SOB A NÉVOA DA GUERRA
Errol Morris, The Fog Of War, EUA, 2003

A expressão "the fog of war" se refere à impossibilidade de se definir a guerra moderna dentro dos padrões maniqueístas convencionais (bem e mal, vencedores e vencidos), haja visto as variáveis militares, políticas, econômicas, tecnológicas e sociais que nela atuam. Em Sob a Névoa da Guerra, Oscar de melhor documentário em 2004, Errol Morris não pretende analisar cada agente que a constitui, mas antes mostrar, a partir das lições aprendidas por Robert S. McNamara como secretário de defesa de John Kennedy e Lyndon Johnson, a complexidade do campo de batalha.

Baseando-se em A Arte da Guerra, Errol Morris também divide seu filme em "lições", ministradas por McNamara, que vão desde ter empatia com o inimigo até reconhecer os próprios erros. Como em Sun Tzu, o recurso é utilizado para negar diagnósticos simplistas ou julgamentos morais da guerra: ao contrário, ao se concentrar em seus aspectos práticos – por exemplo, reduzir as baixas para aumentar a eficiência (não por acaso, Morris se detém sobre o período em que McNamara esteve na presidência da Ford), ou evitar o confronto nuclear com a URSS, durante a crise dos mísseis cubanos, que destruiria o mundo – o ex-secretário de defesa a observa enquanto fenômeno que, a despeito da origem humana, adquire feição desumana quando, independente de qualquer vontade ou decisão individual, escapa ao controle das forças sociais que a criaram, levando-as de roldão.

Com a aproximação a Sun Tzu, Morris evita o sensacionalismo fácil dos filmes que condenam os horrores da guerra. No entanto, além da objetividade de McNamara representar apenas seu ponto de vista sobre o assunto, Sob a Névoa da Guerra se vale da paradoxal relação de repulsa e de fascínio que o ex-secretário de defesa tem pelas câmeras – e, em conseqüência, da hostilidade que este mantém com o cineasta, o qual deseja se expressar por intermédio do entrevistado –, a fim de tornar ainda mais cinzento e indefinível o objeto que se propõe a estudar.

O recorte de Sob a Névoa da Guerra para o tema em discussão passa necessariamente por McNamara: mesmo que se centre em questões objetivas da guerra moderna, jamais esconde que estas remetem à visão subjetiva do ex-secretário. Mas, focado nos acontecimentos históricos que ele vivenciou, sobretudo os ligados à Guerra Fria, o filme Morris estabelece desde o princípio o relacionamento dúbio de McNamara com os holofotes. Assim, já na cena que abre o documentário, o entrevistado, em coletiva de imprensa dos anos 60 (filmada na época), pergunta aos repórteres se todos o estão vendo e ouvindo, enquanto, mais adiante no filme, recusa-se a responder ao cineasta, pois alega que, àquela altura, o público o toma por canalha.

São tensões e distensões, avanços e recuos que, como na Guerra Fria entre EUA e URSS, marcam a relação de Errol Morris com Robert McNamara. Morris se coloca no lugar de McNamara, tenta compreender o campo de batalha através de seus olhos, porém igualmente reconhece a pouca confiabilidade do depoimento prestado pelo ex-secretário de defesa (como o próprio reconhece) ao afirmar que nunca diz a verdade, e sim apenas o que o ouvinte quer escutar. A desconfiança mútua e permanente entre documentarista e documentado, que faz mais opaca a expressão "the fog of war", é visualmente expressa pela posição marginal de McNamara na imagem, na medida em que raras vezes ele ocupa o centro da composição, quase sempre aparecendo nos cantos da tela, parcialmente fora do quadro, tão esquivo quanto suas respostas.

McNamara mente ou fala a verdade? Ele manipula Morris, ou é por ele manipulado? A força de Sob a Névoa da Guerra nasce precisamente do apagamento dos limites entre o branco e o preto, tanto na guerra moderna, quanto no documentário.


Paulo Ricardo de Almeida