POR UM TRIZ
Carl Franklin, Out Of Time, EUA, 2003

Alfred Hitchcock costumava explicar a construção do suspense pela analogia da bomba: se dois homens conversam e uma bomba explode, há só choque; mas se antes o diretor mostrar que há uma bomba de baixo da mesa, cria-se suspense. Na sua coleção de entrevistas com diretores do cinema americano clássico, Afinal, Quem faz os filmes?, Peter Bogdanovich compara a analogia da bomba com a da casca de banana na comédia: que para tornar alguém escorregando numa banana engraçado, precisa-se antes mostrar a casca de banana. A sugestão é de que a construção de suspense e de humor se dá de forma bastante similar. De certa forma é a partir desta idéia que Carl Franklin constrói Por um Triz. O critico Charles Taylor na Salon descreveu o filme de forma bem apta como um screwball noir. Há duas implicações aqui: a primeira é que estamos numa empreitada essencialmente maneirista. Filme sobre cinema preocupado em manipular as regras que foram estabelecidas por toda um tradição que ele herdou de outros filmes. A outra é que Franklin está disposto a beber na fonte de dois tipos de cinema com um estilo bem peculiar e próprio (e uma certa aura cult), que estão intimamente ligados ao cinema clássico americano.

Este tipo de jogo é algo que associamos a alguém como Brian De Palma - e o roteiro de Por um Triz cairia como uma luva para ele. Só que a sensibilidade de Franklin não poderia ser mais diferente. Ele começou a carreira fazendo filmes para vídeo (foi provavelmente o único bom cineasta que Roger Corman revelou depois que começou a produzir filmes para o formato), e mais tarde para TV. Há em Franklin um certo pragmatismo, uma preocupação em resolver os problemas que levanta sem fazer barulho algum (algo que também pode ser visto nos seus dois melhores filmes, Um Passo em Falso e O Diabo Veste Azul, duas pérolas esperando para ser redescobertas nas prateleiras das locadoras). Carl Franklin não se entrega em Por um Triz ao tipo de exercício de estilo que veríamos, por exemplo, num filme dos irmãos Coen (para ficar em dois cineastas que passaram a carreira toda atrás de um screwball noir). Por um Triz é sim um exercício de estilo, mas um que fala num tom mais discreto. Isto porque Franklin não se preocupa muito em escancarar sua marca autoral, ao invés disso a constrói aos poucos. O confronto entre este lado classicista e este lado maneirista de Franklin rende resultados muito interessantes. Especialmente porque permite ao diretor ancorar o seu jogo sobre uma base mais sólida, mas também porque abre espaço para, quando Franklin apronta com a nossa memória cinematográfica, nos pegar efetivamente de surpresa por desrespeitar a tradição - só que de dentro da tradição.

A trama de Por um Triz não tenta inventar muito (a maior fonte de inspiração do filme é O Relógio Verde de John Farrow, refilmado mais recentemente por Roger Donaldson como Sem Saída). Franklin, seguindo a receita de Hitchcock, não sonega informações aos espectadores. Pelo contrário, sabemos das reviravoltas da trama bem antes do personagem de Denzel Washington. O suspense e o humor de Por um Triz se dá em como Washington lida com as situações em que se envolve. A arte que Franklin desenvolve aqui tem muito a ver com tempo: é tempo o que Washington tenta dominar, e que o cineasta controla com precisão. O tempo do plano é aqui sempre preciso, cada imagem não durando um fotograma a mais ou a menos do que aquilo que ela precisa durar. O filme se divide em duas chaves de tempo diferentes: numa, bem lenta e elíptica, Franklin vai construindo o caso contra Washington; na outra, bem mais frenética e com a ação ocorrendo em poucas horas, ele coloca seu personagem central para tentar sair limpo da confusão em que se meteu. Não se trata de simplesmente acelerar a ação, mas a compreensão do tempo mental do seu personagem central. Vale dizer, aliás, que o filme gasta uma metragem bem maior do que a habitual com a primeira parte do que haveria de se esperar de um filme de ação típico. Franklin divide o filme em dois blocos de aproximadamente 40 minutos, daí os dois apresentarem experiências de tempo bem diferentes (vale dizer que o clímax que se segue a eles é, decerto, o ponto baixo do filme - funcional mas com pouca imaginação).

Comédia e suspense são provavelmente os gêneros cinematográficos que mais dependem de "timing". O que Franklin faz aqui ao misturar os dois gêneros é permitir que um ilumine os mecanismos do outro. Ele parte do que seria um subtexto – Washington como um marido que pulou a cerca e tem que se esconder da mulher – e faz com que ele invada o texto. Por um Triz acaba pegando todos os elementos já surrados do noir e lhes injeta vida justamente sobrepondo-o aos da comédia matrimonial. Não é à toa que o clima ensolarado da Flórida e a ótima trilha sonora de Graeme Revell estão muito mais próximas da comédia (a ação até se passa no tipo de cidade praiana que vive de turistas, onde este tipo de comédia freqüentemente se passa). A cada nova informação da investigação, Washington precisa se desdobrar para permanecer um passo a frente da esposa. Cada um destes movimentos funciona de forma igualmente tensa e engraçada. Franklin faz ótimo uso das locações demonstrando como o espaço claustrofóbico é igualmente válido neste tipo de humor e de thriller.

O final do filme é uma das suas melhores piadas – aos leitores que não viram o filme e se incomodam em saber detalhes da trama é melhor abandonar o texto aqui – na forma como ele consegue se resolver de forma absolutamente convencional, mas incômoda. Já que a tradição que ele segue não é a do seu gênero de superfície, onde o herói seria punido no final provavelmente perdendo tudo e tendo que recomeçar sozinho, prometendo ter aprendido com as próprias burradas. O filme segue sim a convenção, mas do seu gênero de espírito: a reconciliação do casal (e o perdão implícito da esposa) e a promessa de que agora o sujeito seguirá fiel. Se é moralista? Sem dúvidas, mas cabe perguntar se não é um moralismo mais honesto do que o cinismo igualmente – ainda que mais discretamente – moralista que nos acostumamos a esperar deste tipo de filme (e o porquê daquele outro final pode nos parecer a primeira vista mais atraente). Franklin faz uso da tradição (e daquilo que o espectador sabe dela) para nos pregar sua peça, e no caminho revigora material dos mais desgastados e constrói um dos jogos cinematográficos mais elegantes e inteligentes a chegar por aqui recentemente. Cara esperto, este tal Carl Franklin.


Filipe Furtado