A
impressão mais marcante ao sair de O Pagamento,
ou ao menos a impressão deste crítico,
é gerada pela relação entre o herói
e o diretor John Woo. Sejamos sintéticos: Ben
Affleck faz um gênio da computação,
hábil em melhorar invenções alheias,
que topa trabalhar para um mega-empresário. Sua
incumbência é viabilizar um programa de
informática capaz de prever o futuro - em troca
de US$ 92 milhões e da perda da memória
dos três anos durante os quais trabalhará
no projeto. Quando descobre ter "levado um chapéu",
já com as lembranças varridas para algum
lixo cerebral, restará ao herói recobrar
sua consciência, com base no conteúdo de
um envelope, onde estão peças de seu passado.
Com o transcorrer da trama, de aparência intrincada
mas simples em suas motivações, veremos
como esse herói, consciente de que seria enganado,
previu cada passo a ser dado depois, quando não
tivesse mais consciência do passado, sendo seu
desafio a montagem de uma quebra-cabeça preparado
por ele mesmo.
Estamos então em uma jornada de reconstrução
de identidade, dentro de um sistema que a elimina assumidamente,
e também em um jogo de cumprimento e sabotagem
de um serviço: Affleck cumpre a missão
pela qual será pago (embora leve o calote), mas
também sabota essa missão posteriormente.
Não seria mais ou menos a postura de Woo ao lidar
com a estrutura dos grandes estúdios? Seu desafio
é muito parecido com o de Affleck: a busca de
uma identidade em um sistema impessoal e a sabotagem
das leis desse sistema, sem deixar de respeitá-las.
Isso explica a capacidade do diretor chinês, que
começou a filmografia em Hong Kong, em filmar
situações implausíveis com, digamos,
uma distância autoparódica do material,
mas sem, por assim dizer, sacrificar o espetáculo
com essa ironia. Woo parece combinar o brilho nos olhos
de quem conduz grandes sequências com o sorriso
de canto de lábio de quem não leva tão
a sério suas realizações. Ele tem
consciência extrema de suas habilidades, faz questão
de evidenciá-las para mostrar como consegue ter
nas mãos toda a estrutura e todo orçamento
disponível, mas ao mesmo tempo filma como quem
não é daquele mundo - e, por isso, sente-se
à vontade para rir daquilo tudo. Assim como o
personagem de Affleck, Woo é um pragmático
idealista. Quase um cínico, mas um cínico
romântico, se for possível.
Estabelecido esse paralelo entre autor e personagem,
ou entre diretor contratado e material com o qual lida,
entremos nas características específicas
do filme. Desde seu início e por todo seu desenvolvimento,
O Pagamento mantém traços bem definidos.
Não demora para reeencontrarmos as marcas do
diretor, como a busca de uma balé visual coreografado
pela montagem, o agilidade com que os planos são
encadeados, a preocupação em usar a câmera
como criadora de estilo, sem limitá-la ao relato
de ações com objetividade e eficiência
narrativa. Woo trabalha no excesso de informações
gráficas e de planos. Contenção
não é com ele. Sua busca está na
tentativa de dar credibilidade ao absurdo, em criar
verossimilhança sem abandonar a revelação
dos artíficios de manipulação,
em estabelecer um ilusionismo que não omite os
caminhos da ilusão, mas, pelo contrário,
abre espaço para a reflexão sobre a imagem
sem deixar de empregá-la para enganar nossos
sentidos.
Vemos de cara um espaço excessivo e sufocante
ocupado pela direção de arte, mas logo
é possível vincular a valorização
dos objetos à proposta do filme. Não seria
muito arriscado afirmar que, neste filme em específico,
temos a substituição dos valores éticos,
dos conflitos humanos de forma mais ampla, presentes
mais em filmes de Honk Hong e menos em filmes americanos,
pela tematização da própria imagem
como identidade (ou confusão de identidade).
Se não há substituição de
uma preocupação pelo ser pela aparência
do ser, há exacerbação. Talvez
derive disso a falsidade das emoções dos
personagens, em especial de Affleck e Uma Thurman, assim
como quaisquer de seus problemas individuais: eles só
nos interessam, e a Woo, enquanto aparência e
superfície. E essas imagens são caudalosas.
Estarão sempre nos omitindo mais do que nos revelando
algo de confiável. Assim parece. Não por
acaso a imagem é o sujeito de tudo: ela é
apagada da mente do herói, ela o ajuda a evitar
a própria morte, ela pode estimular a guerra
por antecipar o futuro e ela ameaça o protagonista
quando, em um encontro com a amada cuja imagem foi apagada
de sua vida, ele se depara com um duplo dela. Nenhuma
imagem é signo de verdade em O Pagamento.
Por isso a falta de gravidade de uma certa previsibilidade,
levantada por alguns planos que anunciam planos seguintes,
pois as reviravoltas são constantes e anulam
planos anteriores. "Assim parece", mas, a rigor, nem
sempre é assim. Há excesso de explicações,
mas elas nem sempre valem.
Irregular pelo excesso de idéias, nem sempre
traduzidas a contento pelas situações,
O Pagamento é um filme ambicioso, tematicamente
inclusive. Há uma lógica marxista no trajeto
da falta de consciência, da memória tirada
de si, até a consciência dessa falta de
consciência. Uma lógica marxista, que não
se crie confusões e reducionismos, da primeira
fase do marxismo, cujo final é em geral colocado
como o ano de 1848. Vejamos: Marx afirma nos Manuscritos
Econômicos-Filosóficos que, depois
de se chegar ao ápice da alienação
e se reverter esse estado no estágio seguinte,
toda a riqueza criada sob forma alienada é retomada.
Não é outra situação, se
não essa, a vivida pelo herói de Woo.
Ele cria um produto, leva chapéu no pagamento,
tem sua consciência de sua posição
apagada e, para reverter o jogo e lucrar com o trabalho
(por meio da previsão de um prêmio de loteria),
com aquele trabalho cuja compensação financeira
lhe foi tirada, esse sujeito terá antes de tomar
consciência de sua alienação.
Não se pode ignorar também a atualidade
política da tentativa destrambelhada, no filme,
de se evitar o caos por meio de uma máquina de
previsão de futuro. Uma máquina de imagens.
Temos nesse caso o inevitável paralelo com outra
adaptação para as telas de uma história
de Philip K Dick, Minority Report, no qual criminosos
eram presos antes de cometerem o crime. Em O Pagamento,
a guerra tem como reação a guerra, mas
antes de acontecer: uma precaução geradora
de ação. Até um dado momento, o
filme se coloca, diante disso, de forma contrária.
Seria sua resposta à uma mentalidade paranóica,
do ataque antes de ser atacado, que ainda fala alto
a certos líderes políticos. No entanto,
no desfecho da história, temos uma reviravolta.
Não existe nada contra, da parte do filme, a
prevenção do futuro. O futuro constrói-se,
afinal, nas ações do presente, ou a partir
delas. Interessa, portanto, a responsabilidade. Em outras
palavras: a forma com que as precauções,
para mudar o mundo ou salvar a pele, são tomadas.
Cléber Eduardo
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