O PAGAMENTO
John Woo, Paycheck, EUA, 2003

A impressão mais marcante ao sair de O Pagamento, ou ao menos a impressão deste crítico, é gerada pela relação entre o herói e o diretor John Woo. Sejamos sintéticos: Ben Affleck faz um gênio da computação, hábil em melhorar invenções alheias, que topa trabalhar para um mega-empresário. Sua incumbência é viabilizar um programa de informática capaz de prever o futuro - em troca de US$ 92 milhões e da perda da memória dos três anos durante os quais trabalhará no projeto. Quando descobre ter "levado um chapéu", já com as lembranças varridas para algum lixo cerebral, restará ao herói recobrar sua consciência, com base no conteúdo de um envelope, onde estão peças de seu passado. Com o transcorrer da trama, de aparência intrincada mas simples em suas motivações, veremos como esse herói, consciente de que seria enganado, previu cada passo a ser dado depois, quando não tivesse mais consciência do passado, sendo seu desafio a montagem de uma quebra-cabeça preparado por ele mesmo.

Estamos então em uma jornada de reconstrução de identidade, dentro de um sistema que a elimina assumidamente, e também em um jogo de cumprimento e sabotagem de um serviço: Affleck cumpre a missão pela qual será pago (embora leve o calote), mas também sabota essa missão posteriormente. Não seria mais ou menos a postura de Woo ao lidar com a estrutura dos grandes estúdios? Seu desafio é muito parecido com o de Affleck: a busca de uma identidade em um sistema impessoal e a sabotagem das leis desse sistema, sem deixar de respeitá-las.

Isso explica a capacidade do diretor chinês, que começou a filmografia em Hong Kong, em filmar situações implausíveis com, digamos, uma distância autoparódica do material, mas sem, por assim dizer, sacrificar o espetáculo com essa ironia. Woo parece combinar o brilho nos olhos de quem conduz grandes sequências com o sorriso de canto de lábio de quem não leva tão a sério suas realizações. Ele tem consciência extrema de suas habilidades, faz questão de evidenciá-las para mostrar como consegue ter nas mãos toda a estrutura e todo orçamento disponível, mas ao mesmo tempo filma como quem não é daquele mundo - e, por isso, sente-se à vontade para rir daquilo tudo. Assim como o personagem de Affleck, Woo é um pragmático idealista. Quase um cínico, mas um cínico romântico, se for possível.

Estabelecido esse paralelo entre autor e personagem, ou entre diretor contratado e material com o qual lida, entremos nas características específicas do filme. Desde seu início e por todo seu desenvolvimento, O Pagamento mantém traços bem definidos. Não demora para reeencontrarmos as marcas do diretor, como a busca de uma balé visual coreografado pela montagem, o agilidade com que os planos são encadeados, a preocupação em usar a câmera como criadora de estilo, sem limitá-la ao relato de ações com objetividade e eficiência narrativa. Woo trabalha no excesso de informações gráficas e de planos. Contenção não é com ele. Sua busca está na tentativa de dar credibilidade ao absurdo, em criar verossimilhança sem abandonar a revelação dos artíficios de manipulação, em estabelecer um ilusionismo que não omite os caminhos da ilusão, mas, pelo contrário, abre espaço para a reflexão sobre a imagem sem deixar de empregá-la para enganar nossos sentidos.

Vemos de cara um espaço excessivo e sufocante ocupado pela direção de arte, mas logo é possível vincular a valorização dos objetos à proposta do filme. Não seria muito arriscado afirmar que, neste filme em específico, temos a substituição dos valores éticos, dos conflitos humanos de forma mais ampla, presentes mais em filmes de Honk Hong e menos em filmes americanos, pela tematização da própria imagem como identidade (ou confusão de identidade). Se não há substituição de uma preocupação pelo ser pela aparência do ser, há exacerbação. Talvez derive disso a falsidade das emoções dos personagens, em especial de Affleck e Uma Thurman, assim como quaisquer de seus problemas individuais: eles só nos interessam, e a Woo, enquanto aparência e superfície. E essas imagens são caudalosas. Estarão sempre nos omitindo mais do que nos revelando algo de confiável. Assim parece. Não por acaso a imagem é o sujeito de tudo: ela é apagada da mente do herói, ela o ajuda a evitar a própria morte, ela pode estimular a guerra por antecipar o futuro e ela ameaça o protagonista quando, em um encontro com a amada cuja imagem foi apagada de sua vida, ele se depara com um duplo dela. Nenhuma imagem é signo de verdade em O Pagamento. Por isso a falta de gravidade de uma certa previsibilidade, levantada por alguns planos que anunciam planos seguintes, pois as reviravoltas são constantes e anulam planos anteriores. "Assim parece", mas, a rigor, nem sempre é assim. Há excesso de explicações, mas elas nem sempre valem.

Irregular pelo excesso de idéias, nem sempre traduzidas a contento pelas situações, O Pagamento é um filme ambicioso, tematicamente inclusive. Há uma lógica marxista no trajeto da falta de consciência, da memória tirada de si, até a consciência dessa falta de consciência. Uma lógica marxista, que não se crie confusões e reducionismos, da primeira fase do marxismo, cujo final é em geral colocado como o ano de 1848. Vejamos: Marx afirma nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos que, depois de se chegar ao ápice da alienação e se reverter esse estado no estágio seguinte, toda a riqueza criada sob forma alienada é retomada. Não é outra situação, se não essa, a vivida pelo herói de Woo. Ele cria um produto, leva chapéu no pagamento, tem sua consciência de sua posição apagada e, para reverter o jogo e lucrar com o trabalho (por meio da previsão de um prêmio de loteria), com aquele trabalho cuja compensação financeira lhe foi tirada, esse sujeito terá antes de tomar consciência de sua alienação.

Não se pode ignorar também a atualidade política da tentativa destrambelhada, no filme, de se evitar o caos por meio de uma máquina de previsão de futuro. Uma máquina de imagens. Temos nesse caso o inevitável paralelo com outra adaptação para as telas de uma história de Philip K Dick, Minority Report, no qual criminosos eram presos antes de cometerem o crime. Em O Pagamento, a guerra tem como reação a guerra, mas antes de acontecer: uma precaução geradora de ação. Até um dado momento, o filme se coloca, diante disso, de forma contrária. Seria sua resposta à uma mentalidade paranóica, do ataque antes de ser atacado, que ainda fala alto a certos líderes políticos. No entanto, no desfecho da história, temos uma reviravolta. Não existe nada contra, da parte do filme, a prevenção do futuro. O futuro constrói-se, afinal, nas ações do presente, ou a partir delas. Interessa, portanto, a responsabilidade. Em outras palavras: a forma com que as precauções, para mudar o mundo ou salvar a pele, são tomadas.


Cléber Eduardo