Bully
Larry Clark, Bully, EUA, 2001

Cineasta único em causar as reações mais diversas no público, seja este mais intelectualizado ou não, Larry Clark tem plena consciência da importância que seu nome ganhou quando o assunto é cinema. Controverso, com freqüência lido erroneamente, Clark é o primeiro a alimentar sua própria fama, pois é a partir dela que irá ter maior liberdade em poder construir seus filmes.

Sem medo de dizer a que veio e clamando atenção das pessoas ao seu trabalho, Clark dispara sem pensar duas vezes já na primeira cena de Bully. Sem dar qualquer explicação mais adiante no filme do que estamos vendo, o protagonista Marty Puccio (Brad Renfro) surge na tela despido ao telefone, e diz a alguém (ou seria ao espectador?) para que chupe o seu cacete. E pronto. Corte seco e não teremos mais nenhuma informação sobre isto, a tal ponto de ao fim do filme podermos sequer lembrar que tal cena havia sido mostrada em algum momento. Mas não há escape: neste instante isento de funções narrativas, Larry Clark nos puxa para tela, independente de nossas reações perante as imagens que seguem a partir daí. Seu filme seguinte, Ken Park, irá ter um começo um bocado parecido, só ligeiramente mais longo. Artifício simples, mas de extrema eficiência.

A relação que se segue terá de passar por arroubos maiores de imaginação. Cair na velha balela de que Clark odeia os adolescentes ou de que culpa os pais destes por qualquer delinqüência é bancar o cego no meio do deserto. Cineasta essencialmente ligado a forma, Clark se dedica, a cada instante de sua obra, em tentar a mais completa aproximação de seu olhar daquele mundo particular do adolescente - com todos os problemas que tais particularidades implicam. É preciso sempre manter-se alerta e lembrar que trata-se de um momento especialmente confuso, e dada a maneira como Clark trabalha a forma, sempre se aproximando da fotografia, a busca da eternidade em uma imagem, irá acabar por eternizar de alguma forma seus personagens naquele instante insano cheio de beleza mas também bastante cruel. A câmera de Clark não irá meramente observar o mundo dos jovens de Bully, ela será parte viva daquele espaço, e tudo em que isso implica. Tornou-se extremamente comum implicar cruelmente que o adolescente fosse "O ser imaturo", como se tal necessariamente fosse algo negativo. Desta forma, Clark vai ser tão cúmplice destes que seu cinema será uma espécie de elogio a imaturidade, sem abandonar seus problemas mas enaltecendo sua beleza. O que diferencia as opções pessoais de Clark daquela dos cineastas que simplesmente julgam os erros de seus personagens (muitas vezes gravíssimos, como em Bully - onde serão levados a matar um personagem) com fria distância, é que Clark nutre sincera e completa paixão pelos personagens que filma, em todas as suas qualidades e defeitos.

Não será, então, surpreendente que nesta visão particular de Clark, se torne comum o ato de ver seus personagens adolescentes nus, o que leva muitos a acusar, num ato quase curioso, o cineasta de pedófilo (o que parece só tentar enaltecer um lado moral da nudez, mas uma moral bastante questionável – afinal, o que há de errado com a beleza do corpo nu destas pessoas?). Em Bully as pessoas não são apenas filmadas nuas – elas estão nuas até quando não "deveriam" estar. Essa necessidade da proximidade de Clark com o corpo físico irá ditar sua relação com os personagens na maioria dos momentos - o corpo é a imposição da imagem das pessoas. Não interessa a Clark a psicologia de modo geral, investigar o que levou aquelas pessoas a cometer aquele ato, mas sim se aproximar delas. Um momento síntese para a importância do corpo dos atores em seu cinema, e sobretudo aqui em Bully, é um diálogo onde a protagonista do filme informa a sua mãe que arranjou um novo namorado - perguntada sobre ele, ela apenas responde: he’s a hunk (o que numa tradução aproximada daria algo como ele é másculo, atleta, ou algo do estilo). Não importa de onde ele vem, o que faz ou qualquer coisa do tipo, mas o que ele é.

Seu interesse pelos personagens pode ser visto refletido também no fato de Clark levar a história que conta somente até onde lhe interessa – as imagens eternizadas, impiedosamente julgadas com suas sentenças. O livro em que o filme se baseia (e que subseqüentemente era baseado numa história real) não só será de certa forma subvertido no filme, como também levava a narrativa mais a frente - com apelações que diminuem as penas dos julgados. Mas não interessa a Clark nada disso, ele meramente irá informar estes fatos já no final dos créditos, por respeito às pessoas ali retratadas. Fatos que demonstram o domínio de Clark sobre aquilo que pretende mostrar, seus conceitos perante a obra que cria.

Voltando à supracitada proximidade com os personagens, seria fácil então dizer que Clark não se interessa em se aproximar de Bobby Kent (Nick Stahl), o adolescente que será assassinado no filme, o bully do título. Mas seria novamente bloquear o que Clark mostra; ele não só mostra Bobby como um babaca, o que de fato o é (assim como todos os outros jovens do filme terão diversos defeitos, os quais Clark nunca tem medo de mostrar), mas mostra mais que isso, como Bobby pedindo ao pai que caso tudo desse certo (que abrissem uma loja de som juntos), que mesmo ele se afastando de Marty, lhe desse um emprego lá. Bobby não é um personagem simples. Na realidade, por ter menos tempo em cena e estar quase sempre assombrando o que se mostra, termina como o mais ambíguo do filme, pois embora Clark compreenda o ódio que os outros adolescentes sentem por ele, não irá deixar de ter também uma aproximação com os problemas que passa. Mais uma vez, Clark é cúmplice de seus personagens, e não tem medo dos efeitos que isso possa causar.

As relações de Clark com a forma dos filmes foi aos poucos ganhando suas particularidades. A cada filme o cineasta parece atirar em uma direção mais apurada - em Bully já parece muito mais próximo do ideal que possibilita a chegada até os personagens aqui retratados. Embora em Ken Park esteja formalmente mais maduro, talvez pela proximidade com o fotógrafo Ed Lachman, a forma que decide aderir ao filme parece ser perfeita para a aproximação aqui exercida. Seu olhar, aqui posto sobre as praias e calor locais, filmados sempre de maneira muito viva (mas jamais documental, como fizera em KIDS), parece sempre acertado. Bully também irá adentrar numa aproximação tão forte com o que está em cena, que acaba gerando uma espécie de êxtase cinematográfico. Por diversos momentos ficamos de tal forma imersos naquele mundo, que por mais que discordemos de diversos atos, naquele instante somos tão ou mais cúmplices daquelas pessoas que Clark. Não seríamos capazes de impedi-las. Logo após a noite do assassinato, a protagonista corre para sua amiga que mora na vizinhança e conta feliz sobre o que havia ocorrido, pedindo ajuda para mover o corpo – embora em choque com o que ouve, a vizinha não irá ajudá-la, mas quando questionada por sua mãe sobre o que estava ocorrendo, não pensa duas vezes em não informá-la sobre o ocorrido. Posição semelhante àquela em que terminamos postos, ao lado de Clark.

O momento final, onde finalmente Clark irá completar sua aproximação com a fotografia ao congelar a imagem de seus personagens, se dará de certa forma ao inverso do que ocorre em Ken Park. Na obra seguinte, logo após a cena inicial, já somos introduzidos à fotografia, literalmente, onde os personagens irão discorrer uns sobre os outros rapidamente, enquanto temos apenas a imagem eternizada daqueles personagens, com os quais travamos nosso primeiro contato (voltaremos a estar frente à frente com aquelas imagens já quase ao fim do filme, em momento que terá um efeito bastante forte justamente por já termos travado antes um embate com aquelas imagens). É necessário notar que a divergência entre as opções de Clark nos dois filmes para com um momento tão vital para estas obras quanto este são cruciais para a compreensão das diferenças das propostas e idéias dos filmes. Clark trata em Bully de situações morais bastante complicadas e arriscadas, de tal forma que o cineasta tem plena consciência na imagem - de que ela em si é um problema, e como tal está aberta a ser mal interpretada em todo momento. Ciente do que pode gerar ao ser cúmplice dos atos que filma, Larry Clark não tem medo de abraçar os seus erros, e há poucas coisas mais belas que isto.


Guilherme Martins