Quem
espera do filme do palestino Elia Suleiman um panfleto
reivindicatório ou uma denuncia queixosa ficará
surpreso com o belo objeto que terá diante dos
olhos. Intervenção Divina não
é nada disso e desfaz, para quem não conhecia
o cineasta, todas as expectativas que se poderia ter
em torno de um filme palestino. Intervenção
Divina não deixa de ser um filme sobre a
Palestina. Porém, a força do filme de
Suleiman é justamente de evitar as armadilhas
e a facilidade e colocar o discurso do filme em outro
nível, o da arte.
A primeira coisa que vem à mente quando se quer
qualificar este filme é: atípico. Intervenção
Divina não se parece com muita coisa que
se vê por aí. Suleiman é desses
raros cineastas que podemos identificar com apenas uma
imagem. O enquadramento é fixo, preciso, os personagens
movimentam-se com a exatidão de uma coreografia
perfeitamente determinada, os diálogos são
raros, sua trivialidade é anulada pelo modo pouco
naturalista com que são ditos, o jogo dos olhares,
teatral. Em suma, uma encenação da realidade,
cômica, poética, simbólica.
O filme mergulha o espectador no cotidiano palestino,
dos dois lados da fronteira, em cidades como Ramallah
e Jerusalém. Gestos triviais repetem-se, em situações
armadas como gags visuais. É um cinema
próximo do de Tati, de deslocamentos de corpos
em planos largos, de repetições, de uma
encenação do cotidiano. Tati retratava
o absurdo da vida moderna, Suleiman também envereda
pelo absurdo mas para falar da realidade dos palestinos.
A primeira parte do filme nos coloca num universo infernal,
no qual o tempo parece não existir, em que os
mesmos momentos se repetem, vazios. Através do
humor, o que temos é na verdade a solidão
e agressividade de personagens cujo único amigo
é o cigarro.
Na segunda parte, há uma progressão, quase
uma história. A dos encontros cotidianos do personagem
principal, ES (as iniciais do cineasta), com uma bela
palestina, no estacionamento de uma das várias
barragens de controle do exército israelense.
Mas em vez de olhar um para o outro, o casal prefere
olhar o mundo que os cerca. O que poderia ser uma história,
uma história de amor, serve apenas de pretexto
para uma visão maior feita de momentos absurdos
e outros simbólicos.
Suleiman mostra então toda a beleza e força
do seu cinema, com sequências desde já
antológicas, como a do balão com a efígie
de Arafat passando a fronteira e sobrevoando triunfalmente
Jerusalém, ou a vitória da ninja palestina
sobre os atiradores de elite israelenses, num balé
aéreo entre Matrix e Tigre e Dragão.
Não se trata de uma história de amor.
Ou melhor, não de uma história de amor
entre um homem e uma mulher e sim entre um homem e uma
terra, a Palestina. "Eu estou louco porque te amo",
frase que se repete ao longo do filme, parece resumir
a visão de Suleiman, de um povo às raias
da loucura, que se refugia num individualismo agressivo
mas não entrega os pontos. Ao escolher a metáfora,
o simbolismo, a poética, Elia Suleiman declara
sua fé no poder da arte: para enfrentar o colono
no seu carro enfeitado de bandeirinhas israelense, ES
escolhe a música "I put a spell on you", canta
Natacha Atlas, enquanto os dois personagens se encaram,
como num duelo de western.
É o cinema que importa, o poder da imagem. A
possibilidade de construir um discurso sobre a realidade,
justamente ao transformá-la, ao apropriar-se
dela. Eis a intervenção divina: a de um
autor sobre a realidade. Com seu humor desesperançado,
Elia Suleiman nos propõe algo raro hoje em dia,
uma visão, um olhar. Do filme, restam imagens
a nos acompanhar. Imagens de violência e amor.
O jogo das mãos que se acariciam, do olhar fixo
no infinito. Um olhar triste e perplexo.
Carim Azeddine
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