Cineasta único em causar
as reações mais diversas no público,
seja este mais intelectualizado ou não, Larry
Clark tem plena consciência da importância
que seu nome ganhou quando o assunto é cinema.
Controverso, com freqüência lido erroneamente,
Clark é o primeiro a alimentar sua própria
fama, pois é a partir dela que irá ter
maior liberdade em poder construir seus filmes.
Sem medo de dizer a que veio e clamando atenção
das pessoas ao seu trabalho, Clark dispara sem pensar
duas vezes já na primeira cena de Bully.
Sem dar qualquer explicação mais adiante
no filme do que estamos vendo, o protagonista Marty
Puccio (Brad Renfro) surge na tela despido ao telefone,
e diz a alguém (ou seria ao espectador?) para
que chupe o seu cacete. E pronto. Corte seco
e não teremos mais nenhuma informação
sobre isto, a tal ponto de ao fim do filme podermos
sequer lembrar que tal cena havia sido mostrada em algum
momento. Mas não há escape: neste instante
isento de funções narrativas, Larry Clark
nos puxa para tela, independente de nossas reações
perante as imagens que seguem a partir daí. Seu
filme seguinte, Ken Park, irá ter um começo
um bocado parecido, só ligeiramente mais longo.
Artifício simples, mas de extrema eficiência.
A relação que se segue terá de
passar por arroubos maiores de imaginação.
Cair na velha balela de que Clark odeia os adolescentes
ou de que culpa os pais destes por qualquer delinqüência
é bancar o cego no meio do deserto. Cineasta
essencialmente ligado a forma, Clark se dedica, a cada
instante de sua obra, em tentar a mais completa aproximação
de seu olhar daquele mundo particular do adolescente
- com todos os problemas que tais particularidades implicam.
É preciso sempre manter-se alerta e lembrar que
trata-se de um momento especialmente confuso, e dada
a maneira como Clark trabalha a forma, sempre se aproximando
da fotografia, a busca da eternidade em uma imagem,
irá acabar por eternizar de alguma forma seus
personagens naquele instante insano cheio de beleza
mas também bastante cruel. A câmera de
Clark não irá meramente observar o mundo
dos jovens de Bully, ela será parte viva
daquele espaço, e tudo em que isso implica. Tornou-se
extremamente comum implicar cruelmente que o adolescente
fosse "O ser imaturo", como se tal necessariamente fosse
algo negativo. Desta forma, Clark vai ser tão
cúmplice destes que seu cinema será uma
espécie de elogio a imaturidade, sem abandonar
seus problemas mas enaltecendo sua beleza. O que diferencia
as opções pessoais de Clark daquela dos
cineastas que simplesmente julgam os erros de seus personagens
(muitas vezes gravíssimos, como em Bully
- onde serão levados a matar um personagem) com
fria distância, é que Clark nutre sincera
e completa paixão pelos personagens que filma,
em todas as suas qualidades e defeitos.
Não será, então, surpreendente
que nesta visão particular de Clark, se torne
comum o ato de ver seus personagens adolescentes nus,
o que leva muitos a acusar, num ato quase curioso, o
cineasta de pedófilo (o que parece só
tentar enaltecer um lado moral da nudez, mas uma moral
bastante questionável afinal, o que há
de errado com a beleza do corpo nu destas pessoas?).
Em Bully as pessoas não são apenas
filmadas nuas elas estão nuas até quando
não "deveriam" estar. Essa necessidade
da proximidade de Clark com o corpo físico irá
ditar sua relação com os personagens na
maioria dos momentos - o corpo é a imposição
da imagem das pessoas. Não interessa a Clark
a psicologia de modo geral, investigar o que levou aquelas
pessoas a cometer aquele ato, mas sim se aproximar delas.
Um momento síntese para a importância do
corpo dos atores em seu cinema, e sobretudo aqui em
Bully, é um diálogo onde a protagonista
do filme informa a sua mãe que arranjou um novo
namorado - perguntada sobre ele, ela apenas responde:
hes a hunk (o que numa tradução
aproximada daria algo como ele é másculo,
atleta, ou algo do estilo). Não importa de onde
ele vem, o que faz ou qualquer coisa do tipo, mas o
que ele é.
Seu interesse pelos personagens pode ser visto refletido
também no fato de Clark levar a história
que conta somente até onde lhe interessa as
imagens eternizadas, impiedosamente julgadas com suas
sentenças. O livro em que o filme se baseia (e
que subseqüentemente era baseado numa história
real) não só será de certa forma
subvertido no filme, como também levava a narrativa
mais a frente - com apelações que diminuem
as penas dos julgados. Mas não interessa a Clark
nada disso, ele meramente irá informar estes
fatos já no final dos créditos, por respeito
às pessoas ali retratadas. Fatos que demonstram
o domínio de Clark sobre aquilo que pretende
mostrar, seus conceitos perante a obra que cria.
Voltando à supracitada proximidade com os personagens,
seria fácil então dizer que Clark não
se interessa em se aproximar de Bobby Kent (Nick Stahl),
o adolescente que será assassinado no filme,
o bully do título. Mas seria novamente
bloquear o que Clark mostra; ele não só
mostra Bobby como um babaca, o que de fato o é
(assim como todos os outros jovens do filme terão
diversos defeitos, os quais Clark nunca tem medo de
mostrar), mas mostra mais que isso, como Bobby pedindo
ao pai que caso tudo desse certo (que abrissem uma loja
de som juntos), que mesmo ele se afastando de Marty,
lhe desse um emprego lá. Bobby não é
um personagem simples. Na realidade, por ter menos tempo
em cena e estar quase sempre assombrando o que se mostra,
termina como o mais ambíguo do filme, pois embora
Clark compreenda o ódio que os outros adolescentes
sentem por ele, não irá deixar de ter
também uma aproximação com os problemas
que passa. Mais uma vez, Clark é cúmplice
de seus personagens, e não tem medo dos efeitos
que isso possa causar.
As relações de Clark com a forma dos filmes
foi aos poucos ganhando suas particularidades. A cada
filme o cineasta parece atirar em uma direção
mais apurada - em Bully já parece muito
mais próximo do ideal que possibilita a chegada
até os personagens aqui retratados. Embora em
Ken Park esteja formalmente mais maduro, talvez
pela proximidade com o fotógrafo Ed Lachman,
a forma que decide aderir ao filme parece ser perfeita
para a aproximação aqui exercida. Seu
olhar, aqui posto sobre as praias e calor locais, filmados
sempre de maneira muito viva (mas jamais documental,
como fizera em KIDS), parece sempre acertado.
Bully também irá adentrar numa
aproximação tão forte com o que
está em cena, que acaba gerando uma espécie
de êxtase cinematográfico. Por diversos
momentos ficamos de tal forma imersos naquele mundo,
que por mais que discordemos de diversos atos, naquele
instante somos tão ou mais cúmplices daquelas
pessoas que Clark. Não seríamos capazes
de impedi-las. Logo após a noite do assassinato,
a protagonista corre para sua amiga que mora na vizinhança
e conta feliz sobre o que havia ocorrido, pedindo ajuda
para mover o corpo embora em choque com o que ouve,
a vizinha não irá ajudá-la, mas
quando questionada por sua mãe sobre o que estava
ocorrendo, não pensa duas vezes em não
informá-la sobre o ocorrido. Posição
semelhante àquela em que terminamos postos, ao
lado de Clark.
O momento final, onde finalmente Clark irá completar
sua aproximação com a fotografia ao congelar
a imagem de seus personagens, se dará de certa
forma ao inverso do que ocorre em Ken Park. Na
obra seguinte, logo após a cena inicial, já
somos introduzidos à fotografia, literalmente,
onde os personagens irão discorrer uns sobre
os outros rapidamente, enquanto temos apenas a imagem
eternizada daqueles personagens, com os quais travamos
nosso primeiro contato (voltaremos a estar frente à
frente com aquelas imagens já quase ao fim do
filme, em momento que terá um efeito bastante
forte justamente por já termos travado antes
um embate com aquelas imagens). É necessário
notar que a divergência entre as opções
de Clark nos dois filmes para com um momento tão
vital para estas obras quanto este são cruciais
para a compreensão das diferenças das
propostas e idéias dos filmes. Clark trata em
Bully de situações morais bastante
complicadas e arriscadas, de tal forma que o cineasta
tem plena consciência na imagem - de que ela em
si é um problema, e como tal está aberta
a ser mal interpretada em todo momento. Ciente do que
pode gerar ao ser cúmplice dos atos que filma,
Larry Clark não tem medo de abraçar os
seus erros, e há poucas coisas mais belas que
isto.
Guilherme Martins
|