RAÍZES DO BRASIL
Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 2004

Todo o sentido de Raízes do Brasil - Uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda está no diálogo entre suas duas partes. Tomados em separado, cada um dos dois hemisférios do filme clama por algo que os complete. Ao contrário, vistos juntos, compõem uma tese curiosa e ousada, que dialoga facilmente com a espinha dorsal da obra que Nelson Pereira dos Santos vem perseguindo desde o Cinema Novo, uma obra que quer, de várias formas diferentes, mostrar ao Brasil um Brasil que, por algum motivo, ele não conhece, e que é importante em si mesmo, não por seu valor de exotismo (como outros diretores herdeiros da mesma tradição insistiram em fetichizar), mas justamente por seu valor de oculto. Pois bem, a primeira parte do documentário mostra uma série de descrições intimistas feitas por filhos, netos e pela esposa de Sérgio Buarque, historiador que escreveu uma das obras mais importantes da sociologia brasileira, Raízes do Brasil, de 1936. Como se sabe, Sérgio Buarque teve uma prole de valor. Deu ao mundo, por exemplo, os músicos Chico Buarque e Miúcha. Ao todo, foram sete filhos de considerável sucesso no que fazem. E das falas deles e de seus filhos - mais do que da esposa de Sérgio, Maria Amélia - tem-se a imagem que menos se pode esperar de um Sérgio Buarque de Holanda construído em um filme: ele, quem diria, não era um homem cordial. Claro, trata-se de um jogo de palavras. Não era mesmo e nem pretendia sê-lo no sentido sociológico que ele mesmo propôs. Trata-se, na verdade, da constatação de que, na intimidade, Sérgio intimidava. "Papai não gostava muito de criança", conta Chico. "Não era qualquer um que podia entrar em seu escritório", lembra-se Sergito. "Tínhamos um pouco de medo dele", lembra-se um neto. "Papyotto", como era carinhosamente chamado pelos netos, veja só, construiu uma burocracia weberiana em família. Aos filhos e netos, um sistema de méritos em que quase nunca - o filme dá conta apenas do caso de Silvia, filha de Chico, eleita "a neta favorita" - pesava a cordialidade, o favorecimento por laços afetivos, justamente o traço que o pensador enxergava - e criticava - na formação da cultura e sociedade brasileiras. Mas é só na segunda metade que esse sistema passa a fazer verdadeiro sentido. Nas falas isoladas, parecem apenas excentricidades do intelectual em família. Parece apenas curioso ouvir Chico Buarque contar que só depois que um filho crescia e começava a mostrar alguma inteligência é que o pai Sérgio lhe dava alguma atenção. Estruturada como um filme educativo, nos moldes aos quais Nelson se entregou nos últimos tempos - seu documentário de TV Casa Grande e Senzala é bastante semelhante - , a segunda parte opera para espelhar trechos de Raízes do Brasil, o livro, lido por Silvia, a neta favorita, a narrações da biografia de seu autor, feita por ele mesmo, e lida por filhos e netos. Em paralelo, imagens de época. Assim, ao colocar diante do mundo (e de sua história, na acepção mais moderna, aquela que se faz para o futuro) o modus vivendi sistematizante de Buarque, o filme fortalece justamente sua figura como um pensador que é seu próprio pensamento. A porta da biblioteca, transformada em barreira limite do sistema de meritocracia doméstica, serve como o símbolo de um sistema de valores, defendido às últimas conseqüências. Onde elas são mais difíceis de defender: na mesa do café da manhã. O cotidiano do mito Sérgio Buarque é o mito mesmo. Justamente porque não há mito. Só há coerência. Se ele lia o gibi da Luluzinha, isso só servia para dialogar ainda mais com sua "visão do paraíso" doméstico.

Mas não deixa de ser uma questão para a obra de Nelson Pereira dos Santos a feitura de um filme-celebração, metade de discursos de descrição subjetiva e metade de discursos de objetividade científica. Seu cinema vem flertando com o educativo há algum tempo. Em Cinema de Lágrimas (1995) a prosa acadêmica do livro de Silvia Oroz se impõe às situações conflituosas - também de ordem afetiva - entre os dois personagens. Isso na forma. No conteúdo, o tema do diálogo entre o discurso da intelligentsia sobre o mundo e sobre o discurso da afetividade sempre esteve presente em seu cinema. Isso está já em Rio 40 Graus (1955), mas está em sua inflexão particular para o Tenda dos Milagres (1977) de Jorge Amado e em sua recorrência ao discurso do próprio Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere (1984). O mundo se forma entre a descrição sentimental e a descrição sistemática. Pois assim também é o mundo do Sérgio Buarque de Nelson. Daí ser tão útil o tom pedagógico da segunda parte e daí ser tão adequado o estilo compartimentar da primeira: cada filho, cada neto, com seu capítulo à parte, com sua afirmação particular da relação particular com o avô, cada um com a história de sua inserção quase estruturalista na "República de Papyotto". Sérgio Buarque não é um humano a ser revelado. É uma descrição de Brasil ele mesmo. É um modelo, no sentido não de que deva ser seguido, mas de que se fez paradigma de sua própria visão de mundo. As leituras obcecadas, a constante lembrança, por todos os familiares, de sua reclusão, feita pura oposição a sua vida boêmia de juventude, reapresentada na biografia da segunda parte, tudo isso compõe mais uma lógica do que uma personalidade propriamente dita. Não é, então, uma história de Sérgio Buarque, é mais uma cartografia.


Alexandre Werneck