxergaram, se houve algum bate-papo com
elas.
PS: Quatro presos tinham
saído da cadeia no momento em que o filme foi
exibido pela primeira vez há um ano atrás
no festival É Tudo Verdade, em São Paulo,
e eles estavam presentes na sessão com suas famílias.
Uma das características que esse filme tem é
a existência material dele, que talvez seja mais
forte do que qualquer opinião que a gente possa
ter a respeito dele. Esses presos que estão numa
cadeia e que têm a sua auto-estima colocada lá
embaixo, negada, de repente eles fizeram um trabalho
que a gente levou para eles e abarcaram aquilo como
uma idéia deles, um projeto deles. E então
eles saíram e viram aquilo numa tela gigantesca,
finalizado, sem as arestas, sem aquelas coisas todas
que eles não vão saber, porque eles não
participaram de todas as filmagens, cada um vai ter
participado de uns quatro ou cinco momentos, alguns
participaram mais, mas de repente eles viram aquilo
tudo junto. Eu posso imaginar para mim, por exemplo,
o que seria a emoção de ver isso. Imagine
para um preso... Alguns deles tinham passado quatro,
cinco anos dentro da cadeia, e de repente sai e vê
aquilo. E além de tudo o filme saiu premiado
no festival. Ele pode falar assim: "O meu trabalho
foi premiado no festival, o meu talento, o meu esforço
está aqui colocado em pauta, sim, sendo julgado,
sim". A emoção do dia é inenarrável,
não dá para contar. A emoção
deles... Na hora em que subi para receber o prêmio
eles se projetavam junto no palco. Não era "vem
o Paulo receber", era a equipe inteira, todo mundo,
é nosso. Foi muito forte. E agora, acho que o
Aloysio não sabe disso ainda, o PA acabou de
sair. PA é o preso que, por incrível que
pareça, a gente descobriu que nasceu no mesmo
dia, no mesmo mês e no mesmo ano que eu. E era
um dos presos que estava trabalhando imagem conosco.
Filmamos toda aquela parte do boxe, depois ele trabalhou
em algumas das filmagens dos raps, porque ele também
era ligado no rap. Sobre os livros eu não vou
falar, o Aloysio vai falar. A gente passou meses ali
filmando e o Aloysio falava que a gente precisava filmar
os livros.
AR: O pavilhão 2,
onde tem a sala com os livros, é considerado
um pavilhão mais light. E com uma coincidência:
a sala onde nós dávamos as primeiras aulas
tinha muitos livros, e eu falei: "nós vamos
filmar os livros".
PS: O Aloysio sempre
queria filmar os livros, e eu falava "não,
tem outros assuntos pra gente filmar, vamos para os
presos ali, vamos filmar aquilo!". Então
era uma coisa que o Aloysio queria filmar especificamente,
e um belo dia, não me lembro por quê, eu
disse "vai Aloysio, filma os malditos livros!".
E ele foi, não me lembro se sozinho, e filmou,
e os livros adquiriram depois todo um sentido dentro
daquela questão da sala de aula, daquele cara
que toca a música do Bob Dylan com aquela letra
que ele escreveu, e tinha a ver com os livros, com aquele
"tratado de sócio-economia", com não
sei o quê escrito em francês, aquelas coisas.
EV: O Paulo vai falar da
implosão, mas eu justamente queria trapacear.
Aquela parte em que eu falei da última pergunta
da noite eu trapaceei, porque o que eu quero falar tem
a ver com isso, até porque você deixou
em aberto aquela pergunta do Ruy. Mas, na verdade, antes
da questão da implosão tem a questão
da faxina.
PS: É um verdadeiro
exército que realiza aquela faxina, o prédio
inteiro pára, um exército sai e faz aquela
lavagem, com aquela soda cáustica. Aquela é
uma das cenas que o filme ganhou no cansaço.
A gente gravou muito, tinha muita coisa gravada. E era
um material que se repetia muito. Quando eu via aquela
cena com o montador eu lamentava não ter estado
lá, porque eram três planos, um frontal
deles vindo, a passagem e um outro. E eu não
conseguia montar aquilo. E o meu assistente que estava
lá, o Dennison, ele dizia: "não,
aquilo é uma cena do Connan, as pessoas
vindo por todos os lados!". E eu falava: "cara,
vocês não filmaram isso!". Aí
a Idê conseguiu achar o material, mas a equipe
não tinha filmado um fotograma a mais que fosse
diferente. A câmera que estava com o Aloysio e
a câmera que estava com presos tinham os mesmos
materiais. Impossível diferenciar. E uma outra
coisa é que a gente filmou nosso filme inteiro
antes do Babenco começar a fazer o dele. Ele
tinha um certo interesse em ver nosso material, mas
acabou não rolando.
EV: Por que vocês
não trataram do massacre, não tocaram
no assunto?
PS: A gente não
queria tratar do tema do massacre no sentido de fazer
um filme sobre ele. A pesquisa até foi nesse
sentido, procurei ver se eles tinham imagens, ou coisas
assim. Mas como o filme era muito centrado no cotidiano
dos presos, a gente queria muito fazer um instantâneo,
um aqui-e-agora daquilo. Nenhum material, nem esse resto
de material que eu tinha filmado antes, das outras entrevistas,
de presos famosos, presos que já tinham morrido
e tal, nada disso entrou, não fazia mais sentido
nesse recorte que a gente tinha escolhido, de mostrar
o cotidiano desses presos. Um filme feito naquelas circunstâncias
que são dadas desde o começo. Não
faria sentido a gente ficar mostrando o massacre. É
claro que é um dado fundamental que define aquele
prédio, então é um dado é
colocado no começo do filme: aqui aconteceu o
massacre, se alguém tinha alguma dúvida,
aconteceu há um certo tempo, mas nos interessa
nesse filme saber o que se passa nesse lugar onde um
dia ocorreu um massacre. A gente tinha um pastor que
estava com a gente no fim do filme e ele era um dos
poucos presos que estavam lá dentro do Carandiru
ainda, dos remanescentes do passado. Diziam que tinham
três, a gente chegou a encontrar dois, um deles
era esse pastor. E, quando se apresenta no começo
do filme, sobre os prontuários, ele sempre fala:
"sou um remanescente do massacre". Mas mesmo
ele não sentiu a necessidade de retrabalhar esse
tema. Essas apresentações deles em cima
dos prontuários foram feitas só com o
áudio tirado das entrevistas que a gente fez
de seleção para escolher quem trabalharia
com a gente. Ele falou de como foi o massacre, fez um
relato de como tinha sido, se emocionou, na época,
e depois que a gente começou o filme, mesmo,
ele não sentiu mais necessidade ou interesse
em falar sobre isso. Então era muito claro que
o assunto era outro.
EV: Me impressiona muito
no filme, na questão da montagem, que ele assume
como necessidade mesmo esse ar caleidoscópico
de que uma coisa leva à outra mas não
necessariamente, de que uma coisa pode negar a outra,
uma coisa pode complementar a outra, e durante o filme
inteiro isso é importante para sua estrutura,
embora no trabalho fino, se você lança
um olhar atento, é impressionante como tem aí
dentro uma lógica muito clara, em cada um desses
pedacinhos de caleidoscópio. Mas me impressiona
acima de tudo a estrutura do discurso marcado pelo início
e pelo final. E aí a gente volta para a cena
da implosão desimplodida, que muito interessantemente
é o plano inicial do seu filme e o plano final
do filme do Babenco, que termina com a implosão
de fato, mas acima de tudo me interessa muito o final,
porque você vai para a palavra das autoridades,
e isso foi questionado em alguns debates nos quais eu
estava presente, inclusive como se o filme tivesse dando
a voz oficial, como se o filme estivesse se entregando,
por ter patrocínios estatais etc, e é
impossível você ver o filme sob essa leitura,
jamais você pode encarar aquilo como a voz oficial,
porque o comentário está na imagem o tempo
inteiro, mas mais do que isso: você poderia terminar
o filme ali que você teria um filme muito forte,
começa com a implosão, termina com a voz
oficial. Mas você sabe que precisa voltar ao presídio,
mesmo fechando o seu discurso, com o filme que você
fez não há como terminar sem ser com os
detentos, sem ser com os autores do filme. E você
volta para o Claudinho declamando primeiro aquele poema,
mas acima de tudo você volta para as mesmas fotos
que a gente já viu no início do filme,
só que ao invés do prontuário,
são fotos em close, aonde você dá
a eles os nomes que são os nomes pelos quais
eles escolhem serem chamados. Essa é a prova
maior da grandiosidade do filme, porque aí você
entrega qual era o seu trabalho de fato: dar identidade
para aquelas pessoas, elas têm direito à
identidade que elas querem construir, e não a
identidade que você bota lá no início
que é o cara dizendo "eu sou esse cara,
esse é meu número". Essa é
a identidade que o Estado deu para eles, e o filme então
passa a funcionar como uma obtenção de
identidade dessas pessoas. Essa é minha observação
geral sobre o filme, mas eu queria muito que você
falasse sobre isso porque me impressiona, num filme
como o seu, não só a hora que você
chega e diz que está pronta a filmagem, e no
fundo poderia continuar por vinte anos, e na hora da
montagem chega e fala "pronto, é esse o
corte, o filme está pronto". Eu queria que
você falasse menos da analise teórica,
que é minha, você não precisa concordar
nem discordar, mas mais dessa coisa de dizer "é
esse o filme, o que eu tinha para falar". Como
é, depois de doze, dezesseis meses fazendo isso?
PS: É claro que
tudo que a gente faz acaba passando por pequenas escolhas.
Um dos momentos de achado da montagem foi quando eu
entendi que os presos eram apresentados através
dos seus prontuários, dos seus artigos, daquela
foto, e que a gente poderia, sim, depois tirar aquilo
e deixar as pessoas, como você colocou, com os
seus nomes. Ali eles não são mais
"prisioneiros da grade de ferro", vários
deles são ex-"prisioneiros da grade de ferro",
e todos eles o serão mais dia ou menos dia. Foram
essas pessoas que a gente filmou, pensando justamente
nessa questão da aproximação mesmo
do olhar. Primeiro a gente viu eles de longe e eram
prisioneiros, quando a gente vê de perto são
seres humanos. É claro que aquilo é uma
coisa que é linguagem, a gente fez de uma maneira
muito sutil, poética até, muito particular,
a gente teve essa leitura. Fico feliz quando alguém
tem uma leitura como essa, assim como existem outras
leituras interessantes sobre o filme.
AR: O acabamento de um
filme como esse exige muitos recursos, e eu queria destacar
o modo como o Paulo trabalhou e se esmerou na plástica,
na textura dessas imagens. Foi um trabalho exaustivo,
um trabalho exacerbado na estética, como na cena
daquelas fotos.
PS: Foi particularmente
difícil o trabalho com aquelas fotos, porque
elas eram feitas pelos presos e tinham fotos ali feitas
há quinze anos, com muita diferença de
textura, então houve muito trabalho em cima delas.
Com relação ao final do filme, algumas
pessoas dizem que o filme termina com as falas oficiais,
entendem ali como o final do filme, que para mim está
bem além das falas oficiais. As falas são
fundamentais por dois motivos: primeiro por uma necessidade
dos presos. Quando a gente perguntou "o que vocês
querem filmar?", todos os presos disseram que queriam
entrevistar os diretores da cadeia. Isso era uma vontade
deles e minha, anteriormente, no roteiro. E, quando
a gente terminou, era uma necessidade de todo mundo,
a gente queria ouvi-los, não era uma obrigação
do documentarista, de ouvir o outro lado, era uma necessidade
íntima nossa, uma continuação da
nossa curiosidade de saber como aquilo se processava.
É claro que o filme é crítico,
tem essa postura no final, mas de uma maneira muito
respeitosa, inclusive com o governador, respeitando
os erros da sua atuação política,
por ser um erro que se repete. Independente do partido
que está no poder, das pessoas que estão
ali, das preferências pessoais, das trajetórias
políticas, do investimento maior ou menor de
um governo, de um respeito maior ou menor aos diretos
humanos... o que salta aos olhos é que a médio
ou longo prazo só sobra a falência do sistema,
a sua impossibilidade de existir, independente do governo
ser de um partido ou de outro, de direta ou de esquerda.
O que está errado ali está errado para
além da existência de partidos políticos,
ou de governos. Além desse fundamental, tem um
outro dado mais ainda fundamental, de foro íntimo
meu, de não fazer um filme que seja situado como
"esse filme foi feito numa época em que
se demoliu um presídio", e sim "esse
filme foi feito numa época em que se construíam
dezenas de presídios". Isso é motivo
de orgulho para o governador, e é uma coisa bastante
chocante quando algumas pessoas pensam na demolição
do Carandiru como uma página virada na nossa
história, sem pensar que o que foi demolido foi
um prédio e que aquelas 7.500 pessoas não
foram demolidas junto com ele, elas foram transferidas
para outros presídios, que por sua vez vão
ter os seus problemas, iguais ou diferentes, mas que
passam por uma reflexão que o filme pode suscitar.
E, por fim, o poema do Claudinho. É uma leitura
bastante avançada do filme, é uma leitura
de quem montou esse filme por meses, meses e meses,
eu sei que é uma muita informação
para um filme que vem num ritmo mais extenso, e no final
a gente tem uma mudança de ritmo violenta, muita
falação, muita informação,
e uma relação direta entre seqüências
que não teriam essa relação de
forma, elas têm uma relação de conteúdo
direta, entre esses diretores, o poema que vai ser dito
e os prontuários com a música do Raul
Seixas. O poema fala sobre as crianças que estão
vindo, que cometerão seus crimes, que estamos
todos despreparados para lidar com o fato de que essas
pessoas vão surgir, e vão surgir cada
vez mais, e que vão matar, sim, e atuarão
de maneira cada vez mais original, e o Estado atua de
maneira cada vez menos original. E no final tem essa
cantoria, que é uma música do Raul Seixas,
que ouvi a minha inteira, e que de repente adquiriu
um significado totalmente para mim quando aquele preso
cantou. O Raul Seixas se refere à sua calça
colorida, ao seu novo way of life, "eu sou mais
forte que você... me colocaram para dormir numa
cama que eu não queria...", enfim, coisas
que adquirem um significado depois de tudo aquilo que
a gente faz que acaba abrindo de novo. É um final
misterioso para mim, com quilos de ambigüidade
trazidos por aquela música logo depois de um
libelo do PCC, porque aquele poeta termina dando o lema
do PCC e dizendo que o crime vai ficar cada vez mais
original. E esse final aberto era absolutamente fundamental
para a gente não ter a falsa impressão,
depois de ter ficado sete meses lá dentro, ou
depois de duas horas para o espectador que assistir
ao filme, de levantar e falar: "ok, entendi essa
realidade, mais uma página virada na minha vida".
Então essas questões estão abertas
e há ainda muito o que pensar sobre elas, sobre
a questão das cadeias, sobre a questão
do crime, sobre a questão de como a sociedade
vai se relacionar com essas pessoas que estão
presas.
Entrevista realizada por Eduardo Valente, Ruy Gardnier
e espectadores da Sessão Cineclube. Transcrição
de Luiz Carlos Oliveira Jr.
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