CONTRA-REGRA
coluna semanal de televisão

Violência da edição, edições da violência

Está feito, acabou mais uma edição do Big Brother. De interesse mínimo, a não ser a coroação definitiva de que todos os vitoriosos do programa até agora são variáveis do perfil do desconjuntado, do estereótipo do fora-de-lugar (do "neo-caipira" Kleber à "ex-suburbana" Cida), essa 4ª edição do programa indicou que a repetição desmedida do formato tende a transformar as futuras (e previstas) versões do programa numa monotonia pouco capaz de trazer de volta o improviso e as particularidades expressivas esboçadas na primeira temporada.

Dos silêncios, dos tempos mortos, da cadência televisiva diferenciada, restou pouco, muito pouco. O que nos parecia mérito, aos olhos da emissora soava como falha, como problema. Nenhuma outra edição do Big Brother Brasil foi tão fria e tão calculista quanto essa, reflexo de um superdimensionamento do papel da edição no programa e um total desinteresse pelos planos, pelos recortes e pela temporalidade de um programa que supostamente lidaria com um cotidiano de ócio. A edição dramática e musicada das cenas deixou de ser um elemento de chiste, de comentário, para se tornar a estrutura motriz do programa.

Cada mais "eficaz" em transformar os fragmentos de imagem num liquidificador de gêneros pré-moldados, a equipe de edição reinou absoluta, sobrepondo-se a todos os outros níveis de significantes possíveis. Minando o que havia de mais gracioso nas premissas do programa: os jogos de imprevisto, o tempo que não se adequava, o exercício possível de uma dramaturgia menos coordenada por metas pré-estabelecidas. Se restou improviso no BBB, esse agora virou fermento banal para uma profusão de edições musicadas e videografismos, lembrando em muito o trabalho que a emissora costuma realizar com os desfiles de escola de samba: transformar a afetividade e a expressão viva de seus personagens em meros elementos gráficos para um "entretenimento" cômodo do espectador. Esse desejo de controle, de aperfeiçoamento da vida aos modelos já postos dos sub-gêneros televisivos, esvaziou e muito a potencialidade expressiva desse BBB4 – que sobreviveu ao Ibope muito às custas dos "barracos" e "amassos" e a dois personagens (Cida e Thiago) que se desviaram do caminho clichê do "edredon", se transformando no único lampejo de vida dentro de um aquário pouco inspirado. Essa tentação Global para o controle e a padronização da qualidade só não se fizeram mais ridículas (a palavra é forte, mas é necessária) do que seus mea-culpas, suas tentativas de, na figura de Pedro Bial, defender-se de toda e qualquer crítica em tom cínico, auto-indulgente e, por vezes, grosseiro.

Durante os três meses do programa e, principalmente, no programa especial do Domingo (11/04), algumas pérolas da auto-complacência (constrangedoras até mesmo para a mais vaidosa das emissoras) foram desferidas sem a menor vergonha por um Pedro Bial tranquilo em utilizar sua maior habilidade com as palavras para desbancar toda e qualquer crítica dos personagens ao programa (mesmo as mais inocentes) e vender um espetáculo inquestionável e ainda um gesto de incentivo à uma melhor distribuição de renda no país...(Na onda do "merchadinsing social" até BBB virou arremedo de Fome Zero).

Agora, mais do que isso, mais do que essa bajulação quase infantil, a forma com que Pedro Bial respondeu aos questionamentos de seus convidados chegou a níveis extraordinários de onipotência: uma postura dedicada a desbancar qualquer possibilidade de questionamento da edição e/ou mixagem de qualquer imagem ou som do programa; não apenascomplicada politicamente como desconjuntada esteticamente (para um programa que se vende como uma celebração da interação televisiva, do improviso, do inesperado).

Não seria muito mais interessante se a emissora aceitasse seus deslizes e fizesse do especial de Domingo uma grande brincadeira sobre as formas e os jogos de representação do Big Brother ao invés dessa farsa de lavagem "imparcial" de roupa suja?...Ou será que o Núcleo de Jornalismo da Globo – co-responsável pelo programa – não aguentaria o baque?... Diante dessas possibilidades, a emissora prefere a antipatia (!) a aceitar qualquer sinal de crítica (e crítica não no sentido negativo, mas no sentido de um comentário analítico sobre seus dispositivos). Nem mesmos comentários serenos, como os feitos pelo personagem-concorrente Marcelo Dourado, ficaram livres de uma rápida interrupção seguida de um "bem-edicado" deboche.

Sinais de uma identidade autoritária, as pérolas desferidas por Bial refletem a forma com que a emissora utiliza-se de toda a sua rede de programação para desbancar toda e qualquer possibilidade de discurso dissonante. A frase: "Só para esclarecer: no Brasil nunca houve lutas de classe, só de Estado" é um exemplo atroz da tentativa de: 1)esvaziar toda a discussão política possível dentro do programa – e aí não importa se a questão era forçada por esse ou aquele participante no intuito de ganhar a simpatia do público, mas a forma com que a resposta apela para esse "esclarecimento" apolítico e simplista. 2) Reiterar a idéia de Bial/Globo como a voz-que-esclarece, como meio para se chegar aos fatos. "Deixa eu esclarecer" é uma frase das mais pegajosas, ainda mais quando atrelada a um providencial riso da platéia (provavelmente armado por claques).

Essa postura defensiva, intocável, se reiterou ainda na resposta que Bial deu a um dos participantes que questionou a forma como sua personalidade teria sido hiperinflada pela direção do programa: "Ah, mas aí é uma questão do meio...não é da edição". Essa frase, ignorante ou perversa, insinua a televisão como um meio inócuo, sem linguagem, idealizando seus discursos como meros resultados do dispositivo, desconexo de opções estéticas e recortes. "Questão do meio"?- é estranho esse processo: de um lado a Rede Globo se vangloria da qualidade de seus editores e profissionais, de outro trata o resultado discursivo como fenômeno natural do meio sem limites de linguagem e avessa a questionamentos...Nessa defasagem de discursos ou há muito cinismo, ou uma visão incrivelmente arcaica de uma televisão como meio de propagação imparcial de cultura, da busca de uma qualidade vista como elemento concreto e diretivo, fruto direto do trabalho padronizado e da habilidade artesanal (único "talento" aceitável) e longe, muito longe de qualquer opção intelectual ou afetiva...Não é à toa que um amigo meu costuma brincar que a Globo é o melhor exemplo de "ideal totalitário comunista" que o Brasil já teve...Para toda a poderosa emissora, a verdade está na qualidade, e a qualidade..."é uma só", camaradas.
 

Nota 1:
Para não dizerem que eu nunca elogio nada e para falar ainda mais sobre a edição na TV...Brilhante a colagem de imagens e sons apresentadas no Fantástico com cerca de 5 minutos ininterruptos das passagens que marcaram os conflitos entre traficantes do Vidigal e da Rocinha no penúltimo fim-de-semana. A longa sequência de imagens sem a mediação verbal tradicional, deu ao que poderia ser uma reportagem banalizante e "informativa", o peso de um momento de reflexão e suspensão. Sem trilha sonora além do som-direto, sem edição sintetizante, sem "clareza dos fatos". Apenas 5 minutos de imagens coladas e interligadas por breves informações que situavam o espectador dentro da "narrativa" e dos personagens em cena. Um raro e louvável momento de inteligência-estética no telejornalismo brasileiro.

Nota 2:
Mas e o que falar do Sr. Galvão Bueno no último Domingo? Na final estadual que deu o título ao rubro-negro carioca, o narrador e dublê-de-comentarista esportivo, Galvão Bueno, encarnou em sua fala (já conhecida pela viscosidade institucional) o ranço de uma das mais nocivas operações midiáticas: a televisão enquanto suposto exercício de desvelamento imparcial do cotidiano. Ao longo dos 90 minutos de transmissão, Galvão desferiu aleatoriamente comentários sobre o afamado caos de violência na cidade do Rio de Janeiro, citando desde as disputas entre traficantes no bairro da Rocinha até a "violência dos flanelinhas"...Enquanto o jogo andava, bem disputado e com 4 gols marcados, Galvão se preocupava antes de tudo em narrar, num arroubo de repórter-cidadão, as mazelas de nossa cidade. Superinflando cada falta (cada lance de impacto do jogo), o narrador não perdia nenhuma oportunidade para usar os eventos da partida como trampolim para um monótono discorrer sobre a violência (que ele, Galvão, estaria apenas "descrevendo", listando, atualizando). Em nenhum momento Galvão parecia perceber que em seu lugar de narrador (voz off que dá ritmo às imagens), estariam também algumas pistas desse suposto "estado de espírito" negativo. Galvão não percebia que era ele, acima de tudo, a descer o véu de selvageria sobre aquelas imagens. Não é possível que a televisão ainda se ache dona de algum papel de descrição do mundo como se ela, a Tv, não fosse um dos instrumentos de construção daquele mundo que-ali-se-vê. É impossível que qualquer tipo de questionamento da violência através da mídia não tenha como primeiro foco de questão a própria forma discursiva dessa mídia. Galvão Bueno em seu talento para construir verdades-absolutas ao vivo, soava como um alienígena que acabara de cair de pára-quedas no Rio de janeiro (aliás, um absurdo, ele tomar o lugar do Kleber Machado, só porque o campeonato do Rio de janeiro foi o mais bem-sucedido do ano) e que tinha como único objetivo desmerecer o sucesso do campeonato carioca, dando-lhe um ar de caos e decadência (que não se via nas arquibancadas lotadas e na luta dos times em campo) como que querendo desbancar a um só golpe os campeonatos estaduais todos (o fracasso de público do campeonato paulista seria a causa disso?) e tomar as dores (num populismo canhestro) do público carioca que o assistia. Um discurso da angústia, da paranóia, do desconforto – que Galvão Bueno ia esguichando como se não fosse ele mesmo o dono daquele veneno. Como se não fosse a televisão brasileira, um dos focos prioritários de reflexão sobre o que pode ser reinventado no país para que a violência física (e seu combate cego ou vigília estéril) deixe de ser o lugar-comum e banal para todos os nossos dilemas.

Felipe Bragança

Textos da semanas anteriores:
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