DIÁRIOS DE MOTOCICLETA
Walter Salles, The Motocycle Diaries, EUA/Alemanha/Reino Unido/Argentina, 2004

A paixão de Ernesto ou Turismo ideológico

Eis o mais novo filme de Walter Salles, Diários de Motocicleta, baseado no relato de viagens pelo continente sulamericano do então estudante de medicina Ernesto Guevara, que mais tarde se tornaria o revolcionário Che. É o primeiro filme de Salles não-falado em português – se excetuarmos A Grande Arte –, mas nos parecem que as preocupações do realizador são as mesmas, apenas transmutando o foco de interesse do Brasil para o sonho da América Latina como um todo (o panamericanismo muito em voga nos anos 50-60). Menos um desejo revolucionário de libertação do que um ensejo moral de auto-descoberta e auto-valorização. Isso coloca já de partida alguns problemas, tanto de natureza política quanto do material que tem em mãos: os diários de um homem que entrou para a História defendendo algo frontalmente diferente das idéias que o realizador quer passar com seu filme. Não entremos aqui no mérito do sucesso da Revolução Cubana ou no papel que Che desempenha desde sua morte no imaginário da esquerda mundial ao lado de nomes tão díspares quanto John Lennon e, ao menos no Brasil, Raul Seixas – mesmo que isso traga questões muito interessantes. Tampouco nos parece válido aqui instaurar um tribunal da fidelidade histórica: o que nos parece importante aqui é entender e avaliar o retrato que Walter Salles faz de seu personagem e como ele inscreve seu percurso de juventude como tomada de consciência política, omitindo ou "equalizando para baixo" certas características e realçando ou "equalizando para cima" certas outras, dentro do discurso que o próprio filme quer construir sobre panamericanismo e esperança política.

Diários de Motocicleta é um filme construído como romance de formação: pega seu protagonista num estado juvenil de inocência, e ao longo de um processo cheio de aprendizagens, transforma-o num homem. Assim, vemos os amigos Ernesto e Alberto decidindo viajar pela América do Sul estritamente pela aventura, como meninos argentinos bem-nascidos e ávidos por um pouco de emoção antes de ingressarem na vida adulta que os espera (Guevara está prestes a se formar em medicina). Um início de filme que nos lembra Jackass: eles adoram cair da motocicleta, arrumar confusão em bailes, aplicar pegadinhas para conseguir comida ou conserto do veículo. Tão logo a motocicleta é deixada de lado, antes do meio do filme, os diários seguem sozinhos e se adensam, chegando a um clímax de consciência quando, sentados sob uma fogueira, Ernesto sente vergonha de si mesmo ao estar viajando turisticamente, ao passo que seus convivas bolivianos têm seu êxodo forçado por serem comunistas. A partir daí, a injustiça social passa a ser gritante aos olhos do futuro Che, que vê o sofrimento de seus iguais exposto em preto e branco, olhando de frente para a câmera, referência inequívoca e um tanto estranha a Sebastião Salgado. Por fim, Ernesto, especializando-se em hanseníase na universidade, visita no fim da viagem uma casa de leprosos, na qual dá vazão pela primeira vez ao sentimento de indignação frente às injustiças que vê: no dia de seu aniversário, esse homúnculo asmático decide atravessar a nado o rio que separa os leprosos dos sãos, porque quer comemorar a data com aqueles com quem mais se identifica (esse o clímax narrativo do filme).

Mencionemos apenas brevemente a bizarra homologia estabelecida pelo filme entre leprosos e injustiçados da América Latina, e da mesma forma só passemos os olhos na desajeitada construção dramática que faz da simples travessia de um rio que não parece nada caudaloso o motivo de uma decupagem frenética e de uma banda sonora cheia de tensão emocional. O que importa acima de tudo a Diários de Motocicleta é a construção de um Che-Cristo, de um Che-santo, desprovido de talento com as mulheres (é deixado por uma, não tem manejo para abordar outra) mas com um incrível sentimento de compaixão para com as mazelas do mundo e as injustiças que dão origem a elas. O importante não é a carne – e, convenhamos, mudança social é também questão de carne –, mas o espírito. Mas é através da construção idealista – no sentido filosófico mais vulgar do termo – de um espírito caridoso de solidariedade que nosso herói acede a sua aprendizagem: Ernesto vê, Ernesto compreende, Ernesto sofre. É menos indignação do que dó, menos ódio do que sentimento de reparação. Algo que os nietzscheanos chamam de "reatividade" das paixões fracas. Um retrato que em nada supõe gestos e intenções do homem que escreveu coisas como: "O ódio como fator de luta. Um inquebrantável ódio pelo inimigo, que o impulsiona para além de suas limitações naturais, convertendo-o numa máquina de matar fria, violenta, efetiva e seletiva. Assim deverão ser nossos soldados."

Se aqui fazemos essa citação, é menos para comparar o Guevara que vemos na tela com o Che histórico. É antes de tudo porque nos parece que Diários de Motocicleta pega um tema absolutamente político e realiza em sua narrativa e na trajetória operada pela mise-en-scène uma profunda omissão do político. Não no sentido de que o filme centra-se nas peripécias para esquecer o lado social, muito longe disso. É a própria "solução" que o filme parece dar às questões sociais erigidas pela narrativa que torna esses Diários incrivelmente despolitizados. O Ernesto do filme é um homem benevolente, caridoso, um médico que transmuta seu foco de interesse do corpo para o espírito – torna-se uma espécie de "médico social", pois. Mais um enfermeiro do que um médico, na verdade. Existe política (e talvez boa medicina) quando alguém diz: algo precisa mudar, e precisa mudar dessa forma. Quando alguém diz que alguma coisa precisa ser remediada mesmo que não se atinja o foco (do problema, da doença), é aí que entram as almas caridosas, as freiras e os enfermeiros. Na lacuna entre os dois, perde-se o político.

Em sua construção, Diários de Motocicleta é muito parecido com A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, muito embora tenha-se a sensação de ter saindo da história de um achando que viu-se a história de outro. O interesse principal de Mel Gibson é dar corpo a um epetáculo de violência, no qual as forças decisórias em questão (a política) são muito menos importantes do que o tecido sentimental que elas criam (única exceção feita ao personagem de Pilatos, devidamente contextualizado e assim "politizado"). A injustiça se dá porque a carne (a avidez, o poder) é maior do que o espírito. Poder-se-ia dizer o mesmo dos Diários, simplesmente trocando o espetáculo da violência pelo miserabilismo. Solidariedade não diz o mesmo que violência, mas os dois operam, mesmo que em sentido inverso, da mesma forma: chamam a atenção para os efeitos fazendo abstração do próprio jogo de forças que origina esses efeitos. E acaba fazendo voltar aquela velha e caduca discussão do humanismo que diz ser preciso lutar contra nossos instintos baixos para atingir os espíritos mais altos. Ora, nos parece que toda questão política é uma luta travada entre espíritos, algo que se passa no conflito de um espírito que quer alguma coisa contra outro que quer outra. Mudança apenas de perspectiva. E humanidade do humano.

E aqui é preciso voltar a algo que só foi tocado de leve mais acima: a homologia construída pelo filme entre o povo injustiçado e os leprosos. É a parte final do filme, e é o momento da guinada definitiva do protagonista em busca daquilo que procura. Ora, se vemos no ato da travessia do rio a continuação de um movimento que o filme vai aos poucos desenvolvendo, é justamente porque o filme constrói uma visão dos camponeses como doentes, pessoas às quais devemos mostrar mais compaixão do que respeito, um amor mais caridoso do que fraternal. Até próprio Ernesto, não a figura humana, mas o protagonista de Diários em algum momento trata o "doente" como igual. Nesse momento, curiosamente, o filme cria um fosso nojento entre encenação e narrativa. Trata-se do momento em que, chegando à casa de leprosos, Ernesto decide apertar a mão do doente sem utilizar luva, uma vez que leprosos em tratamento não transmitem a doença. O próprio jovem audacioso não encara isso como nenhum ato de bravura, mas o diretor do filme sim. Abjetamente cortando de um plano médio para um close do aperto de mãos, a mise-en-scène do filme ostenta com espalhafato aquilo que para o próprio personagem não constitui senão um simples gesto de respeito para com um igual. Ernesto com seu ato restitui dignidade ao leproso, que até se espanta com o gesto; o filme, ao contrário, o trata como as freiras que cuidam da casa, observando-o como leproso mais do que como ser humano. Forma, já dizia o ditado, é conteúdo, e talvez o mais profundo conteúdo de todos.

Nada foi dito do andamento do filme, que diversas vezes parece mal-ajambrado e flutuando no tempo sem muito sentido, ou das atuações dos intépretes, que são no geral muito críveis e verossímeis. As intenções do filme, no entanto, vão muito além de fazer um filme bem-feito, e é nelas que reside o imenso problema que é a forma como Walter Salles nos faz ver o mundo em seus filmes. Que Salles sabe contar histórias muito mais do que grande parte dos cineastas brasileiros, isso nem precisa dizer. Mas que seus filmes pareçam dirigidos menos a admiradores de cinema do que a jurados de júri ecumênico, essa é uma enfermidade mais difícil de diagnosticar.

Ruy Gardnier