Complicado tomar este Madrugada dos Mortos numa
exposição lado a lado com o O Despertar
dos Mortos, clássico de George Romero aqui
refilmado. O próprio filme toma rumos um tanto
diferentes, como apenas usar o ponto de partida do original
como base da trama - isso apesar do filme vez ou outra
querer lembrar tratar-se de uma releitura, emulando
falas cheias de sentido no original, e aqui de forma
geral vazias (porque interessado em outros elementos).
Mas, é um choque muito pesado colocar uma obra
com força quase inalcançável enquanto
cinema ao lado da estréia em longas de um cineasta
- que, se modesta ao lado daquela obra, não deixa
de ser por si só (o mais importante) um belo
filme.
Os caminhos são um bocado opostos desde o princípio:
enquanto no filme de Romero o caos já está
instalado, e a SWAT espalhada pelos EUA tentando conter
os mortos-vivos, aqui Snyder e o roteirista James Gunn
(ex-membro da Troma) fazem questão de mostrar
a paz contraposta ao caos. Snyder faz uso de planos
aéreos bastante interessantes, que dão
a impressão de que a cidade seja apenas uma arquitetura
desenhada com vida – Snyder extrai força destes
momentos, logo no princípio, e consegue estabelecer
bem a relação com a personagem de Sarah
Polley, que será uma guia do filme ao caos. Enquanto
assistimos desespero dela, e sua fuga ao ver a família
transformada em seres famintos e canibais, já
fica clara a capacidade de Zack Snyder em construir
climas, mesmo que diversas vezes munidos dos efeitos
sonoros (bem usados, logo bem-vindos). Não deixa
de ser curioso a opção de se usar os zumbis
velozes, contrariando os lendários (lentos porque
mortos), como aliás havia feito Danny Boyle em
seu Extermínio – na verdade, Extermínio
é de tal forma em seu discurso oposto a obra
de Romero, que chega a ser bisonho notar que Boyle quase
refilme uma obra do cineasta em metade de seu filme.
Neste aspecto, da proximidade de idéias, mas
também da capacidade de as trabalhar dentro das
noções de cinema, este Madrugada dos
Mortos vai se posicionar quase que como um anti-Extermínio.
Se Snyder parece um tanto desligado de um uso mais interessante
do shopping enquanto espaço social-comercial,
ou mesmo fisíco (ainda que o filme desenvolva
aos poucos alguma exploração deste), fica
sempre claro um interesse em mostrá-lo como um
espaço opressor - seja pelo comportamento dos
seguranças quando o grupo de protagonistas adentra
o local, seja num belo plano que mostra o início
do cercamento do shopping por parte dos mortos-vivos
logo após os personagens serem ignorados por
um helicóptero (que o plano denuncia ao mostrar
a quantidade absurda e totalmente visível de
avisos de ajuda e de sobreviventes no local). Snyder
acaba estabelecendo uma relação com o
espaço bastante complicada – mesmo quando os
personagens passam pelo seu momento 'diversão'
no local, tentando a sua maneira sobreviver na situação,
há algo que impede que aquilo se complete, que
as ações (seja os que jogam xadrez, seja
o casal que se junta, ou o que trepa) soem livres de
um lado escuro e tenebre.
Outro uso interessante do cineasta é a imposição
da bandeira americana, ícone máximo do
orgulho local, sempre com o mesmo aspecto opressor e
crítico. Um dos seguranças do shopping
diz logo ao começo, enquanto vê o caos
pela TV (!), "America always sorts it's shit out"
- um dos últimos planos do filme mostra Ving
Rhames e os poucos sobreviventes em um barco, se afastando
da terra firme, enquanto ao seu lado balança
a bandeira americana - mas ela já não
parece mais bela como a princípio, e muito menos
perto de solucionar qualquer problema. Ao contrário,
um dos protagonistas acabara de deixar o grupo, pois
havia sido mordido e sabendo no que se transformaria
prefere observá-los partir e meter uma bala na
cabeça.
Há algumas belas idéias no filme, e talvez
a mais forte delas seja a da comunicação
via placas com Andy, o dono da loja de armas - que isolado
há uma pequena distância do shopping, acaba
se tornando parte integrada daquele grupo de pessoas.
A cena em que ele e Ving Rhames conversam pelas placas
pela primeira vez é certamente uma das mais inspiradas
do filme. Até mais do que meramente a amizade
que os dois personagens constróem dentro daquela
situação imposta a eles, brilha ainda
mais o momento em que todo o grupo interage com ele
- incluindo mais tarde fazer fortes concessões
para que ele seja parte presente de sua tentativa de
escape. A evolução do personagem CJ (Michael
Kelly), que passa de mero babaca à um aliado
bastante inteligente, é também de forte
interesse. Em especial ao se ver que Snyder não
desmistifica nada de sua faceta inicial (ele é
um dos seguranças): ele persiste um sujeito difícil,
mas ao passar do tempo vai estar cada vez mais conectado
àquelas pessoas, ao ponto de ao fim estar disposto
a morrer por eles - fica a dúvida se teria ele
mudado tanto seu comportamento em relação
aos outros, ou os outros mudado em relação
a ele.
Para além das diversas qualidades e funcionalidades
do filme, sobretudo enquanto cinema, há também
pequenas tendências que, embora instantes menores,
mostram um caminho perigoso que o cineasta em alguns
momentos ameaça traçar. Momentos estes
que vão quase evocar um Michael Bay, até
mesmo na fotografia – são uma ou duas cenas,
mas o bastante para se notar que Snyder ainda estava
definindo sua opção arquiteta até
então. Em menor escala, mas presente, também
incomoda que Snyder e Gunn insiram tantos personagens
no local (talvez vislumbrando a necessidade de que alguns
deles se perdessem pelo caminho sem que tivessem de
abdicar dos que lhes interessavam mais), o que acaba
por fazer que muitos deles soem um bocado robóticos.
É importante, então, frisar que Madrugada
dos Mortos tem estes evitáveis momentos que
fazem com que o filme não seja uma viagem mais
regular, o que não pode e nem deve obstruir suas
qualidades quase obrigatórias e imediatas para
um gênero que vinha sofrendo dentro do cinema
americano nos últimos anos com falta de cinema
e sobra de preguiça.
Talvez em último plano seja necessário
colocar que, se para além do cinema o filme é
forte, é no que diz respeito a ele que o filme
mantém sua maior força. Notar como o filme
é extremamente sutil em ir construindo o clima
de incerteza (em parte pela TV, e em dado momento, a
ausência desta), o fim das informações,
o nunca saber do tamanho alcançado até
então pelo caos no mundo; tudo construído
através de puro cinema, e nesta base Snyder vai
ter menos em comum com Romero e mais com uma porção
de outros cineastas mais ligados ao corpo, como Cronenberg
e Bava. As mordidas são filmadas com impressionante
clareza - Snyder faz desde a opção pelo
visual dos zumbis um uso forte desta proximidade com
a fragilidade do corpo. Auxiliado por um forte elenco,
completamente acima da média que se costuma ver
nestes filmes (mesmo que o próprio Romero já
tenha feito uso magnífíco destes tipos
de elenco), Snyder consegue suprir as possíveis
superficialidades dos que vagam no filme. E, apesar
dos pequenos problemas que o filme realmente possui,
Zack Snyder realiza um belo filme, um exemplar absolutamente
cinematográfico.
Guilherme Martins
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