Há, certamente, aspectos notáveis
na realização desse As Bicicletas de
Beleville. Num panorama da animação
ocidental obcecado em descobrir nas tecnologias da computação
gráfica o eldorado de seus próximos 100
anos, é muito raro ver um filme de longa metragem,
e formatado para o grande circuito, apostar de forma
tão apaixonada no poder do traço, da sinuosidade
do desenho bidimensional e na malícia gráfica
de tão longeva tradição (gesto
contra-corrente quando até a ortodoxa Disney
começa a aposentar suas "animações
tradicionais").
Há um pouco de Avery, um namorico com Chuck Jones
e uma pitada da musicalidade Disney em suas entrelinhas.
E é nessa aproximação com o que
de há de mais longevo na tradição
da animação de jogos físicos (norte-americana
em sua maioria, friso) que As Bicicletas de Beleville
se realiza no melhor de sua forma. Os jogos com engrenagens
e movimentos repetitivos, com os non-senses físicos
das quedas e com os gestos largos dos personagens dão
ao filme sua riquíssima fauna de tipos, figuras
peculiares que se fixam , ao final da projeção,
como o grande viés, o grande talento de Sylvain
Chomet.
Outro aspecto notável do filme é a riqueza
da forma com que trabalha suas sonoridades. As nuances
das falas abafadas (ou a ausência gritante de
falas), os ruídos das grandes cidades, os murmúrios
(e risadas) das trigêmeas, o apito insistente
da "avó" e o ruído das correias
das bicicletas, constróem para o filme uma atmosfera
de quase-sonho, de flutuação de memória
e de leve ironia, convidando o espectador para um jogo
onde pequenas pistas vão insinuando tanto a narrativa,
quanto as características de seus personagens.
Há um certo mickeymousing "acústico"
que atravessa todo o filme, jogando com a linguagem
corporal dos personagens e suas sonoridades para marcar
o ritmo do filme (e não o inverso tradicional:
quando a música "pede" o movimento),
encontrando o ápice no show das burlescas trigêmeas
e seus "eletrodomésticos" (e aqui a
defasagem entre o produto de massa e seu uso desviante,
é a filiação mais concreta ao cinema
de Tati – homenageado ao longo do filme em vários
chistes e numa citação direta).
De alguma forma, o filme tenta reativar o encontro entre
um certo cinema moderno dos gestos e do cotidiano, da
observação pormenorizada do ócio
e da rotina, com o frenesi de movimento de um grande
cinema de plots e eventos, de grandes perseguições,
explosões e tramas de desvelamentos. Uma espécie
de cinema mudo re-verso, irônico justamente por
jogar com esse seu formato (um tanto atabalhoado) que
navega entre os mais elementares instrumentos narrativos
e do pôr-se-em-cena e as possibilidades/firulas
expressivas das imagens do pós-moderno.
E é aí que o filme perde muito de seu
frescor e deixa revelar sua falta de perspectivas, deixando
seus méritos quase que à deriva num mar
de inexpressividade...
Há uma dificuldade gritante de articular o potencial
do animador (esse talento para tipos e decupagem de
gestos) em um projeto que pudesse nos vislumbrar algo
além de um artesão do traço, mas
um realizador com um discurso capaz de ultrapassar a
mera revisitação do cinema alheio. É
claro que há o desejo por uma certa poesia do
silêncio, um deboche aos costumes burgueses da
competição e do progresso... É
claro que há habilidade nas opções
de cores e inspiração nos traços,
e um belo elogio da memória como celebração
da vida. Mas o que espanta é o fato de que, tudo
isso, junto, parece antes estar perambulando sem rumo
no filme, do que esboçando qualquer sentimento
de novidade, de pequena invenção – dando
a As Bicicletas de Beleville o ar de um objeto
gracioso sim, mas apático como um armário
de brechó.
Sonho amanhecido (e esmaecido), o filme chega à
tela cheio de artimanhas, de atrações
de cores, de possibilidades e instantes memoráveis,
mas perde peso e volume quando sentido em seu todo.
Um gesto por demais distante, até de si mesmo,
e praticante de uma poesia vaga, marcada por um vazio
de vontade que peca pela incapacidade de seduzir para
além do charme efêmero de suas tiradas.
Um filme notável. Admirável, até.
Mas que parece frio na forma como se limita a se referir,
a imitar, a repetir o cinema que o interessa – sem o
pulso capaz de fazer de si mesmo um pouco mais do que
essa memória (apaixonada) da vida... e do próprio
cinema.
Frieza, certamente, que não tira Chomet da lista
de animadores que merecem atenção em seus
próximos trabalhos (mas que está até
mesmo aquém do humor surrealista que ele já
havia mostrado em La Vieille dame et les pigeons
- seu belo curta de 1998). Restando a expectativa
de que talvez sua maestria como artesão (eu diria,
como cronista de gestos) possa esbarrar em breve com
uma expressão para além dessa desinteressada
poética da melancolia (que hoje aparece como
o principal dos clichês-atalhos – uma quase praga
– e porto-seguro preguiçoso para grande parcela
de um certo cinema dito, e vendido, como "de arte").
Felipe Bragança
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