A
expressão "the fog of war" se refere à
impossibilidade de se definir a guerra moderna dentro
dos padrões maniqueístas convencionais
(bem e mal, vencedores e vencidos), haja visto as variáveis
militares, políticas, econômicas, tecnológicas
e sociais que nela atuam. Em Sob a Névoa da
Guerra, Oscar de melhor documentário em 2004,
Errol Morris não pretende analisar cada agente
que a constitui, mas antes mostrar, a partir das lições
aprendidas por Robert S. McNamara como secretário
de defesa de John Kennedy e Lyndon Johnson, a complexidade
do campo de batalha.
Baseando-se em A Arte da Guerra, Errol Morris
também divide seu filme em "lições",
ministradas por McNamara, que vão desde ter empatia
com o inimigo até reconhecer os próprios
erros. Como em Sun Tzu, o recurso é utilizado
para negar diagnósticos simplistas ou julgamentos
morais da guerra: ao contrário, ao se concentrar
em seus aspectos práticos – por exemplo, reduzir
as baixas para aumentar a eficiência (não
por acaso, Morris se detém sobre o período
em que McNamara esteve na presidência da Ford),
ou evitar o confronto nuclear com a URSS, durante a
crise dos mísseis cubanos, que destruiria o mundo
– o ex-secretário de defesa a observa enquanto
fenômeno que, a despeito da origem humana, adquire
feição desumana quando, independente de
qualquer vontade ou decisão individual, escapa
ao controle das forças sociais que a criaram,
levando-as de roldão.
Com a aproximação a Sun Tzu, Morris evita
o sensacionalismo fácil dos filmes que condenam
os horrores da guerra. No entanto, além da objetividade
de McNamara representar apenas seu ponto de vista sobre
o assunto, Sob a Névoa da Guerra se vale
da paradoxal relação de repulsa e de fascínio
que o ex-secretário de defesa tem pelas câmeras
– e, em conseqüência, da hostilidade que
este mantém com o cineasta, o qual deseja se
expressar por intermédio do entrevistado –, a
fim de tornar ainda mais cinzento e indefinível
o objeto que se propõe a estudar.
O recorte de Sob a Névoa da Guerra para
o tema em discussão passa necessariamente por
McNamara: mesmo que se centre em questões objetivas
da guerra moderna, jamais esconde que estas remetem
à visão subjetiva do ex-secretário.
Mas, focado nos acontecimentos históricos que
ele vivenciou, sobretudo os ligados à Guerra
Fria, o filme Morris estabelece desde o princípio
o relacionamento dúbio de McNamara com os holofotes.
Assim, já na cena que abre o documentário,
o entrevistado, em coletiva de imprensa dos anos 60
(filmada na época), pergunta aos repórteres
se todos o estão vendo e ouvindo, enquanto, mais
adiante no filme, recusa-se a responder ao cineasta,
pois alega que, àquela altura, o público
o toma por canalha.
São tensões e distensões, avanços
e recuos que, como na Guerra Fria entre EUA e URSS,
marcam a relação de Errol Morris com Robert
McNamara. Morris se coloca no lugar de McNamara, tenta
compreender o campo de batalha através de seus
olhos, porém igualmente reconhece a pouca confiabilidade
do depoimento prestado pelo ex-secretário de
defesa (como o próprio reconhece) ao afirmar
que nunca diz a verdade, e sim apenas o que o ouvinte
quer escutar. A desconfiança mútua e permanente
entre documentarista e documentado, que faz mais opaca
a expressão "the fog of war", é visualmente
expressa pela posição marginal de McNamara
na imagem, na medida em que raras vezes ele ocupa o
centro da composição, quase sempre aparecendo
nos cantos da tela, parcialmente fora do quadro, tão
esquivo quanto suas respostas.
McNamara mente ou fala a verdade? Ele manipula Morris,
ou é por ele manipulado? A força de Sob
a Névoa da Guerra nasce precisamente do apagamento
dos limites entre o branco e o preto, tanto na guerra
moderna, quanto no documentário.
Paulo Ricardo de Almeida
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