Todo
o sentido de Raízes do Brasil - Uma Cinebiografia
de Sérgio Buarque de Holanda está
no diálogo entre suas duas partes. Tomados em
separado, cada um dos dois hemisférios do filme
clama por algo que os complete. Ao contrário,
vistos juntos, compõem uma tese curiosa e ousada,
que dialoga facilmente com a espinha dorsal da obra
que Nelson Pereira dos Santos vem perseguindo desde
o Cinema Novo, uma obra que quer, de várias formas
diferentes, mostrar ao Brasil um Brasil que, por algum
motivo, ele não conhece, e que é importante
em si mesmo, não por seu valor de exotismo (como
outros diretores herdeiros da mesma tradição
insistiram em fetichizar), mas justamente por seu valor
de oculto. Pois bem, a primeira parte do documentário
mostra uma série de descrições
intimistas feitas por filhos, netos e pela esposa de
Sérgio Buarque, historiador que escreveu uma
das obras mais importantes da sociologia brasileira,
Raízes do Brasil, de 1936. Como se sabe,
Sérgio Buarque teve uma prole de valor. Deu ao
mundo, por exemplo, os músicos Chico Buarque
e Miúcha. Ao todo, foram sete filhos de considerável
sucesso no que fazem. E das falas deles e de seus filhos
- mais do que da esposa de Sérgio, Maria
Amélia - tem-se a imagem que menos se pode
esperar de um Sérgio Buarque de Holanda construído
em um filme: ele, quem diria, não era um homem
cordial. Claro, trata-se de um jogo de palavras. Não
era mesmo e nem pretendia sê-lo no sentido sociológico
que ele mesmo propôs. Trata-se, na verdade, da
constatação de que, na intimidade, Sérgio
intimidava. "Papai não gostava muito de
criança", conta Chico. "Não
era qualquer um que podia entrar em seu escritório",
lembra-se Sergito. "Tínhamos um pouco de
medo dele", lembra-se um neto. "Papyotto",
como era carinhosamente chamado pelos netos, veja só,
construiu uma burocracia weberiana em família.
Aos filhos e netos, um sistema de méritos em
que quase nunca - o filme dá conta apenas
do caso de Silvia, filha de Chico, eleita "a neta
favorita" - pesava a cordialidade, o favorecimento
por laços afetivos, justamente o traço
que o pensador enxergava - e criticava - na
formação da cultura e sociedade brasileiras.
Mas é só na segunda metade que esse sistema
passa a fazer verdadeiro sentido. Nas falas isoladas,
parecem apenas excentricidades do intelectual em família.
Parece apenas curioso ouvir Chico Buarque contar que
só depois que um filho crescia e começava
a mostrar alguma inteligência é que o pai
Sérgio lhe dava alguma atenção.
Estruturada como um filme educativo, nos moldes aos
quais Nelson se entregou nos últimos tempos -
seu documentário de TV Casa Grande e Senzala
é bastante semelhante - , a segunda parte
opera para espelhar trechos de Raízes do Brasil,
o livro, lido por Silvia, a neta favorita, a narrações
da biografia de seu autor, feita por ele mesmo, e lida
por filhos e netos. Em paralelo, imagens de época.
Assim, ao colocar diante do mundo (e de sua história,
na acepção mais moderna, aquela que se
faz para o futuro) o modus vivendi sistematizante
de Buarque, o filme fortalece justamente sua figura
como um pensador que é seu próprio pensamento.
A porta da biblioteca, transformada em barreira limite
do sistema de meritocracia doméstica, serve como
o símbolo de um sistema de valores, defendido
às últimas conseqüências. Onde
elas são mais difíceis de defender: na
mesa do café da manhã. O cotidiano do
mito Sérgio Buarque é o mito mesmo. Justamente
porque não há mito. Só há
coerência. Se ele lia o gibi da Luluzinha, isso
só servia para dialogar ainda mais com sua "visão
do paraíso" doméstico.
Mas não deixa de ser uma questão para
a obra de Nelson Pereira dos Santos a feitura de um
filme-celebração, metade de discursos
de descrição subjetiva e metade de discursos
de objetividade científica. Seu cinema vem flertando
com o educativo há algum tempo. Em Cinema
de Lágrimas (1995) a prosa acadêmica
do livro de Silvia Oroz se impõe às situações
conflituosas - também de ordem afetiva -
entre os dois personagens. Isso na forma. No conteúdo,
o tema do diálogo entre o discurso da intelligentsia
sobre o mundo e sobre o discurso da afetividade sempre
esteve presente em seu cinema. Isso está já
em Rio 40 Graus (1955), mas está em sua
inflexão particular para o Tenda dos Milagres
(1977) de Jorge Amado e em sua recorrência ao
discurso do próprio Graciliano Ramos em Memórias
do Cárcere (1984). O mundo se forma entre
a descrição sentimental e a descrição
sistemática. Pois assim também é
o mundo do Sérgio Buarque de Nelson. Daí
ser tão útil o tom pedagógico da
segunda parte e daí ser tão adequado o
estilo compartimentar da primeira: cada filho, cada
neto, com seu capítulo à parte, com sua
afirmação particular da relação
particular com o avô, cada um com a história
de sua inserção quase estruturalista na
"República de Papyotto". Sérgio
Buarque não é um humano a ser revelado.
É uma descrição de Brasil ele mesmo.
É um modelo, no sentido não de que deva
ser seguido, mas de que se fez paradigma de sua própria
visão de mundo. As leituras obcecadas, a constante
lembrança, por todos os familiares, de sua reclusão,
feita pura oposição a sua vida boêmia
de juventude, reapresentada na biografia da segunda
parte, tudo isso compõe mais uma lógica
do que uma personalidade propriamente dita. Não
é, então, uma história de Sérgio
Buarque, é mais uma cartografia.
Alexandre Werneck
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