Alfred
Hitchcock costumava explicar a construção
do suspense pela analogia da bomba: se dois homens conversam
e uma bomba explode, há só choque; mas
se antes o diretor mostrar que há uma bomba de
baixo da mesa, cria-se suspense. Na sua coleção
de entrevistas com diretores do cinema americano clássico,
Afinal, Quem faz os filmes?, Peter Bogdanovich
compara a analogia da bomba com a da casca de banana
na comédia: que para tornar alguém escorregando
numa banana engraçado, precisa-se antes mostrar
a casca de banana. A sugestão é de que
a construção de suspense e de humor se
dá de forma bastante similar. De certa forma
é a partir desta idéia que Carl Franklin
constrói Por um Triz. O critico Charles
Taylor na Salon descreveu o filme de forma bem apta
como um screwball noir. Há duas implicações
aqui: a primeira é que estamos numa empreitada
essencialmente maneirista. Filme sobre cinema preocupado
em manipular as regras que foram estabelecidas por toda
um tradição que ele herdou de outros filmes.
A outra é que Franklin está disposto a
beber na fonte de dois tipos de cinema com um estilo
bem peculiar e próprio (e uma certa aura cult),
que estão intimamente ligados ao cinema clássico
americano.
Este tipo de jogo é algo que associamos a alguém
como Brian De Palma - e o roteiro de Por um Triz
cairia como uma luva para ele. Só que a sensibilidade
de Franklin não poderia ser mais diferente. Ele
começou a carreira fazendo filmes para vídeo
(foi provavelmente o único bom cineasta que Roger
Corman revelou depois que começou a produzir
filmes para o formato), e mais tarde para TV. Há
em Franklin um certo pragmatismo, uma preocupação
em resolver os problemas que levanta sem fazer barulho
algum (algo que também pode ser visto nos seus
dois melhores filmes, Um Passo em Falso e O
Diabo Veste Azul, duas pérolas esperando
para ser redescobertas nas prateleiras das locadoras).
Carl Franklin não se entrega em Por um Triz
ao tipo de exercício de estilo que veríamos,
por exemplo, num filme dos irmãos Coen (para
ficar em dois cineastas que passaram a carreira toda
atrás de um screwball noir). Por um
Triz é sim um exercício de estilo,
mas um que fala num tom mais discreto. Isto porque Franklin
não se preocupa muito em escancarar sua marca
autoral, ao invés disso a constrói aos
poucos. O confronto entre este lado classicista e este
lado maneirista de Franklin rende resultados muito interessantes.
Especialmente porque permite ao diretor ancorar o seu
jogo sobre uma base mais sólida, mas também
porque abre espaço para, quando Franklin apronta
com a nossa memória cinematográfica, nos
pegar efetivamente de surpresa por desrespeitar a tradição
- só que de dentro da tradição.
A trama de Por um Triz não tenta inventar
muito (a maior fonte de inspiração do
filme é O Relógio Verde de John
Farrow, refilmado mais recentemente por Roger Donaldson
como Sem Saída). Franklin, seguindo a
receita de Hitchcock, não sonega informações
aos espectadores. Pelo contrário, sabemos das
reviravoltas da trama bem antes do personagem de Denzel
Washington. O suspense e o humor de Por um Triz
se dá em como Washington lida com as situações
em que se envolve. A arte que Franklin desenvolve aqui
tem muito a ver com tempo: é tempo o que Washington
tenta dominar, e que o cineasta controla com precisão.
O tempo do plano é aqui sempre preciso, cada
imagem não durando um fotograma a mais ou a menos
do que aquilo que ela precisa durar. O filme se divide
em duas chaves de tempo diferentes: numa, bem lenta
e elíptica, Franklin vai construindo o caso contra
Washington; na outra, bem mais frenética e com
a ação ocorrendo em poucas horas, ele
coloca seu personagem central para tentar sair limpo
da confusão em que se meteu. Não se trata
de simplesmente acelerar a ação, mas a
compreensão do tempo mental do seu personagem
central. Vale dizer, aliás, que o filme gasta
uma metragem bem maior do que a habitual com a primeira
parte do que haveria de se esperar de um filme de ação
típico. Franklin divide o filme em dois blocos
de aproximadamente 40 minutos, daí os dois apresentarem
experiências de tempo bem diferentes (vale dizer
que o clímax que se segue a eles é, decerto,
o ponto baixo do filme - funcional mas com pouca imaginação).
Comédia e suspense são provavelmente os
gêneros cinematográficos que mais dependem
de "timing". O que Franklin faz aqui ao misturar os
dois gêneros é permitir que um ilumine
os mecanismos do outro. Ele parte do que seria um subtexto
– Washington como um marido que pulou a cerca e tem
que se esconder da mulher – e faz com que ele invada
o texto. Por um Triz acaba pegando todos os elementos
já surrados do noir e lhes injeta vida
justamente sobrepondo-o aos da comédia matrimonial.
Não é à toa que o clima ensolarado
da Flórida e a ótima trilha sonora de
Graeme Revell estão muito mais próximas
da comédia (a ação até se
passa no tipo de cidade praiana que vive de turistas,
onde este tipo de comédia freqüentemente
se passa). A cada nova informação da investigação,
Washington precisa se desdobrar para permanecer um passo
a frente da esposa. Cada um destes movimentos funciona
de forma igualmente tensa e engraçada. Franklin
faz ótimo uso das locações demonstrando
como o espaço claustrofóbico é
igualmente válido neste tipo de humor e de thriller.
O final do filme é uma das suas melhores piadas
– aos leitores que não viram o filme e se incomodam
em saber detalhes da trama é melhor abandonar
o texto aqui – na forma como ele consegue se resolver
de forma absolutamente convencional, mas incômoda.
Já que a tradição que ele segue
não é a do seu gênero de superfície,
onde o herói seria punido no final provavelmente
perdendo tudo e tendo que recomeçar sozinho,
prometendo ter aprendido com as próprias burradas.
O filme segue sim a convenção, mas do
seu gênero de espírito: a reconciliação
do casal (e o perdão implícito da esposa)
e a promessa de que agora o sujeito seguirá fiel.
Se é moralista? Sem dúvidas, mas cabe
perguntar se não é um moralismo mais honesto
do que o cinismo igualmente – ainda que mais discretamente
– moralista que nos acostumamos a esperar deste tipo
de filme (e o porquê daquele outro final pode
nos parecer a primeira vista mais atraente). Franklin
faz uso da tradição (e daquilo que o espectador
sabe dela) para nos pregar sua peça, e no caminho
revigora material dos mais desgastados e constrói
um dos jogos cinematográficos mais elegantes
e inteligentes a chegar por aqui recentemente. Cara
esperto, este tal Carl Franklin.
Filipe Furtado
|