DERRAME DE EMOÇÕES

A primeira cena de Jackie Brown parece redescobrir algo que havia se perdido em algum momento, algo que não parecia mais ser conhecido pelo cinema e cuja ausência dava vazão a uma sensação amnésica, imemorial. Tarantino nos passa a impressão de estar descobrindo – e em cinema o que vale é sempre a impressão, aquilo que se imprime e faz-se aparente. A descoberta? Nem a parede em forma de mosaico, nem a esteira do aeroporto. Estas peças, tal qual Tarantino as escolhe filmar, nada mais são que uma inércia, um peso do qual um cineasta contemporâneo não tem como escapar. É preciso dobrá-las, implodi-las. O diretor parece querer mostrar que aquilo que o cinema (e vale lembrar já neste ponto do texto: a obra de Tarantino se funda no simples fato de que, quando chega aos seus 100 anos, o cinema deixa de ser apenas o registro de uma imagem histórica e passa a ser a própria história dessa imagem) podia conhecer com a plasticidade, já conhece por completo; conhece demais até, poderia ser acrescentado. É necessária outra pulsão que anime o movimento, que faça do cinema novamente "a imagem em trabalho" (para roubar a expressão de um dos favoritos de QT). O décor não abandona seu estatuto de natureza morta até a aparição de Pam Grier em tela. Uma vez que existe esse corpo – um corpo de mulher, e especificamente de uma dama que simboliza e compreende o fato de que certos filmes existem –, as formas ganham novamente um movimento que o cinema – e só o cinema – pode lhes dar.

TO SET THINGS IN MOTION (pictures, movies, films, flicks)

A expressão, que traduzindo da língua inglesa significaria algo próximo de "dar movimento às coisas", ajuda bastante a compreender algo que é profissão de fé no cinema de Tarantino. Pictures, movies, films e flicks são designações diversas para o que aqui no Brasil chamamos apenas de "filmes". Dar uma ordem de "Mexa-se!" a esse manancial – não só porque em cinema as formas se agitam devido a corpos que operam algum tipo de trabalho, como também pelo fato de que são esses corpos os que cativam a câmera a movimentar-se ao redor deles – implicará também, para Tarantino, na feitura de uma pequena (porém admirável) genealogia de sua história de cinema. Um cinema, vale salientar, que é propriedade e produto exclusivo de Tarantino, da sua inacreditável memória fílmica e sígnica e da capacidade de não traçar linhas que distinguem uma arte pretensamente nobre de outra mais indigna. Por tudo isso que no universo Tarantino não existem maiores distinções entre flicks e pictures, movies e films: finalmente (e até que enfim) John Cassavetes pode respirar ao lado de Jack Hill, Welles convive harmoniosamente com Samuel Fuller, Peter Bogdanovich pode dialogar brevemente com John Flynn e Jean-Luc Godard copia descaradamente de Brian De Palma.

Se o que chamamos hoje de maneirismo precisou procurar por uma linha de pensamentos, referências e códigos próprios para poder se expressar, é em Jackie Brown – e não em Pulp Fiction, ainda uma grande obra – que acaba por encontrar seu registro mais sincero, poético e melhor articulado. O filme de Tarantino pertence a uma confraria que abriga obras-primas seminais da década de 90, experiências inestimáveis e fundamentais para se compreender os rumos do cinema contemporâneo: é junto a Irma Vep, O Pagamento Final, Gosto de Cereja, Amores Expressos, New Rose Hotel e Edward Mãos de Tesoura que Jackie fica mais à vontade, mais até que dos dois trabalhos anteriores de seu diretor.

DE JACK HILL A JACKIE BROWN

É oficial: o cinema de Jack Hill define e norteia a maioria dos rumos que Tarantino toma em seu filme. Todas as influências possíveis de Hill – The Big Doll House, Coffy, Foxy Brown e Switchblade Sisters – abrem para Tarantino um leque de opções, de alternativas para aproximações e diálogos com outras obras, cineastas e momentos da história do cinema. A escolha não é em nada casual ou aleatória: Hill é do grupo de cineastas das décadas de 60 e 70 que herdam de uma trajetória instaurada por um gueto do cinema de gênero comercial norte-americano das décadas de 30, 40 e 50. Mas para que exista o cinema de Hill, tendo os resultados e os contextos de suas produções postos em perspectiva, é preciso que exista também o boom dos cinemas novos nas décadas de 60 e 70. É desta forma que, por exemplo, nos 70 as produções de gênero (AIP ou New World Pictures, Sam Arkoff ou Roger Corman) não necessariamente continuam sendo feitas em estúdios, cria-se todo um novo referencial para experimentações com formatos narrativos e dramatúrgicos e instaura-se a possibilidade de se jogar com os passados dos gêneros. Isso tudo passa tanto pelo cinema de Tarantino quanto o de Hill; importante notar, contudo, que os dois diretores encaram estes princípios como possíveis pontos de partida, jamais como fins ou apenas resultados a serem obtidos (poderíamos citar a penca de cineastas que acreditam que metalinguagem e excessos estéticos são recursos válidos por si próprios e metas a serem alcançadas).

Se o interesse de Tarantino por Hill acaba indo além do meramente referencial, é pelo fato de que ambos são cineastas altamente informados e instruídos por uma certa concepção de cinema: não mais uma questão de gêneros e formatos, mas sim de drama, recito e personagens (ou corpos, como vemos em Hill). É desta forma – e não de outra – que nos vemos de repente em situações de um escopo dramático dignas de um Samuel Fuller ou um Douglas Sirk (Jackie Brown, Coffy e Switchblade Sisters), que Orson Welles e Fritz Lang fazem sombra e impõem enormes influências formais (as elipses de Foxy Brown, o panoptismo ontológico na seqüência da troca de bolsas em Jackie Brown ou a articulação dos episódios de Pulp Fiction) ou que somos lembrados de Anthony Mann e Raoul Walsh pelo peso mitológico dos entrechos (o homoerotismo, os joguetes entre intérpretes e as traições em Cães de Aluguel; as paixões avassaladoras e perdidas e toda a tramóia envolvendo gangues e domínio de poder em Switchblade Sisters).

Hill e Tarantino. Hill com Tarantino, talvez fosse mais interessante (e frutífero mesmo) pensar. Dois cineastas que encaram de forma semelhante a profissão, que têm a necessidade de mediar o excesso histórico do tipo de cinema que realizam por um processo muito forte ligado às suas respectivas memórias. Coisas existiram; algumas continuam existindo, outras não podem existir mais, e para que essas últimas possam existir em seus filmes faz-se necessário um esforço enorme de contextualização e representação – lições que Tarantino e Hill aprendem com o cinema moderno.

ANTI-MABUSE

Ou, em outras palavras, o grande trunfo de Tarantino, o momento em que as lições aprendidas com De Palma e com o Sergio Leone de Era uma Vez na América vêm finalmente à tona. As seqüências no Del Amo Shopping Mall, onde mestria e aprendizagem tornam-se intercambiáveis, percepção e teorização caminham de mãos dadas. E de mãos dadas de fato seguem: é só pensarmos na união entre Jackie Brown e o agente de fianças Max Cherry. Cherry, como diz Filipe Furtado em seu texto, é o homem que olha; Jackie Brown é aquela que media esse olhar, que o transforma numa mise en scène. Articular visualmente todas as ações de policiais disfarçados, transeuntes de shopping center, trambiqueiros profissionais e aquilo que importa no meio disso tudo: não, não a maleta que contém U$ 500.000,00, mas Jackie Brown. Tal esforço só pode partir de um olhar disposto a separar de um excesso de informações aquilo que importa, a cereja no bolo; é com calma e precisão, portanto, que esse olhar será construído. Cena fundamental para compreendermos a paciência e entrega de Cherry: durante o "ensaio" para a troca de bolsas que é pivô de toda a trama do filme (através das quais será efetuado o golpe que dará U$ 500.000,00 ao sortudo que se apossar da bolsa certa), Cherry senta numa das várias mesas da praça de alimentação onde será realizada a troca. O ponto escolhido permite a observação de boa parte de várias das ações que compõem o golpe, mas não é de forma alguma o local perfeito, o olhar perfeito. Mais geólogos que arquitetos, Tarantino e Cherry se contentam em prestar bastante atenção apesar das possíveis limitações de suas escolhas. Aprendem coisas durante seus percursos homólogos, mas também conseguem aplicar e fazer uso daquilo que conhecem de uma forma certeira, inequívoca.

Criar para Pam Grier um filme espetacular repleto de reviravoltas, personagens cativantes e macabros, situações inverossímeis e momentos audaciosos; e, ao mesmo tempo, lançar um olhar repleto de carinho e respeito por essa figura que numa tela de cinema é nada menos que impressionante. É esta a força do olhar de Max Cherry, o herói Hawksiano no qual Tarantino põe o máximo de si mesmo.

MORAL DA CÂMERA

Talvez existam vários tipos de cineastas, ou talvez apenas dois ou três. Mas o que isso importa? Apenas que ao contextualizarmos o surgimento de Jackie Brown após Cães de Aluguel e Pulp Fiction fica possível perceber que o esforço de provar como débeis as acusações de uma provável fissura ética/estética nos filmes assinados Quentin Tarantino parte muito mais dos próprios filmes de Tarantino que de qualquer outra fonte. Uma relação moral entre sujeito e objeto, entre encenador e a matéria de sua encenação, se estabelece em cinema naquilo que atravessa a objetiva da câmera, na distância que separa e aproxima a câmera de seu sujeito, no momento em que um corte é efetuado ou não. Uma moral de cinema não é técnica, mas cênica; não se trata jamais de um dispositivo, mas sim de algo que desde Welles e Godard orienta todos os horizontes vislumbrados pelo cinema moderno, e que por isso não se sujeita a expedientes ou diretrizes.

É principalmente na seqüência final de Jackie Brown que nos surge a resposta avassaladora: os difamadores de Tarantino são de fato bem menos interessantes e complexos que a obra do cineasta nela mesma. O lento movimento de zoom em plano-contraplano que insiste em não abandonar o momento da separação de Jackie e Max já seria o suficiente para provar quão equivocadas são as acusações de amoralidade deste cinema. Mas a prova cabal surge quando o diretor escolhe prosseguir o último plano de Jackie, o da sua partida, com o plano em que Max percebe o que a ausência dela significa (utilização impressionante da cenografia e criação de um espaço cênico riquíssimo em signos, tudo isso obtido através de um brilhante trabalho de operação de câmera). Nos aproximamos lentamente das feições de Max, e não podemos agradecer suficientemente Robert Forster pela inacreditável interpretação com a qual nos presenteia (e que coroa a carreira deste que é possivelmente o grande herdeiro de Warren Oates). Tarantino parece de certa maneira esperar por tudo que o rosto deste homem pode acumular, e é necessário não só muito cuidado como também um enorme respeito para com esse senhor de 50 e alguns anos. O fundo do escritório é completamente abstraído por uma saída de foco, e neste momento nada resta a não ser encararmos o rosto de Max de uma forma total. Tudo ou nada no instante seguinte: anteriormente boquiaberto como se estivesse à espera de uma reação, Max cola seu lábio inferior com o superior, e na banda sonora entra Across the 110th Street, a música de Bob Womack com a qual o filme se abre. O homem que decide tirar o foco por completo no momento em que Max se dirige a uma salinha para poder chorar a ausência de uma paixão, fazendo a câmera chorar junto com o personagem filmado; pois bem, este homem é digno da mais profunda admiração.

Na cena seguinte, o derrame de emoções de Jackie: escutando a música de Womack no rádio de seu carro, ela percebe toda a tristeza de seu momento de glória (é ela quem acaba ficando com a fortuna em dinheiro). O percurso moral de Tarantino se completa: seus personagens podem até sair vitoriosos quando tudo está dito e feito, mas as ausências que tornam possíveis os momentos triunfais são sentidas da maneira mais dolorosa possível. É no meio deste derrame de emoções, desta epifania de sentimentos, que Tarantino confirma toda a beleza de seu cinema.


Bruno Andrade

 

 




Pam Grier em Jackie Brown, de Quentin Tarantino