a day in the life

O último plano de Elefante, composto de nuvens passando tomadas quase de 90º em relação ao chão (ou seja, uma vertical quase completa), é uma quase-repetição do primeiro plano e de um outro no meio do filme, que faz a transição da parte "amena" (a descrição dos comportamentos de alunos e adultos dentro da escola de ensino médio em questão) para a parte "hard", dos preparativos dos assassinatos. Poder-se-ia acreditar serem os mesmos planos, ou planos arbitrários que servem apenas para ritmar o filme. Pior ainda, a sutileza da inserção dessas tomadas de nuvens no céu pode parecer despida de qualquer significado, quando trata-se justamente de uma das chaves de compreensão mais fortes do filme – uma verdadeira porta de entrada (ou de saída, se é que é possível falar de saída).

Como os admiradores de Gus Van Sant bem sabem, os planos de céu a quase 90º são uma constante na obra de Van Sant, de Drugstore Cowboy a Gerry. Mas aqui, em Elefante, eles adquirem um sentido ainda mais radical – senão decisivo – em relação ao que se passa em todos os outros planos do filme. A começar, por sua função cíclica: esses planos de céu abrindo e fechando uma obra remetem precisamente, mais do que a um determinado evento dentro de um determinado tempo em um determinado ambiente, a uma dimensão de proposição filosófica – ou cósmica, se assim se quiser. Num filme como Elefante, que trata de um acontecimento de exceção – uma série de assassinatos aparentemente aleatórios de estudantes e funcionários numa high school americana –, Gus Van Sant faz questão de frisar com esses planos algo que se inscreve no somátorio de todas as outras cenas, mas que poderia passar despercebido: que todo acontecimento está submetido às regras de seu tempo presente e que deve ser concebido, assim, não como uma ocorrência espantosa e terrível à qual seria impossível atribuir qualquer sentido (histórico, social ou humano), mas como algo – ao contrário – banal, repetitivo e abundante de sentido. Se esse sentido nos escapa em sua totalidade, todavia, é algo totalmente diferente.

Uma das críticas mais constantes – e, a nosso ver, equivocadas – a Elefante é justamente a normalização do tema, através de uma certa lógica da inocência que perpassa todos os personagens do filme, do diretor da escola até os dois assassinos, passando por uma miríade de personagens que o filme descreve mais do que constrói, exibe mais do que elabora. Essa inocência generalizada, quando somada a personagens planos – não aprofundados por nenhuma história pregressa ou psicologismo – e aos inúmeros travellings de steadycam que acompanham os atores de muito perto, muitas vezes em câmera lenta, chamariam ainda a uma passividade generalizada que tornaria aquele mundo (e, por conseguinte, a juventude como um todo e, por extensão, o mundo inteiro) claustrofóbico, inabitável e regido por um destino opressor, que impediria qualquer tomada de decisão. Ora, embora seja difícil negar essa lógica de inocência que se desenvolve ao longo do filme, o que Elefante parece querer dizer é justo o contrário dessa passividade, tanto do ponto de vista da mise-en-scène da obra quanto das atitudes dos personagens que habitam dentro dela.

Tudo questão de sentido. Sob esse viés, aliás, não há filme recentemente exibido que seja mais nietzschiano em suas propostas. Em Elefante, tudo é questão de pontos de vista, de produção e de perspectivas1. O que "falta" ao filme, justamente, não é uma dimensão épica que daria "sentido" às correlações entre as ações e os lugares apresentados no filme, mas um filtro moral através do qual seja possível julgar, sempre presumidamente, aquilo que vemos. Gus Van Sant faz a aposta do "humano, demasiado humano" do homem, em seus momentos altos – fotografar, discutir, co-habitar, ajudar – mas também naquilo que faz tremer os humanistas e seus sonhos de uma humanidade despida de verdadeira alteridade e de "sentimentos baixos" – assassinatos, mas também bulimia, ação reativa. O próprio jogo estilístico do filme, acompanhar os personagens de perto demais, estabelecendo uma relação dentro-fora perceptível tanto nas flutuações de foco tanto quanto através da edição de som, cria por si só um jogo audio-visual de tactibilidade e sensorialidade inéditos no cinema até hoje: prova de criação mais do que de reação. Justamente, Elefante não é um filme de reação aos acontecimentos de Columbine, mas um instrumento de reconstrução, ou melhor, de construção do mundo a partir da falência de uma lógica hiper-explicativa que consiste em atribuir causas simples a eventos complexos e fraudar a irredutibilidade dos acontecimentos.

Fundamental, a esse respeito, é observar como a música é inserida no filme, e como a melodia clássica das peças de piano de Beethoven, que abre o filme, passa a dar lugar às obras contemporâneas de Frances White, Hildegard Westerkamp e do grupo japonês Acid Mothers Temple, que não criam uma harmonia concebível sem antes exigir um trabalho ativo do ouvinte, que inicialmente sente-se agredido pela profusão de ruídos que não se concatenam num primeiro momento. Transformar o discurso epopéico dos tempos áureos numa turbulenta e complexa épica do dia-a-dia, essa foi a estratégia de diversos artistas contemporâneos desde o final do século XIX – e cujo exemplo mais chamativo não poderia deixar de ser o Ulisses de James Joyce. Gus Van Sant não faz muito diferente, nem cria um novo patamar nesta história: apenas recoloca um incidente considerado aterrador e aberrante – e, por conseguinte, fora da história ou da racionalidade – no campo das práticas culturais de um Ocidente tornado complexo demais para ser cantado apenas em tom maior.

Não é à toa que Bennie, único personagem do filme imbuído de uma função trágica, acaba sendo incapaz de prevenir a adversidade. Depois de uma breve aparição no fundo de um plano no começo do filme (o campo de futebol), ele aparece e nos é apresentado tardiamente, já no meio da seqüência dos assassinatos. Bennie caminha pelos corredores do colégio sem saber o que fazer, ajudando como pode (ele leva uma menina, imobilizada pelo terror de ver um colega de turma assassinado, até a janela, por onde ela consegue escapar), até encontrar seu algoz e ser, por sua vez, assassinado. Bennie é a figura heróica, o zagueiro do time de futebol americano e eventual protetor daquela comunidade, e entretanto ele não consegue conjurar o mal que se abate sobre seus colegas – falta-lhe não só a experiência, mas acima de tudo a dimensão de conjunto para poder realizar até o fim sua tarefa. John, o primeiro menino que vemos aparecer na tela e que ao longo da parte final do filme fica do lado e fora da escola tentando evitar que mais pessoas sejam alvejadas, exerce papel complementar a Bennie: o anjo da guarda que pode evitar algum dano, mas é incapaz de fazer com que os assassinatos não ocorram.

Se Bennie e John não conseguem aparecer com nenhuma saída positiva para o fim do massacre, cabe ao trabalho de direção de Gus Van Sant ao menos perspectivar o acontecimento cassando-lhe as causas simplistas, mostrando por jogos de espelho a insuficiência das explicações sociológicas ou psicológicas, operando uma clivagem entre os problemas recorrentes dentro da sociedade americana, sobretudo entre os jovens (bulimia, preconceito sexual, culto da imagem, pressão dos colegas, a obsessão de ser sempre o melhor) e as ocorrências de exceção. Mais profundamente ainda, Van Sant – sua épica pessoal e o propósito da suprema inocência do filme – increve o "mal" absoluto (o massacre) dentro dos eventos mundanos que nos povoam e aos quais não podemos responder senão tardiamente, refletindo, construindo, criando outros pontos-de-vista a partir dos quais será possível lidar positivamente com a alteridade total que sempre parece furtar o sentido do mundo (quando na verdade, reiteramos, há sentido demais, e esse é o problema). Elefante cria sentido.

No plano final do filme, vemos nuvens algodoadas, rechonchudas, que preenchem o céu lá em cima. Mais abaixo, nuvens negras se movimentam, pontiagudas e ameaçadoras. Mas o som não é mais de trovões como no meio do filme, mas sim um replay de "pour Élise" tocada (mal) por um dos dois assassinos. Com o vento, o branco mistura-se com o cinza, o círculo com a linha reta, as nuvens umas com outras, criando uma fusão indiscernível e de harmonia imprecisa. Com o vento, elas também hão de desaparecer da mesma forma que entraram no plano. O filme termina-se aí, mas a tensão criada pelo final em suspenso (o uni-duni-tê) chama à mente outros planos, como o vento virá chamar outras nuvens, e um dia chamará outro, e mais outro. Da mesma forma que as nuvens passam, os futuros planos virtuais do filme hão de conter outras figuras, que podem ou não responder aos planos atuais do filme, céu aberto ou tempestade. Fatores climáticos à parte, o filme e a vida seguirão em fluxos de consonância instável, que jamais poderão esquecer dos instantes de dissonância pura, por mais branda que possa parecer (guiar o carro de um pai bêbado, por exemplo). Um dia é só um dia, e um dia passa. A day in the life.

1. Deleuze, Nietzsche e a filosofia. Rio: Ed. Rio, 1976 capítulos 1 e 2, e a análise feita em Zourabichvili, François, Gilles Deleuze: Une philosophie de l'événement. Paris: PUF

Ruy Gardnier

 

 





Bennie Dixon em Elefante de Gus Van Sant