Madrugada dos Mortos
Zack Snyder, Dawn of the dead, EUA, 2004


Complicado tomar este Madrugada dos Mortos numa exposição lado a lado com o O Despertar dos Mortos, clássico de George Romero aqui refilmado. O próprio filme toma rumos um tanto diferentes, como apenas usar o ponto de partida do original como base da trama - isso apesar do filme vez ou outra querer lembrar tratar-se de uma releitura, emulando falas cheias de sentido no original, e aqui de forma geral vazias (porque interessado em outros elementos). Mas, é um choque muito pesado colocar uma obra com força quase inalcançável enquanto cinema ao lado da estréia em longas de um cineasta - que, se modesta ao lado daquela obra, não deixa de ser por si só (o mais importante) um belo filme.

Os caminhos são um bocado opostos desde o princípio: enquanto no filme de Romero o caos já está instalado, e a SWAT espalhada pelos EUA tentando conter os mortos-vivos, aqui Snyder e o roteirista James Gunn (ex-membro da Troma) fazem questão de mostrar a paz contraposta ao caos. Snyder faz uso de planos aéreos bastante interessantes, que dão a impressão de que a cidade seja apenas uma arquitetura desenhada com vida – Snyder extrai força destes momentos, logo no princípio, e consegue estabelecer bem a relação com a personagem de Sarah Polley, que será uma guia do filme ao caos. Enquanto assistimos desespero dela, e sua fuga ao ver a família transformada em seres famintos e canibais, já fica clara a capacidade de Zack Snyder em construir climas, mesmo que diversas vezes munidos dos efeitos sonoros (bem usados, logo bem-vindos). Não deixa de ser curioso a opção de se usar os zumbis velozes, contrariando os lendários (lentos porque mortos), como aliás havia feito Danny Boyle em seu Extermínio – na verdade, Extermínio é de tal forma em seu discurso oposto a obra de Romero, que chega a ser bisonho notar que Boyle quase refilme uma obra do cineasta em metade de seu filme. Neste aspecto, da proximidade de idéias, mas também da capacidade de as trabalhar dentro das noções de cinema, este Madrugada dos Mortos vai se posicionar quase que como um anti-Extermínio.

Se Snyder parece um tanto desligado de um uso mais interessante do shopping enquanto espaço social-comercial, ou mesmo fisíco (ainda que o filme desenvolva aos poucos alguma exploração deste), fica sempre claro um interesse em mostrá-lo como um espaço opressor - seja pelo comportamento dos seguranças quando o grupo de protagonistas adentra o local, seja num belo plano que mostra o início do cercamento do shopping por parte dos mortos-vivos logo após os personagens serem ignorados por um helicóptero (que o plano denuncia ao mostrar a quantidade absurda e totalmente visível de avisos de ajuda e de sobreviventes no local). Snyder acaba estabelecendo uma relação com o espaço bastante complicada – mesmo quando os personagens passam pelo seu momento 'diversão' no local, tentando a sua maneira sobreviver na situação, há algo que impede que aquilo se complete, que as ações (seja os que jogam xadrez, seja o casal que se junta, ou o que trepa) soem livres de um lado escuro e tenebre.

Outro uso interessante do cineasta é a imposição da bandeira americana, ícone máximo do orgulho local, sempre com o mesmo aspecto opressor e crítico. Um dos seguranças do shopping diz logo ao começo, enquanto vê o caos pela TV (!), "America always sorts it's shit out" - um dos últimos planos do filme mostra Ving Rhames e os poucos sobreviventes em um barco, se afastando da terra firme, enquanto ao seu lado balança a bandeira americana - mas ela já não parece mais bela como a princípio, e muito menos perto de solucionar qualquer problema. Ao contrário, um dos protagonistas acabara de deixar o grupo, pois havia sido mordido e sabendo no que se transformaria prefere observá-los partir e meter uma bala na cabeça.

Há algumas belas idéias no filme, e talvez a mais forte delas seja a da comunicação via placas com Andy, o dono da loja de armas - que isolado há uma pequena distância do shopping, acaba se tornando parte integrada daquele grupo de pessoas. A cena em que ele e Ving Rhames conversam pelas placas pela primeira vez é certamente uma das mais inspiradas do filme. Até mais do que meramente a amizade que os dois personagens constróem dentro daquela situação imposta a eles, brilha ainda mais o momento em que todo o grupo interage com ele - incluindo mais tarde fazer fortes concessões para que ele seja parte presente de sua tentativa de escape. A evolução do personagem CJ (Michael Kelly), que passa de mero babaca à um aliado bastante inteligente, é também de forte interesse. Em especial ao se ver que Snyder não desmistifica nada de sua faceta inicial (ele é um dos seguranças): ele persiste um sujeito difícil, mas ao passar do tempo vai estar cada vez mais conectado àquelas pessoas, ao ponto de ao fim estar disposto a morrer por eles - fica a dúvida se teria ele mudado tanto seu comportamento em relação aos outros, ou os outros mudado em relação a ele.

Para além das diversas qualidades e funcionalidades do filme, sobretudo enquanto cinema, há também pequenas tendências que, embora instantes menores, mostram um caminho perigoso que o cineasta em alguns momentos ameaça traçar. Momentos estes que vão quase evocar um Michael Bay, até mesmo na fotografia – são uma ou duas cenas, mas o bastante para se notar que Snyder ainda estava definindo sua opção arquiteta até então. Em menor escala, mas presente, também incomoda que Snyder e Gunn insiram tantos personagens no local (talvez vislumbrando a necessidade de que alguns deles se perdessem pelo caminho sem que tivessem de abdicar dos que lhes interessavam mais), o que acaba por fazer que muitos deles soem um bocado robóticos. É importante, então, frisar que Madrugada dos Mortos tem estes evitáveis momentos que fazem com que o filme não seja uma viagem mais regular, o que não pode e nem deve obstruir suas qualidades quase obrigatórias e imediatas para um gênero que vinha sofrendo dentro do cinema americano nos últimos anos com falta de cinema e sobra de preguiça.

Talvez em último plano seja necessário colocar que, se para além do cinema o filme é forte, é no que diz respeito a ele que o filme mantém sua maior força. Notar como o filme é extremamente sutil em ir construindo o clima de incerteza (em parte pela TV, e em dado momento, a ausência desta), o fim das informações, o nunca saber do tamanho alcançado até então pelo caos no mundo; tudo construído através de puro cinema, e nesta base Snyder vai ter menos em comum com Romero e mais com uma porção de outros cineastas mais ligados ao corpo, como Cronenberg e Bava. As mordidas são filmadas com impressionante clareza - Snyder faz desde a opção pelo visual dos zumbis um uso forte desta proximidade com a fragilidade do corpo. Auxiliado por um forte elenco, completamente acima da média que se costuma ver nestes filmes (mesmo que o próprio Romero já tenha feito uso magnífíco destes tipos de elenco), Snyder consegue suprir as possíveis superficialidades dos que vagam no filme. E, apesar dos pequenos problemas que o filme realmente possui, Zack Snyder realiza um belo filme, um exemplar absolutamente cinematográfico.

Guilherme Martins