Narradores
de Javé é um filme sobre muita coisa.
Literalmente. É um filme sobre ser sobre muita
coisa. Sobre o muito e sobre a multiplicidade de seres.
É quase uma taxonomia de verdades, das possibilidades
de real de uma mesma história. Há algo
de irremediavelmente grego em Eliane Caffé. Kenoma
já trazia no ventre essa associação
entre palavra lúdica e palavra lembrada que agora
explode neste filme. Mas Narradores é
além disso um filme importante para o cinema
brasileiro, por jogar de maneira (raramente) inteligente
com alguns clichês de nosso cinema contemporâneo,
sobretudo com um dos maiores deles, o filmar o Nordeste.
Mas como todo grande filme, suas várias importâncias
se tornam menores diante da importância principal
dele, como filme e ponto (o que alimenta todas as outras
e que serve como a grande síntese delas todas).
Vamos, então, a Narradores de Javé:
um filme o muito, dizíamos. A começar
é um filme irremediavelmente marcado pela memória.
Tudo do filme deve a ela. As verdades produzidas pelos
moradores do vilarejo são compostas de memória.
De uma memória mítica, é verdade,
onde encontra-se com seu segundo assunto, a fala. A
memória é feita na fala, é produzida
pela narração. E ambas são ficções
aparentes. Afinal, são versões várias
que passam diante do ouvinte. Mas são todas,
no final das contas, um sistema de influências.
E eis o terceiro assunto, aquele no qual o filme faz
mais fortemente cinema: as memórias do passado
são, no fundo, profecias. É no futuro
que elas se realizarão. Nesse sentido, todo arcabouço
de narração do filme se presta a fazer
do tempo massa de modelar, como mesmo a fala é
barro nas mãos do povo tagarela e do tagarela-mor,
o carteiro, escrevinhador e ouvinte.
Javé é ao mesmo tempo um deslugar, no
sentido em que se faz fora do tempo e do espaço
tanto quanto uma Tróia ou uma Atenas míticas,
mas é também o lugar de onde se constrói
uma noção muito rela de verdade. Afinal,
é na história que a cidade será
inundada e é de sobrevivência real de um
povo que se trata. Daí outra ligação
com um clichê com que o filme joga ironicamente:
o da cidade pequena cheia de tipos. E eis outro assunto
do filme: a dramaturgia. O desejo de um discurso sobre
o próprio discurso e sobre a dramaturgia desse
discurso no cinema é forte no filme. As falas
são faladas com um tom quase documental, ainda
que recorra à ladainha para isso. Em vez de celebrar
a verdade com uma dramaturgia realista, o filme se faz
verdade por discursar um discurso de mentira com formato
quase documental. Nesse sentido, não só
a cumplicidade antológica de José Dumont
mais do que apenas um ator, obviamente um artesanato
do próprio filme , mas a de todo o elenco,
que se escraviza na própria palavra mais do que
em qualquer outra expressão.
Mas o que talvez mais chame a atenção
em Narradores de Javé é seu desejo de
eternidade. Ao se esgueirar por ali por fora do histórico,
pelo campo do mítico, quase do fabular, do fabuloso,
o filme joga com passado e futuro não só
na narrativa (como já dissemos), mas também
em suas próprias ferramentas expressivas. Poucos
filmes atuais (não apenas brasileiros) fazem
esse trânsito tão bem. Nisso, compõem-se
bem o Nordeste de Graciliano que pulsa como fantasma
nos tipos e no chão árido do filme com
o experimentalismo sonoro de um DJ Patife; a fotografia
discreta, quase anti-retomadística, clássica
mesmo, com a edição cheia de idas e vindas;
a estrutura que se dobra sobre si mesma, fazendo com
que aquilo que era lenda se torne a própria história
com o sistema de falas quase improvisadas e que são
ditas como metralhadora giratória.
Um salto é necessário: logo no começo,
fica-se sabendo que a história de Narradores
de Javé é, toda ela, uma narração.
Narração daquelas que se ouviu de um parente
ou vizinho, e que será agora repetida, como uma
história que se perde em pedaços, como
uma brincadeira de telefone sem fio. E nessa história
que teremos que depositar nosso crédito. E essa
história mesma será composta a começar
pela saga de um mentiroso, de um carteiro banido por
ter inventado mentiras e que perambula pela cidade colhendo
histórias exageradas dos moradores. Essas anotações,
veremos, serão elas mesmas mentiras, falseamentos,
dramatizações. Não é de
cinema que estamos falando, afinal?
Alexandre Werneck
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