A paixão de Ernesto ou
Turismo ideológico
Eis o mais novo filme de Walter
Salles, Diários de Motocicleta, baseado
no relato de viagens pelo continente sulamericano do
então estudante de medicina Ernesto Guevara,
que mais tarde se tornaria o revolcionário Che.
É o primeiro filme de Salles não-falado
em português se excetuarmos A Grande
Arte , mas nos parecem que as preocupações
do realizador são as mesmas, apenas transmutando
o foco de interesse do Brasil para o sonho da América
Latina como um todo (o panamericanismo muito em voga
nos anos 50-60). Menos um desejo revolucionário
de libertação do que um ensejo moral de
auto-descoberta e auto-valorização. Isso
coloca já de partida alguns problemas, tanto
de natureza política quanto do material que tem
em mãos: os diários de um homem que entrou
para a História defendendo algo frontalmente
diferente das idéias que o realizador quer passar
com seu filme. Não entremos aqui no mérito
do sucesso da Revolução Cubana ou no papel
que Che desempenha desde sua morte no imaginário
da esquerda mundial ao lado de nomes tão díspares
quanto John Lennon e, ao menos no Brasil, Raul Seixas
mesmo que isso traga questões muito interessantes.
Tampouco nos parece válido aqui instaurar um
tribunal da fidelidade histórica: o que nos parece
importante aqui é entender e avaliar o retrato
que Walter Salles faz de seu personagem e como ele inscreve
seu percurso de juventude como tomada de consciência
política, omitindo ou "equalizando para
baixo" certas características e realçando
ou "equalizando para cima" certas outras,
dentro do discurso que o próprio filme quer construir
sobre panamericanismo e esperança política.
Diários de Motocicleta
é um filme construído como romance de
formação: pega seu protagonista num estado
juvenil de inocência, e ao longo de um processo
cheio de aprendizagens, transforma-o num homem. Assim,
vemos os amigos Ernesto e Alberto decidindo viajar pela
América do Sul estritamente pela aventura, como
meninos argentinos bem-nascidos e ávidos por
um pouco de emoção antes de ingressarem
na vida adulta que os espera (Guevara está prestes
a se formar em medicina). Um início de filme
que nos lembra Jackass: eles adoram cair da motocicleta,
arrumar confusão em bailes, aplicar pegadinhas
para conseguir comida ou conserto do veículo.
Tão logo a motocicleta é deixada de lado,
antes do meio do filme, os diários seguem sozinhos
e se adensam, chegando a um clímax de consciência
quando, sentados sob uma fogueira, Ernesto sente vergonha
de si mesmo ao estar viajando turisticamente, ao passo
que seus convivas bolivianos têm seu êxodo
forçado por serem comunistas. A partir daí,
a injustiça social passa a ser gritante aos olhos
do futuro Che, que vê o sofrimento de seus iguais
exposto em preto e branco, olhando de frente para a
câmera, referência inequívoca e um
tanto estranha a Sebastião Salgado. Por fim,
Ernesto, especializando-se em hanseníase na universidade,
visita no fim da viagem uma casa de leprosos, na qual
dá vazão pela primeira vez ao sentimento
de indignação frente às injustiças
que vê: no dia de seu aniversário, esse
homúnculo asmático decide atravessar a
nado o rio que separa os leprosos dos sãos, porque
quer comemorar a data com aqueles com quem mais se identifica
(esse o clímax narrativo do filme).
Mencionemos apenas brevemente
a bizarra homologia estabelecida pelo filme entre leprosos
e injustiçados da América Latina, e da
mesma forma só passemos os olhos na desajeitada
construção dramática que faz da
simples travessia de um rio que não parece nada
caudaloso o motivo de uma decupagem frenética
e de uma banda sonora cheia de tensão emocional.
O que importa acima de tudo a Diários de Motocicleta
é a construção de um Che-Cristo,
de um Che-santo, desprovido de talento com as mulheres
(é deixado por uma, não tem manejo para
abordar outra) mas com um incrível sentimento
de compaixão para com as mazelas do mundo e as
injustiças que dão origem a elas. O importante
não é a carne e, convenhamos, mudança
social é também questão de carne
, mas o espírito. Mas é através
da construção idealista no sentido
filosófico mais vulgar do termo de um
espírito caridoso de solidariedade que nosso
herói acede a sua aprendizagem: Ernesto vê,
Ernesto compreende, Ernesto sofre. É menos indignação
do que dó, menos ódio do que sentimento
de reparação. Algo que os nietzscheanos
chamam de "reatividade" das paixões
fracas. Um retrato que em nada supõe gestos e
intenções do homem que escreveu coisas
como: "O ódio como fator de luta. Um inquebrantável
ódio pelo inimigo, que o impulsiona para além
de suas limitações naturais, convertendo-o
numa máquina de matar fria, violenta, efetiva
e seletiva. Assim deverão ser nossos soldados."
Se aqui fazemos essa citação,
é menos para comparar o Guevara que vemos na
tela com o Che histórico. É antes de tudo
porque nos parece que Diários de Motocicleta
pega um tema absolutamente político e realiza
em sua narrativa e na trajetória operada pela
mise-en-scène uma profunda omissão do
político. Não no sentido de que o filme
centra-se nas peripécias para esquecer o lado
social, muito longe disso. É a própria
"solução" que o filme parece
dar às questões sociais erigidas pela
narrativa que torna esses Diários incrivelmente
despolitizados. O Ernesto do filme é um homem
benevolente, caridoso, um médico que transmuta
seu foco de interesse do corpo para o espírito
torna-se uma espécie de "médico
social", pois. Mais um enfermeiro do que um médico,
na verdade. Existe política (e talvez boa medicina)
quando alguém diz: algo precisa mudar, e precisa
mudar dessa forma. Quando alguém diz que alguma
coisa precisa ser remediada mesmo que não se
atinja o foco (do problema, da doença), é
aí que entram as almas caridosas, as freiras
e os enfermeiros. Na lacuna entre os dois, perde-se
o político.
Em sua construção,
Diários de Motocicleta é muito
parecido com A Paixão de Cristo, de Mel
Gibson, muito embora tenha-se a sensação
de ter saindo da história de um achando que viu-se
a história de outro. O interesse principal de
Mel Gibson é dar corpo a um epetáculo
de violência, no qual as forças decisórias
em questão (a política) são muito
menos importantes do que o tecido sentimental que elas
criam (única exceção feita ao personagem
de Pilatos, devidamente contextualizado e assim "politizado").
A injustiça se dá porque a carne (a avidez,
o poder) é maior do que o espírito. Poder-se-ia
dizer o mesmo dos Diários, simplesmente
trocando o espetáculo da violência pelo
miserabilismo. Solidariedade não diz o mesmo
que violência, mas os dois operam, mesmo que em
sentido inverso, da mesma forma: chamam a atenção
para os efeitos fazendo abstração do próprio
jogo de forças que origina esses efeitos. E acaba
fazendo voltar aquela velha e caduca discussão
do humanismo que diz ser preciso lutar contra nossos
instintos baixos para atingir os espíritos mais
altos. Ora, nos parece que toda questão política
é uma luta travada entre espíritos,
algo que se passa no conflito de um espírito
que quer alguma coisa contra outro que quer outra. Mudança
apenas de perspectiva. E humanidade do humano.
E aqui é preciso voltar
a algo que só foi tocado de leve mais acima:
a homologia construída pelo filme entre o povo
injustiçado e os leprosos. É a parte final
do filme, e é o momento da guinada definitiva
do protagonista em busca daquilo que procura. Ora, se
vemos no ato da travessia do rio a continuação
de um movimento que o filme vai aos poucos desenvolvendo,
é justamente porque o filme constrói uma
visão dos camponeses como doentes, pessoas às
quais devemos mostrar mais compaixão do que respeito,
um amor mais caridoso do que fraternal. Até próprio
Ernesto, não a figura humana, mas o protagonista
de Diários em algum momento trata o "doente"
como igual. Nesse momento, curiosamente, o filme cria
um fosso nojento entre encenação e narrativa.
Trata-se do momento em que, chegando à casa de
leprosos, Ernesto decide apertar a mão do doente
sem utilizar luva, uma vez que leprosos em tratamento
não transmitem a doença. O próprio
jovem audacioso não encara isso como nenhum ato
de bravura, mas o diretor do filme sim. Abjetamente
cortando de um plano médio para um close do aperto
de mãos, a mise-en-scène do filme ostenta
com espalhafato aquilo que para o próprio personagem
não constitui senão um simples gesto de
respeito para com um igual. Ernesto com seu ato restitui
dignidade ao leproso, que até se espanta com
o gesto; o filme, ao contrário, o trata como
as freiras que cuidam da casa, observando-o como leproso
mais do que como ser humano. Forma, já dizia
o ditado, é conteúdo, e talvez o mais
profundo conteúdo de todos.
Nada foi dito do andamento do
filme, que diversas vezes parece mal-ajambrado e flutuando
no tempo sem muito sentido, ou das atuações
dos intépretes, que são no geral muito
críveis e verossímeis. As intenções
do filme, no entanto, vão muito além de
fazer um filme bem-feito, e é nelas que reside
o imenso problema que é a forma como Walter Salles
nos faz ver o mundo em seus filmes. Que Salles sabe
contar histórias muito mais do que grande parte
dos cineastas brasileiros, isso nem precisa dizer. Mas
que seus filmes pareçam dirigidos menos a admiradores
de cinema do que a jurados de júri ecumênico,
essa é uma enfermidade mais difícil de
diagnosticar.
Ruy Gardnier
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